terça-feira, 31 de agosto de 2021

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (3.2) - ... Não é hora de andar pensando em casamentos

 Cem Anos de Solidão


Gabriel Garcia Márquez


(3.2)



para jomí garcía ascot 

e maría luisa elío





continuando...



De repente — quando o luto existia há tanto tempo que já se tinham retomado as sessões de ponto de cruz — alguém empurrou a porta da rua às duas da tarde, no silêncio mortal do calor, e as colunas estremeceram com tal força nos cimentos que Amaranta e suas amigas que bordavam na varanda, Rebeca que chupava o dedo no quarto, Úrsula na cozinha, Aureliano na oficina e até José Arcadio Buendía sob o castanheiro solitário tiveram a impressão de que um tremor de terra estava desmontando a casa. Chegava um homem descomunal. Os seus ombros quadrados mal cabiam nas portas. Trazia uma medalhinha da Virgem dos Remedios pendurada no pescoço de búfalo, os braços e o peito completamente bordados de tatuagens enigmáticas, e na munheca direita o apertado bracelete de cobre dos niñosen- cruz [1].

[1] Explicação do autor à tradutora: “Segundo uma lenda popular, alguns homens fazem abrir o pulso e ali meter uma pequena cruz especial fechando-o depois com uma pulseira de ferro ou cobre. Isto, segundo a lenda, lhes dá uma força extraordinária.”

Tinha o couro curtido pelo sal da intempérie, o cabelo curto e aparado como a crina de uma mula, as mandíbulas férreas e o olhar triste. Usava um cinturão duas vezes mais largo que a barrigueira de um cavalo, botas com polainas e esporas, os saltos reforçados com chapinhas de metal, e a sua presença dava a impressão trepidante de um abalo sísmico. Atravessou a sala de visitas e a sala de estar, carregando na mão uns alforjes meio arrebentados, e apareceu como um trovão na varanda das begônias, onde Amaranta e suas amigas estavam paralisadas, com as agulhas no ar. “Olá”, disse a elas com a voz cansada, e atirou os alforjes sobre a mesa de trabalho e passou de largo para o fundo da casa. “Olá”, disse a ele a assustada Rebeca, que o viu passar pela porta do quarto. “Olá”, disse a Aureliano, que estava com os cinco sentidos alerta na mesa de ourivesaria. Não se entreteve com ninguém. Foi diretamente para a cozinha e ali parou pela primeira vez, ao fim de uma viagem que tinha começado do outro lado do mundo.

“Olá”, Úrsula ficou uma fração de segundo com a boca aberta olhou-o nos olhos, lançou um grito e pulou no pescoço gritando e chorando de alegria. Era José Arcadio. Voltava tão pobre como tinha ido, a ponto de Úrsula ter de lhe dar dois pesos para pagar o aluguel do cavalo. Falava o espanhol com gíria de marinheiros. Perguntaram-lhe onde tinha estado, e respondeu: “Por aí.” Pendurou a rede no quarto que lhe designaram e dormiu três dias. Quando acordou, e depois de tomar dezesseis ovos crus, saiu diretamente para a taberna de Catarino, onde a sua corpulência monumental provocou um pânico de curiosidade entre as mulheres. Ordenou música e aguardente para todos, por sua conta. Fez apostas de braço com cinco homens ao mesmo tempo.

“É impossível”, diziam, ao se convencerem de que não conseguiriam mover-lhe o braço.

“Tem niños-en-cruz.” Catarino, que acreditava em artifícios de força, apostou doze pesos que movia o balcão. José Arcadio arrancou-o do lugar, levantou-o equilibrando-o sobre a cabeça e o jogou na rua. Foram necessários onze homens para pô-lo pra dentro de volta. No calor da festa, exibiu sobre o balcão a sua masculinidade inverossímil, inteiramente tatuada num emaranhado azul de letreiros em vários idiomas. Às mulheres que o assediaram com a sua cobiça, perguntou quem pagava mais. A que tinha mais ofereceu vinte pesos. Então ele propôs se rifar entre todas, a dez pesos cada número. Era um preço exorbitante, porque a mulher mais solicitada ganhava oito pesos por noite, mas todas aceitaram. Escreveram os seus nomes em papeizinhos que puseram num chapéu, e cada mulher tirou um. Quando só faltava tirar dois papeizinhos, determinou-se a quem correspondiam.

— Cinco pesos a mais cada uma — propôs José Arcadio e me reparto entre as duas.

Disso vivia. Deu sessenta e cinco vezes a volta ao mundo metido numa tripulação de marinheiros apátridas. As mulheres que se deitaram com ele naquela noite, na taberna de Catarino, trouxeram-no inteiramente nu ao salão de baile, para que vissem que não tinha um milímetro do corpo sem tatuar, na frente e nas costas, e desde o pescoço até os dedos dos pés. Não conseguia se integrar na família. Dormia o dia inteiro e passava a noite no bairro de tolerância, fazendo apostas de força. Nas escassas ocasiões em que Úrsula pôde sentá-lo à mesa, demonstrou uma simpatia irradiante, sobretudo quando contava as suas aventuras em países longínquos. Tinha naufragado e permanecido duas semanas à deriva no mar do Japão, alimentando-se com o corpo de um companheiro que sucumbiu de insolação, cuja carne salgada e tornada a salgar e cozinhada ao sol tinha um sabor granuloso e doce. Num meio-dia radiante do golfo de Bengala, o seu navio vencera um dragão do mar em cujo ventre encontraram o elmo, as fivelas e as armas de um cruzado. Vira no Caribe o fantasma do navio pirata de Victor Hugues, com o velame solto pelos ventos da morte, os mastros carcomidos pelas baratas do mar, e perdido para sempre da rota de Guadalupe. Úrsula chorava na mesa como se estivesse lendo as cartas que nunca chegaram, nas quais José Arcadio relatava as suas façanhas e desventuras. “E tanto lugar aqui, meu filho”, soluçava. “E tanta comida jogada aos porcos!” Mas no fundo não podia conceber que o rapaz que os ciganos levaram fosse o mesmo alarve que comia meio leitão no almoço e cujas ventosidades murchavam as flores. Algo de semelhante acontecia com o resto da família. Amaranta não podia dissimular a repugnância que lhe produziam na mesa os seus arrotos bestiais. Arcadio, que nunca conheceu o segredo da sua filiação, mal respondia as perguntas que ele lhe fazia, com o propósito evidente de conquistar o seu afeto. Aureliano tentou reviver os tempos em que dormiam no mesmo quarto, procurou restaurar a cumplicidade da infância, mas José Arcadio se esqueceu de tudo porque a vida do mar lhe saturara a memória com coisas demais para recordar. Só Rebeca sucumbiu ao primeiro impacto. Na tarde em que o viu passar diante do seu quarto, pensou que Pietro Crespi era um almofadinha magricela junto daquele protomacho cuja respiração vulcânica se percebia em toda a casa. Procurava estar perto dele sob qualquer pretexto.

Certa ocasião, José Arcadio olhou para o seu corpo com atenção descarada e disse a ela: “Maninha, você é muito mulher”. Rebeca perdeu o domínio de si mesma. Voltou a comer terra e cal das paredes com a avidez dos outros tempos e chupou o dedo com tanta ansiedade que formou um calo no polegar. Vomitou um líquido verde com sanguessugas mortas. Passou noites em vigília, tiritando de febre, lutando contra o delírio, esperando até que a casa trepidasse com o regresso de José Arcadio ao amanhecer. Uma tarde, quando todos dormiam a sesta, não aguentou mais e foi ao seu quarto. Encontrou-o de cuecas, acordado, estendido na rede que pendurara nos ganchos com os cabos de amarrar navio. Impressionou-a tanto a sua enorme nudez sarapintada que teve ímpeto de retroceder. “Perdão”, se desculpou. “Eu não sabia você estava aqui.” Mas abaixou o tom de voz para não acordar ninguém. “Vem cá”, disse ele. Rebeca obedeceu. Deteve-se junto da rede, suando gelo, sentindo que se formavam nós nas tripas enquanto José Arcadio lhe acariciava os tornozelos com a polpa dos dedos, e depois a barriga das pernas e depois as coxas, murmurando: “Ah, maninha; ah maninha.” Ela teve que fazer um esforço sobrenatural para não morrer quando uma potência ciclônica, assombrosamente regulada levantou-a pela cintura e despojou-a da sua intimidade com três patadas, e esquartejou-a como a um passarinho. Conseguiu dar graças a Deus por ter nascido, antes de perder a consciência no prazer inconcebível daquela dor insuportável, chapinhando no lago fumegante da rede que absorveu como um mata-borrão a explosão do seu sangue.

Três dias depois, casaram-se na missa das cinco. José Arcadio tinha ido no dia anterior à loja de Pietro Crespi. Encontrara-o dando uma aula de cítara e nem ao menos o chamou de lado para falar. “Caso-me com Rebeca”, disse. Pietro Crespi ficou pálido, entregou a citara a um dos discípulos e deu a aula por encerrada. Quando ficaram sozinhos no salão abarrotado de instrumentos musicais e brinquedos de corda, Pietro Crespi disse:

— Ela é sua irmã.

— Não me importa — respondeu José Arcadio.

Pietro Crespi enxugou a testa com um lenço impregnado de alfazema.

— É contranatura — explicou — e, além disso, a lei proíbe.

José Arcadio se impacientou, não tanto com a argumentação como com a palidez de Pietro Crespi.

— Estou cagando pra essa tal de natura — disse. — E venho dizer isso a você para que não se dê o trabalho de ir perguntar nada a Rebeca. Mas o seu comportamento brutal se quebrantou, ao ver que os olhos de Pietro Crespi se umedeciam.

— Agora — disse a ele em outro tom — se você gosta é da família, ainda lhe resta Amaranta.

O Padre Nicanor revelou, no sermão de domingo, que José Arcadio e Rebeca não eram irmãos. Úrsula não perdoou nunca o que considerou como uma inconcebível falta de respeito, e quando voltaram da igreja proibiu aos recém-casados de voltar a pisar na sua casa. Para ela, era como se estivessem mortos. De modo que alugaram uma casinha defronte do cemitério e nela se instalaram sem mais mobília que a rede de José Arcadio. Na noite de núpcias, Rebeca teve o pé mordido por um escorpião que se metera nas suas pantufas. Ficou com a língua dormente, mas isso não impediu que passassem uma lua-de-mel escandalosa. Os vizinhos se assustavam com os gritos que acordavam o bairro inteiro até oito vezes por noite, e até três vezes durante a sesta, e rogavam para que uma paixão tão desaforada não fosse perturbar a paz dos mortos. Aureliano foi o único que se preocupou com eles. Comprou-lhes alguns móveis e lhes proporcionou dinheiro, até que José Arcadio retomou o sentido da realidade e começou a trabalhar as terras de ninguém que terminavam no quintal da casa. Amaranta, pelo contrário, não conseguiu superar nunca o seu rancor contra Rebeca, embora a vida lhe oferecesse uma satisfação com que não havia sonhado: por iniciativa de Úrsula, que não sabia como reparar a vergonha, Pietro Crespi continuou almoçando às terças-feiras na sua casa, superior ao fracasso, com uma serena dignidade. Conservou a fita preta no chapéu como um sinal de apreço à família, e se comprazia em demonstrar o seu afeto a Úrsula, levando-lhe presentes exóticos: sardinhas portuguesas, geleia de rosas turcas, e, em certa ocasião um primoroso xale oriental. Amaranta o atendia com diligência. Adivinhava os seus gostos, arrancava-lhe os fios descosidos dos punhos da camisa, e bordou uma dúzia de lenços com as suas iniciais, para o dia do seu aniversário. As terças-feiras, depois do almoço, enquanto ela bordava na varanda, ele lhe fazia uma alegre companhia. Para Pietro Crespi, aquela mulher a quem sempre considerara e tratara como uma menina foi uma revelação. Embora seu tipo carecesse de graça, possuía uma refinada sensibilidade para apreciar as coisas do mundo, e uma ternura secreta. Numa terça-feira, quando ninguém duvidava de que mais cedo ou mais tarde teria de acontecer, Pietro Crespi pediu-lhe que se casasse com ele. Ela não interrompeu o trabalho. Esperou que passasse o quente rubor das orelhas e imprimiu a serena ênfase de maturidade.

— Claro que sim, Crespi — disse — mas quando a gente se conhecer melhor. Não convém precipitar as coisas.

Úrsula ficou confusa. Apesar do apreço que sentia por Pietro Crespi, não conseguia discernir se a sua decisão era boa do ponto de vista moral, depois de prolongado e ruidoso noivado com Rebeca. Mas acabou por aceitá-lo como um fato sem classificação, porque ninguém compartilhou das sua dúvidas. Aureliano, que era o homem da casa, confundiu-as ainda mais, com a sua enigmática e conclusiva opinião:

— Não é hora de andar pensando em casamentos.




continua página 62...


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