terça-feira, 10 de agosto de 2021

Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 23 — O labirinto

 Edgar Allan Poe - Contos





Aventuras de Arthur Gordon Pym 
Título original: Narrative of A. G. Pym 
Publicado em 1837





23 — O labirinto




Durante os seis ou sete dias que se seguiram, permanecemos no nosso esconderijo da colina, saindo apenas de vez em quando e sempre com as maiores precauções, para procurar água e avelãs. Tínhamos construído sobre a plataforma uma espécie de telheiro ou cabana, que mobilamos com um leito de folhas secas e três pedras planas, as quais nos serviam ao mesmo tempo de forno e de mesa. Conseguimos facilmente lume esfregando dois pedaços de madeira um contra o outro, um mole e outro duro. A ave que tínhamos capturado forneceu-nos um excelente alimento, embora a sua carne fosse um pouco rija. Não era uma ave oceânica, mas uma espécie de alcaravão, com a plumagem negra de jade, salpicada de cinzento e com as asas muito pequenas em relação ao seu tamanho. Mais tarde, vimos mais três aves da mesma espécie nas redondezas da ravina, as quais pareciam procurar aquela que tínhamos capturado, mas como não pousaram uma única vez não as pudemos apanhar.

Enquanto durou a carne do animal a nossa situação não era grave, mas agora estava totalmente consumida e havia a necessidade absoluta de procurar novas provisões. As avelãs não chegavam para satisfazer a agonia da fome, e além disso causavam-nos horríveis cólicas intestinais e mesmo violentas dores de cabeça, quando as comíamos em grande quantidade. Tínhamos visto algumas tartarugas enormes perto da costa a Este da colina e calculamos que nos seria fácil apanhá-las, se conseguíssemos chegar junto delas sem sermos vistos pelos naturais. Resolvemos, portanto, tentar descer.

Começamos por descer pela encosta Sul que parecia apresentar menos dificuldades, mas ainda não tínhamos percorrido cem jardas quando encontramos o nosso caminho completamente barrado por um ramo da garganta onde haviam perecido os nossos companheiros. Seguimos o bordo desta ravina durante cerca de um quarto de milha, mas fomos de novo obrigados a parar por um precipício profundo e, como nos era impossível descer pelas suas vertentes, tivemos de voltar para trás.

Caminhamos então para Este, mas não tivemos melhor sorte, verificando-se exatamente o mesmo. Depois de uma hora de ginástica de partir o pescoço, descobrimos que tínhamos descido num vasto abismo de granito negro, cujo fundo estava coberto por poeira fina e donde não podíamos sair, senão pelo árduo caminho por onde tínhamos descido. Percorremos, portanto aquele caminho perigoso e depois tentámos a crista Norte da montanha, onde fomos obrigados a movimentar-nos com a máxima precaução, pois, o mínimo descuido podia expor-nos à vista dos selvagens. Assim, tivemos de rastejar e, de vez em quando, éramos obrigados a permanecer deitados de barriga para baixo sob os arbustos. Devido a todas estas precauções, tínhamos andado pouco, quando chegamos a um abismo ainda mais profundo do que os outros com que tínhamos deparado e que conduzia diretamente à garganta principal. Desta forma, as nossas suspeitas ficaram completamente confirmadas: estávamos isolados e sem acesso possível à zona situada por baixo de nós. Totalmente esgotados por tanto esforço regressamos à plataforma e, atirando-nos para o nosso leito de folhas, dormimos durante algumas horas um sono profundo e benéfico.

Depois desta exploração infrutífera, ocupamo-nos durante alguns dias a explorar todas as partes do cimo da montanha, para verificarmos quais eram os reais recursos que nos podia oferecer. Vimos que era impossível encontrar ali alimentos, exceto as perniciosas avelãs e uma espécie muito dura de cocleária que crescia num pequeno espaço com cerca de quatro varas quadradas, as quais esgotámos rapidamente. A 15 de fevereiro, se não estou em erro, não restava um único ramo e as avelãs eram muito raras: assim era-nos difícil conceber uma situação mais deplorável. No dia 16 começamos a rever a nossa prisão na esperança de encontrar uma saída, mas em vão. Tornamos a descer ao buraco onde quase tínhamos sido sepultados, esperando descobrir, seguindo pelo túnel, alguma abertura que desse para a ravina principal. Mais uma vez ficámos desapontados, mas encontramos e trouxemos uma espingarda.

No dia 17 saímos, decididos a examinar mais pormenorizadamente o abismo de granito negro onde tínhamos penetrado por altura da nossa primeira exploração. Lembrávamo-nos de que tínhamos observado muito mal uma das fendas que se abria nas paredes do poço, e sentíamo-nos impacientes por explorá-la melhor, embora não tivéssemos grandes esperanças de descobrir uma saída.

Alcançamos o fundo sem grande dificuldade, como já o tínhamos feito anteriormente, e pudemos então examinar tudo com cuidado. Era, sem dúvida, um dos locais mais estranhos do mundo, e era-nos difícil acreditar que fosse apenas obra da natureza. O abismo tinha da extremidade Este à Oeste cerca de quinhentas jardas de comprimento, considerando todas as suas sinuosidades alinhadas; a distância em linha reta não ultrapassaria as quarenta ou cinquenta jardas, segundo me pareceu, pois não tinha meios para tirar medidas exatas. No início da nossa descida, isto é, a cerca de uma centena de pés do cimo da colina, as paredes do abismo eram muito diferentes e pareciam nunca ter estado unidas, pois uma das superfícies era de pedra-sabão e a outra de marga granulada com uma substância metálica desconhecida. A sua máxima largura, ou intervalo entre as duas paredes, era por vezes de sessenta pés, mas em alguns sítios não existia qualquer regularidade de formação. No entanto, descendo mais, para lá do limite que indiquei, o intervalo diminuía e as paredes começavam a ser paralelas, embora, até determinada altura, continuassem a ser diferentes na matéria e no aspecto da sua superfície. Chegando a cinquenta pés de profundidade começava a regularidade perfeita. As paredes eram completamente uniformes quanto à substância, à cor e à direção lateral, sendo a matéria um granito muito negro e brilhante, e o intervalo entre os dois lados vinte jardas exatas. Compreenderão melhor a forma precisa deste fosso graças a um desenho feito no local, pois, felizmente, tinha comigo um bloco de notas e um lápis, que sempre guardei cuidadosamente ao longo das aventuras subsequentes e aos quais devo numerosas notas de toda a espécie, que de outra forma teriam desaparecido da minha memória.

A figura 1 indica o contorno geral do abismo, exceto as cavidades menores das paredes, que aliás eram muito frequentes, correspondendo cada cavidade a uma saliência oposta. O fundo do fosso estava coberto, até uma altura de três ou quatro polegadas por uma poeira quase imperceptível, debaixo da qual havia um prolongamento do granito. À direita, na extremidade inferior, vê-se assinalada uma pequena abertura: é a fenda de que falei há pouco e que foi o objete da nossa segunda visita. Entrámos nela com decisão, afastando uma quantidade de silvas que nos obstruíam a passagem assim como numerosas pedras aguçadas, cuja forma nos lembrava pontas de setas. No entanto, sentimo-nos encorajados a prosseguir, ao distinguir uma luz ténue que vinha da outra extremidade. Depois de termos avançado cerca de trinta pés com a maior dificuldade, descobrimos que a abertura em questão era uma abóbada baixa e de forma regular, com um fundo da mesma poeira imperceptível que cobria o abismo principal. Uma luz intensa brilhou então sobre nós e, ao dobrarmos uma curva acentuada, encontrámo-nos numa galeria mais elevada, em tudo semelhante, exceto na forma longitudinal, àquela que acabávamos de deixar. A figura 2 representa o seu aspecto geral.














O comprimento total deste fosso, começando pela abertura a e torneando a curva b até à extremidade d é de 550 jardas. Em c descobrimos uma pequena fenda semelhante àquela por onde tínhamos saído do outro abismo e que também estava cheia de silvas e de pedras amareladas em forma de flecha. Abrimos caminho através da fenda e verificámos que a uma distância de 40 pés desembocava noutro abismo. Este era igualmente semelhante ao primeiro, exceto na sua forma longitudinal representada na figura 3.







O comprimento total do terceiro fosso devia ser de 320 jardas. No ponto a existia uma abertura com uns seis pés de largura, que se prolongava na rocha a uma profundidade de quinze pés, onde terminava numa camada de marga; para diante não havia mais fossos, como aliás já esperávamos. Íamos deixar aquela fenda, onde a luz mal penetrava, quando Peters me chamou a atenção para uma série de entalhes de aspecto bizarro que decoravam a superfície da marga onde terminava aquele beco sem saída. Com um ligeiro esforço de imaginação seria fácil tomar-se o entalhe situado mais à esquerda, ou mais ao Norte, pela representação de uma figura humana de pé com os braços estendidos. Quanto aos outros, tinham uma certa semelhança com caracteres alfabéticos e esta opinião subsistiu — que eram realmente caracteres — acabando Peters por acreditar nisso. No entanto, acabei por o convencer do seu erro, chamando-lhe à atenção para o solo da fenda, onde entre a poeira apanhámos bocados de marga, sendo evidente, que devido a qualquer convulsão, tinham saltado da superfície onde apareciam os entalhes e que se adaptavam perfeitamente às incisões da parede, prova de que tudo aquilo era obra da Natureza. A figura 5 representa uma cópia exata do conjunto.






Depois de nos termos convencido que aquelas estranhas cavidades não nos ofereciam nenhum meio para sairmos da nossa prisão, retomámos o nosso caminho em direção ao cimo da colina, abatidos e desesperados. Durante as vinte e quatro horas seguintes nada nos aconteceu que valha a pena relatar, a não ser que, examinando o terreno a Este do terceiro fosso, descobrimos dois ou três buracos triangulares de grande profundidade, cujas paredes também eram de granito negro. Pensamos que não valia a pena descer nestes buracos, porque não tinham saída e pareciam simples poços naturais. Cada um tinha cerca de vinte pés de circunferência e a sua forma, assim como a sua posição relativamente ao terceiro fosso, está assinalada na figura 4.



continua na página 269...


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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.

Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).

Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.

Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.



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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849


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