quinta-feira, 30 de abril de 2020

O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (4)

Simone de Beauvoir



02. A Experiência Vivida




O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR



continuando...


Além dessa esperança que o brinquedo da boneca concretiza a vida caseira fornece também à menina possibilidade de afirmação. Grande parte do trabalho doméstico pode ser realizado por uma menina muito criança; habitualmente dele os meninos são dispensados; mas permite-se, pede-se mesmo à irmã, que varra, tire o pó, limpe os legumes, lave um recém-nascido, tome conta da sopa. A irmã mais velha, em particular, é assim amiúde associada às tarefas maternas. Por comodidade, hostilidade ou sadismo, a mãe descarrega nela boa parte de suas funções; ela é então precocemente integrada no universo da seriedade; o sentido de sua importância ajudá-la-á a assumir sua feminilidade, mas a gratuidade feliz, a despreocupação infantil são-lhe recusadas. Mulher antes da idade, ela conhece cedo demais os limites que essa especificação impõe ao ser humano; chega adulta à adolescência, o que dá à sua história um caráter singular. A menina sobrecarregada de tarefas pode ser prematuramente escrava, condenada a uma existência sem alegria. Mas se só lhe pedem um esforço ao seu alcance, ela experimenta o orgulho de ser eficiente como um adulto e regozija-se de ser solidária com as "pessoas grandes". Essa solidariedade é possível pelo fato de não haver entre a menina e a dona de casa uma distância considerável. Um homem especializado em seu ofício acha-se separado da fase infantil por anos de aprendizado; as atividades paternas são profundamente misteriosas para o menino; neste, mal se esboça o homem que será mais tarde. Ao contrário, as atividades da mãe são acessíveis à menina; "já é uma mulherzinha", dizem os pais; e julga-se por vezes que ela é mais precoce do que o menino: em verdade, se se acha mais próxima da fase adulta é porque esta fase permanece mais infantil na maioria das mulheres. O fato é que ela se sente precoce, que se sente lisonjeada por desempenhar junto dos irmãos mais jovens o papel de "mãezinha"; torna-se facilmente importante, fala sensatamente, dá ordens, assume ar de superioridade sobre os irmãos encerrados no círculo infantil, fala com a mãe em pé de igualdade. 

Apesar dessas compensações, não aceita sem lamento o destino que lhe é apontado; crescendo, inveja a virilidade dos rapazes. Acontece que pais e avós escondem mal que teriam preferido um homem a uma mulher; ou demonstram maior afeição pelo irmão do que pela irmã: inquéritos provaram que os pais, em sua maioria, preferem ter filhos a ter filhas. Falam aos meninos com mais gravidade, mais estima, reconhecem-lhes mais direitos; os próprios meninos tratam as meninas com desprezo; brincam entre si, não admitem meninas em seus bandos, insultam-nas: entre outros insultos chamam-nas "mijonas", reavivando com tais palavras a secreta humilhação infantil da menina. Na França, nas escolas mistas, a casta dos meninos oprime e persegue deliberadamente a das meninas. Entretanto, se estas querem entrar em competição com eles, bater-se com eles, censuram-nas. Elas invejam duplamente as atividades pelas quais os meninos se singularizam: elas sentem um desejo espontâneo de afirmar seu poder sobre o mundo e protestam contra a situação inferior à qual são condenadas. Sofrem, entre outras coisas, a proibição de subir nas árvores, nas escadas, nos telhados. Adler observa que as noções de alto e baixo têm grande importância, a ideia de elevação espacial implicando uma superioridade espiritual, como se vê através de numerosos mitos heroicos; atingir um cume, um pico, é emergir para além do mundo dado, como sujeito soberano; é entre meninos um pretexto freqüente de desafio. A menina a quem essas proezas são proibidas e que, sentada ao pé de uma árvore ou de um rochedo, vê acima dela os meninos triunfantes, sente-se inferior de corpo e alma. Do mesmo modo, se é deixada para trás numa corrida ou numa prova de salto, se é jogada no chão numa briga, ou simplesmente mantida à margem.

Quanto mais a criança cresce, mais o universo se amplia e mais a superioridade masculina se afirma. Muitas vezes, a identificação com a mãe não mais se apresenta como solução satisfatória; se a menina aceita, a princípio, sua vocação feminina, não o faz porque pretenda abdicar: é, ao contrário, para reinar; ela quer ser matrona porque a sociedade das matronas parece-lhe privilegiada; mas quando suas frequentações, estudos, jogos e leituras a arrancam do círculo materno, ela compreende que não são as mulheres e sim os homens os senhores do mundo. É essa revelação — muito mais do que a descoberta do pênis — que modifica imperiosamente a consciência que ela toma de si mesma.

A hierarquia dos sexos manifesta-se a ela primeiramente na experiência familiar; compreende pouco a pouco que, se a autoridade do pai não é a que se faz sentir mais quotidianamente, é entretanto a mais soberana; reveste-se ainda de mais brilho pelo fato de não ser vulgarizada; mesmo se, na realidade, é a mulher que reina soberanamente em casa, tem ela, em geral, a habilidade de pôr à frente a vontade do pai; nos momentos importantes é em nome dele que ela exige, recompensa ou pune. A vida do pai é cercada de um prestígio misterioso: as horas que passa em casa, o cômodo em que trabalha, os objetos que o cercam, suas ocupações e manias têm um caráter sagrado. Ele é quem alimenta a família, é o responsável e o chefe. Habitualmente trabalha fora e é através dele que a casa se comunica com o resto do mundo: ele é a encarnação desse mundo aventuroso, imenso, difícil, maravilhoso ; ele é a transcendência, ele é Deus [1]. É o que experimenta carnalmente a criança na força dos braços que a erguem, na força do corpo contra o qual se encolhe. Por ele a mãe é destronada como outrora Ísis pelo deus Rá e a Terra pelo Sol. Mas a situação da criança é, então, profundamente mudada: é chamada a tornar-se um dia uma mulher semelhante a sua mãe todo-poderosa — nunca será o pai soberano; o laço que a ligava à mãe era uma emulação ativa. Do pai ela só pode esperar passivamente uma valorização. O menino apreende a superioridade paterna através de um sentimento de rivalidade: ao passo que a menina a sofre com uma admiração impotente. Já disse que isso que Freud chama complexo de Electra não é, como ele pretende, um desejo sexual; é uma abdicação profunda do indivíduo que consente em ser objeto na submissão e na adoração. Se o pai demonstra ternura pela filha, esta sente a existência magnificamente justificada; sente-se dotada de todos os méritos que as outras procuram adquirir com dificuldade: sente-se satisfeita e divinizada. É possível que durante toda a sua vida volte a procurar, com nostalgia, essa plenitude e essa paz. Se esse amor lhe é recusado, pode sentir- -se para sempre culpada e condenada, ou buscar alhures uma valorização de si e tornar-se indiferente ao pai, e até hostil. O pai não é, de resto, o único a deter as chaves do mundo; todos os homens participam normalmente do prestígio viril; não é permitido considerá-los como "substitutos" do pai. É imediatamente na qualidade de homens, que avôs, irmãos mais velhos, tios, pais das colegas, amigos da casa, professores, padres, médicos, fascinam a menina. A consideração comovida que as mulheres adultas testemunham ao Homem bastaria para colocá-lo num pedestal [2].


[1] "Sua generosa pessoa inspirava-me um grande amor e um medo e n o r m e . . . " diz Mme de Noailles falando do pai. "Ele antes de tudo me espantava. O primeiro homem espanta uma menina. Eu sentia bem que tudo dependia dele."

[2] E digno de nota o fato de que o culto do pai se encontre principalmente na mais velha das filhas; o homem interessa-se mais por uma primeira paternidade; muitas vezes ele é que consola a filha, como consola o filho quando a mãe é açambarcada pelos novos filhos, e a filha se apega ardentemente a ele. A caçula ao contrário nunca possui o pai sem partilha; ela tem em geral ciúmes dele e da irmã mais velha; ou ela se fixa nessa primogênita que a complacência do pai reveste de grande prestígio, ou ela se volta para a mãe, ou se revolta contra a família e procura apoio fora. Nas famílias numerosas a caçula encontra de outra maneira um lugar privilegiado. Naturalmente numerosas circunstâncias podem motivar predileções singulares no pai. Mas quase todos os casos que conheço confirmam essa observação acerca das atitudes invertidas da mais velha e da mais jovem.

Tudo contribui para confirmar essa hierarquia aos olhos da menina. Sua cultura histórica, literária, as canções, as lendas com que a embalam são uma exaltação do homem. São os homens que fizeram a Grécia, o Império Romano, a França e todas as nações, que descobriram a terra e inventaram os instrumentos que permitem explorá-la, que a governaram, que a povoaram de estátuas, de quadros e de livros. A literatura infantil, a mitologia, contos, narrativas, refletem os mitos criados pelo orgulho e os desejos dos homens: é através de olhos masculinos que a menina explora o mundo e nele decifra seu destino. A superioridade masculina é esmagadora: Perseu, Hércules, Davi, Aquiles, Lançarote, Duguesclin, Bayard, Napoleão, quantos homens para uma Joana d'Arc; e, por trás desta, perfila-se a grande figura masculina de São Miguel Arcanjo! Nada mais tedioso do que os livros que traçam vidas de mulheres ilustres: são pálidas figuras ao lado das dos grandes homens; e em sua maioria banham-se na sombra de algum herói masculino. Eva não foi criada para si mesma e sim como companheira de Adão, e de uma costela dele; na Bíblia há poucas mulheres cujas ações sejam notáveis: Rute não fez outra coisa senão encontrar um marido. Ester obteve a graça dos judeus ajoelhando-se diante de Assuero, e ainda assim não passava de um instrumento dócil nas mãos de Mardoqueu; Judite teve mais ousadia, mas ela também obedecia aos sacerdotes e sua proeza tem um vago sabor equívoco: não se poderia compará-la ao triunfo puro e brilhante do jovem Davi. As deusas da mitologia são frívolas ou caprichosas e todas tremem diante de Júpiter; enquanto Prometeu rouba soberbamente o fogo do céu, Pandora abre a caixa das desgraças. Há, é certo, algumas feiticeiras, algumas mulheres velhas que exercem nos contos um poder temível. Entre outras, no Jardim do Paraíso de Andersen, a figura da Mãe dos ventos lembra a Grande Deusa primitiva: seus quatro enormes filhos obedecem-lhe tremendo, ela os surra e os encerra dentro de sacos quando se conduzem mal. Mas tais personagens não são atraentes. Mais poderosas são as fadas, as sereias, as ondinas que escapam ao domínio do homem. Sua existência é incerta, porém, e apenas individualizada; elas intervém no mundo humano sem ter destino próprio: a partir do dia em que se torna mulher, a pequena sereia de Andersen conhece o jugo do amor e o sofrimento passa a ser seu quinhão. Nas narrativas contemporâneas, como nas lendas antigas, o homem é o herói privilegiado. Os livros de Mme de Ségur são uma curiosa exceção: descrevem uma sociedade matriarcal em que o marido, quando não está ausente, desempenha um papel ridículo; mas de costume a imagem do pai é, como no mundo real, aureolada de glória. É sob a égide do pai divinizado pela ausência que se desenrolam os dramas femininos de Little Women. Nos romances de aventura são os meninos que fazem a volta ao mundo, que viajam como marinheiros nos navios, que se alimentam na floresta com a fruta-pão. Todos os acontecimentos importantes ocorrem através dos homens. A realidade confirma esses romances e essas lendas. Se a menina lê os jornais, se ouve a conversa dos adultos, constata que hoje, como outrora, os homens dirigem o mundo. Os chefes de Estado, os generais, os exploradores, os músicos, os pintores que ela admira são homens; são homens que fazem seu coração bater de entusiasmo.

Esse prestígio reflete-se no mundo sobrenatural. Geralmente, em virtude do papel que assume a religião na vida das mulheres, a menina, mais dominada pela mãe do que o irmão, sofre mais, igualmente, as influências religiosas. Ora, nas religiões ocidentais, Deus Pai é um homem, um ancião dotado de um atributo especificamente viril: uma opulenta barba branca [3]:. Para os cristãos, Cristo é mais concretamente ainda um homem de carne e osso e de longa barba loura. Os anjos, segundo os teólogos, não têm sexo, mas têm nomes masculinos e manifestam-se sob a forma de belos jovens. Os emissários de Deus na terra: o papa, os bispos de quem se beija o anel, o padre que diz a missa, o que prega, aquele perante o qual se ajoelham no segredo do confessionário, são homens. Para uma menina piedosa, as relações com o pai eterno são análogas às que ela mantém com o pai terrestre; como se desenvolvem no plano do imaginário, ela conhece até uma demissão mais total. A religião católica, entre outras, exerce sobre ela a mais perturbadora das influências [4]. A Virgem acolhe de joelhos as palavras do anjo: "Sou a serva do Senhor", responde. Maria Madalena prostra-se aos pés de Cristo e os enxuga com seus longos cabelos de mulher. As santas declaram de joelhos seu amor ao Cristo radioso. De joelhos no odor do incenso, a criança abandona-se ao olhar de Deus e dos anjos: um olhar de homem. Insistiu-se muitas vezes a respeito das analogias entre a linguagem erótica e a linguagem mística como as falam as mulheres. Assim é, por exemplo, que Santa Teresa do Menino Jesus escreve:

Ó meu Bem amado, por teu amor aceito não ver nesta terra a doçura de teu olhar, não sentir o inexprimível beijo de tua boca, 'mas suplico-te que me abrases com teu amor. . .


Meu bem Amado, de teu sorriso 
jaze-me logo entrever a doçura. 
Ah! deixa-me em meu ardente delírio, 
Sim, deixa esconder-me em teu coração! [5]


Quero ser fascinada por teu olhar divino, quero tornar-me a presa de teu amor. Um dia, tenho a esperança, cairás impetuosamente sobre mim transportando-me para o lume do amor, tu me imergirás enfim nesse ardente abismo a fim de fazer de mim, e para sempre, a feliz vítima dele.


[3] "Por outro lado não sofria mais de minha incapacidade de ver Deus porque conseguira desde pouco tempo imaginá-lo com os traços de meu falecido avô; essa imagem, em verdade, era mais humana do que divina; eu não demorava em divinizá-la separando a cabeça de meu avô do busto e colocando-a mentalmente no fundo de um céu azul onde nuvens brancas lhe serviam de colar", conta Yassu Gauclère em L'Orange bleue.

[4] Está fora de dúvida que as mulheres são infinitamente mais passivas, entregues ao homem, servis e humilhadas nos países católicos: Itália, Espanha, França, do que nos países protestantes: países escandinavos e anglo-saxões. E isso vem em grande parte de sua própria atitude: o culto da Virgem, a confissão etc, convida-as ao masoquismo.

[5] Mon Bien-Aimé de ton premier sourire
Fais-moi bientôt entrevoir la douceur.
Ah! laisse-moi dans mon brûlant delire,
Oui, laisse-moi me cacher en ton coeur!


Mas disso não se deve concluir que essas efusões sejam sempre sexuais; quando a sexualidade feminina se desenvolve, vê-se antes tomada pelo sentimento religioso que a mulher votou ao homem desde a infância. É verdade que a menina conhece junto do confessor, e até ao pé do altar deserto, uma sensação muito próxima da que experimentará mais tarde nos braços de seu amante: é que o amor feminino é uma das formas da experiência em que uma consciência se faz objeto para um ser que a transcende; e são também essas delícias passivas que a jovem devota degusta na sombra da igreja.

Prostrada, com o rosto afundado nas mãos, ela conhece o milagre da renúncia; de joelhos, sobe ao céu; seu abandono nos braços de Deus assegura-lhe uma Assunção envolvida em nuvens e anjos. É sobre essa maravilhosa experiência que ela calca seu futuro terrestre. A criança pode também descobri-lo por outros caminhos: tudo a convida a entregar-se em sonho aos braços dos homens a fim de ser transportada para um céu de glória. Ela aprende que para ser feliz é preciso ser amada; para ser amada é preciso aguardar o amor. A mulher é a Bela Adormecida no bosque, Cinderela, Branca de Neve, a que recebe e suporta. Nas canções, nos contos, vê-se o jovem partir aventurosamente em busca da mulher; ele mata dragões, luta contra gigantes; ela acha-se encerrada em uma torre, um palácio, um jardim, uma caverna, acorrentada a um rochedo, cativa, adormecida: ela espera. Um dia meu príncipe virá... Some day he'll come along, the man I love... Os refrões populares insuflam-lhe sonhos de paciência e esperança. A suprema necessidade para a mulher é seduzir um coração masculino; mesmo intrépidas, aventurosas, é a recompensa a que todas as heroínas aspiram; e o mais das vezes não lhes é pedida outra virtude senão a beleza. Compreende-se que a preocupação da aparência física possa tornar- se para a menina uma verdadeira obsessão; princesas ou pastoras, é preciso sempre ser bonita para conquistar o amor e a felicidade; a feiura associa-se cruelmente à maldade, e, quando as desgraças desabam sobre as feias, não se sabe muito bem, se são seus crimes ou sua feiura que o destino pune. Amiúde, as jovens belezas destinadas a um futuro glorioso começam aparecendo num papel de vítima; as histórias de Geneviève de Brabant, de Grisélidis, não são tão inocentes como parecem; amor e sofrimento nelas se entrelaçam de maneira perturbadora; é caindo no fundo da abjeção que a mulher assegura para si mesma os mais deliciosos triunfos; quer se trate de Deus ou de um homem, a menina aprende que, aceitando as mais profundas demissões, se tornará todo-poderosa; ela se compraz em um masoquismo que lhe promete supremas conquistas. Santa Blandina, branca e ensanguentada nas garras dos leões, Branca de Neve jazendo como uma morta em um esquife de vidro, a Bela Adormecida, Atala desfalecida, toda uma coorte de ternas heroínas machucadas, passivas, feridas, ajoelhadas, humilhadas, ensinam à jovem irmã o fascinante prestígio da beleza martirizada, abandonada, resignada. Não é de espantar que, enquanto o irmão brinca de herói, a menina desempenhe de bom grado papel de mártir: os pagãos deitam-na às feras, Barba Azul arrasta-a pelos cabelos, o esposo-rei exila-a no fundo das florestas; ela se resigna, sofre, morre e sua fronte cobre-se de glória. "Ainda muito menina, eu almejava conquistar a ternura dos homens, inquietá-los, ser salva por eles, morrer em todos os braços", escreve Mme de Noailles. Encontra-se um exemplo notável desses devaneios masoquistas em Voile Noire de Marie Le Hardouin.


Aos 7 anos, não sei com que costela fabricava meu primeiro homem. Era grande, esbelto, extremamente jovem, vestido de cetim preto e com longas mangas arrastando pelo chão. Seus belos cabelos louros caíam- -lhe em pesados cachos sobre os ombros... Chamava-o Edmond... Aconteceu um dia que lhe dei dois irmãos. . . Esses três irmãos: Edmond, Charles e Cédric, todos os três vestidos de cetim preto, fizeram-me conhecer estranhas beatitudes. Seus pés calçados de seda eram tão belos e suas mãos tão frágeis que toda espécie de impulso subia-me à alma. . . Tornei-me sua irmã Marguerite. .. Gostava de me representar a mim mesma submissa à vontade de meus irmãos e totalmente à mercê deles. Sonhava que meu irmão mais velho, Edmond, tinha direito de vida e morte sobre mim. Eu não tinha nunca a permissão de erguer os olhos para seu rosto. Ele mandava açoitar-me por qualquer pretexto. Quando me dirigia a palavra, eu ficava tão transtornada pelo temor e a tristeza que não achava o que lhe responder e balbuciava sem cessar: "Simi meu senhor", "Não, meu senhor" e saboreava a estranha delícia de me sentir i d i o t a . . , Quando o sofrimento que ele me impunha era forte demais, eu murmurava "Obrigada, meu senhor" e ocorria um momento em que, quase desfalecendo de sofrimento, para não gritar eu pousava os lábios na mão dele enquanto, com algum impulso a quebrar-me enfim o coração, eu atingia um desses estados em que se deseja morrer por excesso de felicidade.




continua página 34...



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As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.




Simone de Beauvoir - Documentário





quarta-feira, 29 de abril de 2020

Julio Verne - A Volta ao Mundo em 80 Dias, Capítulo XVIII

Júlio Verne


A Volta ao Mundo em 80 Dias





CAPÍTULO XVIII
EM QUE PHILEAS FOGG, PASSEPARTOUT, FIX, CADA QUAL PARA
SEU LADO, VÃO TRATAR DOS SEUS NEGÓCIOS






Durante os últimos dias da travessia, o tempo foi bastante mau. O vento ficou mais forte. Tendo virado para noroeste, contrariava o marcha do paquete. O Rangoon, muito instável, balançou consideravelmente, e os passageiros tiveram direito de queixar-se das grandes vagas que o vento levantava ao largo e que os fatigavam. 

Durante as jornadas de 3 e 4 de novembro, aconteceu uma espécie de tempestade. A borrasca agitou o mar com veemência. O Rangoon teve de pôr-se à capa durante metade do dia, conservando-se com dez voltas de hélice apenas, para não apanhar a vaga de frente. Todas as velas tinham sido colhidas, e o vendaval assoviava pela cordoalha.

A velocidade do vapor diminuiu, como bem se imagina, consideravelmente, e pôde-se calcular que chegaria a Hong Kong com vinte horas de atraso em relação ao tempo regulamentar, ou talvez mais, se a tempestade não cessasse. Phileas Fogg assistia ao espetáculo de um mar furioso, que parecia lutar diretamente contra ele, com sua habitual impassibilidade. Sua fronte não se lhe ensombrou por um instante sequer, e, contudo, uma demora de vinte horas poderia comprometer-lhe a viagem, fazendo-o perder o paquete para Yokohama. Mas este homem sem nervos não experimentava nem impaciência nem aborrecimento. Parecia até que a tempestade entrava no seu programa, que fora prevista. Mrs. Aouda, que conversou com o seu companheiro a respeito deste contratempo, achou-o tão sossegado como em outras ocasiões. Fix, este, não via as coisas do mesmo jeito. Pelo contrário. A tempestade o deixava contente. Sua satisfação chegaria mesmo a não conhecer limites, se o Rangoon fosse obrigado a fugir frente à tormenta. Todas estes atrasos lhe caíam bem, porque obrigariam o senhor Fogg a ficar alguns dias em Hong Kong. Em suma, o céu, com as suas rajadas e as suas borrascas, favorecia-lhe o jogo. Passava até um pouco mal, mas que importava? Não contava suas náuseas, e, quando o corpo se lhe estorcia com o enjoo, seu espírito exultava com imensa satisfação.

Quanto a Passepartout, podem adivinhar em que estado de cólera mal dissimulada passou este tempo de provação. Até ali tudo tinha ido tão bem! A terra e a água pareciam estar dedicadas a seu patrão. Paquetes e estradas de ferro obedeciam-lhe. O vento e o vapor uniam-se para favorecer sua viagem. A hora dos desenganos teria enfim soado? Passepartout, como se as vinte mil libras da aposta fossem sair de seu bolso, já não vivia. Esta tempestade o exasperava, este vendaval o deixava furioso, e teria de boa vontade fustigado aquele mar desobediente! Pobre rapaz! Fix ocultou-lhe com todo o cuidado sua satisfação pessoal, e fez bem, porque se Passepartout tivesse adivinhado o contentamento secreto de Fix, Fix teria passado um mau quarto de hora.

Passepartout, durante toda a duração da borrasca, permaneceu na coberta do Rangoon. Não teria podido conservar-se embaixo; subia na mastreação; causava assombro à tripulação, e ajudava em tudo com a ligeireza de um macaco. Cem vezes interrogava o capitão, os oficiais, os marinheiros, que não podiam deixar de rir ao verem o rapaz tão alterado. Passepartout queria porque queria saber quanto tempo duraria a tempestade. Mandavam-no para o barômetro, que não se resolvia a subir. Passepartout sacudia o barômetro, mas não acontecia nada, nem com as sacudidelas, nem com as injúrias com que cobria o irresponsável instrumento.

Afinal a tormenta se acalmou. O estado do mar se modificou na jornada de 4 de novembro. O vento saltou dois quartos para o sul e tornou-se favorável. Passepartout serenou com o tempo. Puderam-se largar as velas de gáveas e as velas grandes, e o Rangoon retomou sua rota com maravilhosa rapidez. Mas não era possível recuperar todo o tempo perdido. Não havia remédio senão resignar-se à sorte, e a terra só foi avistada no dia 6, às cinco da manhã. O roteiro de Phileas Fogg indicava para o dia 5 a chegada do vapor. Ora, chegava-se só no dia 6. Era um atraso de vinte e quatro horas, e a partida para Yokohama estava necessariamente perdida.

Às seis horas, o piloto subiu a bordo do Rangoon e tomou o seu lugar na ponte de comando, para dirigir o navio através dos escolhos até o porto de Hong Kong. Passepartout morria de vontade de interrogar este homem, de perguntar se o paquete para Yokohama tinha deixado Hong Kong. Mas não se atrevia, preferindo conservar até o fim um pouco de esperança. Tinha confiado suas inquietações a Fix, que — manhoso — procurava consolá-lo, dizendo-lhe que Mr. Fogg poderia tomar o próximo paquete. Isso deixava Passepartout ainda mais fulo.

Mas se Passepartout não se atrevia a interrogar o piloto, Mr. Fogg, depois de ter consultado o seu Bradshaw, perguntou-lhe com voz tranquila se sabia quando partia um vapor de Hong Kong para Yokohama.

— Amanhã, na maré da manhã, respondeu o piloto.

— Ah! exclamou Mr. Fogg, sem demostrar nenhuma admiração.

Passepartout, que estava presente, sentiu desejos de abraçar o piloto, ao qual Fix desejaria torcer o pescoço.

— Qual é o nome desse vapor? perguntou Mr. Fogg.

— O Carnatic, respondeu o piloto.

— Não era ontem que deveria partir?

— Sim, senhor, mas teve de reparar uma das caldeiras, e sua partida foi adiada para amanhã.

— Obrigado, respondeu Mr. Fogg, que no seu passo automático voltou a descer para o salão do Rangoon.

Quanto a Passepartout, agarrou a mão do piloto e apertou-a vigorosamente, dizendo:

— Piloto, o senhor, o senhor é ótimo!

O piloto nunca soube porque é que suas respostas lhe granjearam tão amigável expansão. A um apito da máquina voltou a subir para a ponte e dirigiu o paquete pelo meio da esquadrilha de juncos, tankas, barcos pesqueiros, navios de toda a espécie, que embaraçavam a entrada para Hong Kong.

À uma hora o Rangoon estava no cais, e os passageiros desembarcaram.

Nesta ocasião, convenhamos, o acaso favorecera Phileas Fogg de modo único.

Sem a necessidade de reparar suas caldeiras, o Carnatic teria partido na data de 5 de novembro, e os viajantes para o Japão teriam sido obrigados a esperar oito dias pelo paquete seguinte. Mr. Fogg ficava, é verdade, com um atraso de vinte e quatro horas, mas este atraso não poderia ter consequências funestas para o resto da viagem.

Com efeito, o paquete que faz de Yokohama a São Francisco a travessia do Pacífico estava em correspondência direta com o paquete para Hong Kong, e não poderia partir sem que este tivesse chegado. Evidentemente haveria vinte e quatro horas de demora em Yokohama; mas durante os vinte de dois dias que dura a travessia do Pacífico, seria fácil recuperá-las. Phileas Fogg achava-se pois, com a diferença de quase vinte quatro horas, nas condições de seu programa, trinta e cinco dias depois de ter partido de Londres.

Como o Carnatic só partia no dia seguinte às cinco horas da manhã, Mr. Fogg tinha pela frente dezesseis horas para tratar dos seus negócios, isto é, dos que diziam respeito a Mrs. Aouda. Ao desembarcar do vapor, ofereceu o braço à jovem e conduziu-a para um palanquim. Pediu aos carregadores que lhe indicassem um hotel, e eles sugeriram o Hotel do Club. O palanquim se pôs a caminho, seguido por Passepartout, e vinte minutos depois chegava ao seu destino.

Um apartamento foi reservado para a jovem, e Phileas Fogg cuidou para que não lhe faltasse nada. Depois disse a Mrs. Aouda que ia imediatamente à procura do parente aos cuidados do qual devia deixá-la entregue em Hong Kong. Ao mesmo tempo deu ordem a Passepartout para permanecer no hotel até sua volta, para que a jovem não ficasse só.

O gentleman fez-se conduzir à Bolsa. Ali deveriam forçosamente conhecer um personagem como o respeitável Jejeeh, que figurava entre os mais ricos comerciantes da cidade.

O corretor a quem Mr. Fogg se dirigiu conhecia efetivamente o negociante parsi. Mas, há dois anos, já não residia na China. Depois de fazer fortuna, tinha se estabelecido na Europa — na Holanda, supunha — o que se explicava pelas muitas relações que tivera com este país durante a sua existência comercial.

Phileas Fogg voltou para o Hotel do Club. Em seguida mandou pedir licença a Mrs. Aouda para se apresentar a ela e, sem mais preâmbulos, participou-lhe que o respeitável Jejeeh não residia mais em Hong Kong, e que habitava provavelmente na Holanda.

A isto, Mrs. Aouda não respondeu de pronto. Passou a mão pela fronte, e ficou alguns momentos a refletir. Depois, com sua voz doce:

— Que devo fazer, senhor Fogg? disse.

— É muito simples, respondeu o gentleman. Voltar para a Europa.

— Mas não posso abusar...

— Não abusa, e sua presença não perturba em nada meu programa... Passepartout?

— Senhor? respondeu Passepartout.

— Vá ao Carnatic e reserve três cabinas. Passepartout, encantado em continuar a viagem em companhia da jovem, que era muito amável com ele, logo saiu do Hotel do Club.





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Julio Verne nasceu em Nantes em 8 de fevereiro de 1828. Fugiu de casa com 11 anos para ser grumete e depois marinheiro. Localizado e recuperado, retornou ao lar paterno. Em um furioso ataque de vergonha por sua breve e efêmera aventura, jurou solenemente (para a sorte de seus milhões de leitores) não voltar a viajar senão em sua imaginação e através de sua fantasia.

Promessa que manteve em mais de oitenta livros.

Sua adolescência transcorreu entre contínuos choques com o pai, para quem as veleidades exploratórias e literárias de Júlio pareciam totalmente ridículas.

Finalmente conseguiu mudar-se para Paris onde entrou em contato com os mais prestigiados literatos da época. Em 1850 concluiu seus estudos jurídicos e, apesar insistência do pai para que voltasse a Nantes, resistiu, firme na decisão de tornar-se um profissional das letras.

Foi por esta época que Verne, influenciado pelas conquistas científicas e técnicas da época, decide criar uma literatura adaptada à idade científica, vertendo todos estes conhecimentos em relatos épicos, enaltecendo o gênio e a fortaleza do homem em sua luta por dominar e transformar a natureza.

Em 1856 conheceu Honorine de Vyane, com quem casou em 1857.

Por essa época, era um insatisfeito corretor na Bolsa, e resolveu seguir o conselho de um amigo, o editor P. J. Hetzel, que será seu editor in eternum, e converteu um relato descritivo da África no Cinco Semanas em Balão (1863). Obteve êxito imediato. Firmou um contrato de vinte anos com Hetzel, no qual, por 20.000 francos anuais, teria de escrever duas novelas de novo estilo por ano. O contrato foi renovado por Hetzel e, mais tarde, por seu filho. E assim, por mais de quarenta anos, as Voyages Extraordinaires apareceram em capítulos mensais na revista Magasin D'éducation et de Récréation.

Em A Volta ao Mundo em 80 Dias, encontramos, ao mesmo tempo, muito da breve experiência de Verne como marinheiro e como corretor de Bolsa. Nada mais justo, também, que o novo estilo literário inaugurado por Júlio Verne, fosse utilizado por uma nova arte que surgia: o cinema. Da Terra à Lua (Georges Mélies, 1902), La Voyage a travers l'impossible (Georges Mélies, 1904), 20.000 lieus sous les mers (Georges Mélies, 1907), Michael Strogof (J. Searle Dawley, 1910), La Conquête du pôle (Georges Mélies, 1912) foram alguns dos primeiros filmes baseados em suas obras. Foram inúmeros.

A Volta ao Mundo em 80 dias foi filmado em 1956, com enredo milionário, dirigido por Michael Anderson, música de Victor Young, direção de fotografia de Lionel Lindon. David Niven fez Phileas Fogg, Cantinflas, Passepartout, Shirley MacLaine, Aouda. Em 1989, foi aproveitado para uma série de TV, com a participação da BBC, dirigida por Roger Mills. No mesmo ano, outra série de TV, agora nos EE.UU., dirigida por Buzz Kulik, com Pierce Brosnan (Phileas Fogg), Eric Idle (Passepartout), Julia Nickson-Soul (Aouda), Peter Ustinov (Fix).

Apesar de tudo, a vida de Verne não foi fácil. Por um lado sua dedicação ao trabalho minou a tal ponto sua saúde que durante toda a vida sofreu ataques de paralisia. Como se fosse pouco, era diabético e acabou por perder vista e ouvido. Seu filho Michael lhe deu os mesmos problemas que dera ao pai e, desgraça das desgraças, um de seus sobrinhos lhe disparou um tiro à queima-roupa deixando-o coxo. Sua vida efetiva também não foi das mais tranquilas e todos os seus biógrafos admitem ter tido uma amante, um relacionamento que só terminou com a morte da misteriosa dama.

Verne também se interessou pela política, tendo sido eleito para o Conselho de Amiens em 1888 na chapa radical, reeleito em 1892, 1896 e 1900.

Morreu em 24 de Março de 1905


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Leia também:

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A Volta ao Mundo em 80 Dias é um romance de aventura escrito pelo francês Júlio Verne e lançado em 1873. A obra retrata a tentativa do cavalheiro inglês Phileas Fogg e seu valete, Passepartout, de circum-navegar o mundo em 80 dias.

Data da primeira publicação: 30 de janeiro de 1873
Autor: Júlio Verne
Editora: Pierre-Jules Hetzel
País: França
Personagens: Phileas Fogg, Passepartout, Princesa Aouda, Inspetor Fix, James Forster


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A Volta ao Mundo em 80 Dias, de Júlio Verne - Resenha






Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(b) - Talvez fosse culpa de Orlando...

Capítulo 1





Talvez fosse culpa de Orlando; mas, afinal, devemos culpar Orlando? A época era a elisabetana; sua moral não era a nossa; nem os poetas; nem o clima; nem mesmo os legumes. Tudo era diferente. O próprio clima, o calor e o frio do verão e do inverno eram, podemos crer, totalmente de outra feição. O dia brilhante e amoroso era tão completamente separado da noite como a terra da água. Os poentes mais vermelhos e mais intensos; as alvoradas mais brancas e mais luminosas. Nada sabia de nossa meia-luz crepuscular nem de nossa lânguida penumbra. A chuva ou caía com veemência ou nada. O sol brilhava ou havia a escuridão. Traduzindo isto para as regiões espirituais, como é seu costume, os poetas cantavam lindamente como as rosas fenecem e as pétalas caem. O momento é breve — cantavam; o momento acabou; uma longa noite será dormida por todos. Usar artifícios de estufas ou viveiros para prolongar ou preservar esses cravos e rosas não era de seu feitio. A insípidas complicações e ambiguidades de nossa época mais gradual e duvidosa eram desconhecidas para eles. A violência era tudo. A flor vicejava e murchava. O sol nascia e se punha. O amante amava e partia. E tudo o que os poetas diziam com rimas, os jovens traduziam na prática. As moças eram rosas, e suas estações tão breves quanto as das flores. Precisavam ser colhidas antes do anoitecer; pois o dia era curto, e o dia era tudo. Portanto, se Orlando seguia a tendência do clima, dos poetas e da própria época, e colhia sua flor no peitoral da janela mesmo com a neve cobrindo o chão e a rainha vigilante no corredor, não podemos culpá-lo. Ele era jovem; era ingênuo; só fazia o que a natureza lhe ordenava. Quanto à moça, ignoramos seu nome, tanto quanto a rainha Elizabeth. Poderia ser Doris, Clóris, Délia, ou Diana, pois ele fizera versos para todas elas; poderia igualmente ter sido uma dama da corte ou alguma aia. Pois o gosto de Orlando era amplo; não amava apenas as flores de jardim; as selvagens e as ervas daninhas sempre exerceram fascínio sobre ele.

Aqui, sem dúvida, revelamos rudemente — como um biógrafo pode — um traço curioso nele, que talvez possa ser explicado pelo fato de uma de suas avós ter usado avental e carregado baldes de leite. Alguns grãos da terra de Kent ou de Sussex se misturaram ao fino e delicado fluido proveniente da Normandia. Ele sustentava que a mistura da terra marrom e sangue azul era boa. É certo que sempre gostara da companhia de inferiores, especialmente dos letrados, cuja sabedoria frequentemente os mantém em nível inferior, como se houvesse uma afinidade sanguínea entre eles. Nesta fase de sua vida, em que a cabeça estava cheia de rimas, nunca ia para a cama sem emitir algum conceito, a face da filha do hospedeiro parecia mais fresca, e a sagacidade da sobrinha do guarda-caça mais veloz que a das senhoras da corte. Assim, começou a ir com frequência a Wapping Old Staire e às cervejarias à noite, envolto numa capa cinza para ocultar a estrela no pescoço e a jarreteira no joelho. Lá, com uma caneca diante de si, entre as alamedas de areia e campos de jogos de bola e toda a arquitetura simples desses lugares, ouvia histórias dos marinheiros, da miséria, horror e crueldade do mar das Antilhas; de como alguns perderam os dedos do pé, outros os narizes — pois a história oral nunca era tão refinada nem ricamente colorida quanto a escrita. Acima de tudo, gostava de ouvi-los disparar suas canções dos Açores, enquanto os papagaios, trazidos daquela região, bicavam os brincos em suas orelhas, batiam com os bicos duros e ávidos nos rubis em seus dedos e praguejavam de forma tão vil quanto seus donos. As mulheres eram pouco menos atrevidas em seu discurso e menos livres em seus modos do que os pássaros. Empoleiravam-se em seus joelhos, lançavam os braços ao redor de seu pescoço e, percebendo que algo fora do comum se escondia sob sua capa de pano grosso, ficavam tão ansiosas em chegar à descoberta quanto o próprio Orlando.

Não faltavam oportunidades. O rio estava agitado desde cedo com barcaças, balsas e embarcações de todos os tipos. Cada dia zarpava um belo navio rumo às Índias; de vez em quando um outro enegrecido e desconjuntado, com homens cabeludos a bordo, arrastava-se penosamente para ancorar. Ninguém sentia falta de um rapaz ou de uma moça que vadiassem um pouco a bordo depois do pôr do sol; nem erguia a sobrancelha se os mexeriqueiros os vissem dormindo profundamente, abraçados, entre os sacos de tesouro. Esta foi, sem dúvida, a aventura que aconteceu a Orlando, Sukey e o conde de Cumberland. O dia estava quente; seus amores tinham sido intensos; eles adormeceram entre os rubis. Tarde da noite, o conde, cuja fortuna estava ligada a empresas espanholas, veio verificar o saque sozinho, com uma lanterna. Projetou a luz num barril. Recuou assustado, praguejando. Abraçados junto ao casco, dois espíritos dormiam. Supersticioso por natureza, e com a consciência pesada por muitos crimes, o conde tomou o casal — eles estavam envoltos num manto vermelho, e o peito de Sukey era quase tão branco quanto as neves eternas da poesia de Orlando — por um espectro saído das tumbas dos marinheiros afogados, para acusá-lo. Benzeu-se. Jurou arrependimento. A fileira de asilos que ainda existe na Sheen Road é o fruto visível deste momento de pânico. Doze velhas pobres da paróquia hoje bebem chá e à noite bendizem o Senhor pelo teto sobre suas cabeças; por um amor ilícito num navio carregado de tesouros — mas omitimos a moral.

Logo, entretanto, Orlando se cansou, não apenas do desconforto desse tipo de vida e das tortuosas ruas dos arredores, mas também das maneiras primitivas do povo. Pois é preciso lembrar que o crime e a pobreza não tinham para os elisabetanos a mesma atração que têm para nós. Eles não possuíam a vergonha moderna de ter aprendido nos livros; nem a nossa crença de que ser filho de um açougueiro é uma bênção e não saber ler uma virtude; não imaginavam que o que chamamos “vida” e “realidade” estivesse relacionado de alguma forma com ignorância e brutalidade; nem tinham, na verdade, nenhum equivalente para estas duas palavras. Não foi para procurar a “vida” que Orlando andou entre eles; nem para procurar a “realidade” que os abandonou. Mas, depois de ouvir um certo número de vezes como Jakes perdera o nariz e Sukey a honra — eles contam histórias admiravelmente, é preciso admitir —, começou a ficar fatigado da repetição, pois um nariz só pode ser cortado de uma maneira, e a virgindade perdida de outra — ou assim lhe pareceu —, enquanto as artes e as ciências eram de uma diversidade tal que estimulavam sua curiosidade profundamente. Assim, embora levando deles boas recordações, deixou de frequentar as cervejarias, os jogos de boliche, pendurou a capa cinzenta no armário, deixou a estrela brilhar no pescoço e a jarreteira cintilar no joelho e voltou para a corte do rei Jaime. Era jovem, rico e belo. Ninguém poderia ter sido recebido com maior aclamação do que ele.

É claro que muitas damas estavam prontas a lhe conceder seus favores. Pelo menos três nomes foram livremente associados ao seu em matrimônio — Clorinda, Favila, Eufrosina — assim as chamou em seus sonetos.

Tomando-as por ordem: Clorinda era uma jovem de modos bastante graciosos; — é certo que Orlando tinha andado muito interessado nela por seis meses e meio; contudo ela tinha pestanas brancas e não podia suportar a visão de sangue. Uma lebre assada, trazida à mesa de seu pai, fez com que desmaiasse. Era também excessivamente influenciada pela Igreja e economizava sua roupa branca para dar aos pobres. Decidiu corrigir Orlando de seus pecados, o que o aborreceu tanto que resolveu desistir do casamento e não lamentou muito quando ela morreu de varíola, pouco tempo depois.

Favila, a próxima, era muito diferente. Era filha de um cavalheiro pobre de Somersetshire; que, por total perseverança e pelos trejeitos de seus olhos, conseguira chegar à corte, onde sua destreza na equitação, seus belos tornozelos, sua graça ao dançar conquistaram a admiração de todos. Um dia, porém, teve a má ideia de espancar um cachorro spaniel que lhe rasgara a meia de seda (e, para ser justo, deve ser dito que Favila tinha poucas meias e que a maioria era de lã) deixando-o quase sem vida, debaixo da janela de Orlando. Orlando, que era apaixonado por animais, logo reparou que os dentes dela eram tortos, os dois da frente virados para dentro, o que considerava ser nas mulheres um sinal infalível de caráter perverso e cruel, e assim, naquela mesma noite, desfez o compromisso para sempre.

A terceira, Eufrosina, foi sem dúvida a mais séria destas paixões. Ela era, de berço, dos Desmonds da Irlanda e tinha uma árvore genealógica tão antiga e profundamente arraigada quanto a do próprio Orlando. Era loura, corada e um pouco apática. Falava bem italiano, tinha uma fileira de dentes perfeitos no maxilar superior, embora os do maxilar inferior fossem um pouco desbotados. Nunca estava sem um cão de corrida ou um spaniel no colo; alimentava-o com pão branco de seu próprio prato; cantava docemente acompanhando o virginal; e nunca estava pronta antes do meio-dia devido ao extremo cuidado que dedicava à aparência. Em suma, teria sido uma perfeita esposa para um nobre como Orlando, e as coisas estavam tão adiantadas que os advogados de ambas as partes se ocupavam com contratos, dotes, legados, senhorios, aforamentos e tudo o que é necessário antes que uma grande fortuna possa se juntar a outra, quando, com a rapidez e o rigor que então caracterizavam o clima inglês, chegou a Grande Geada.

A Grande Geada foi, segundo os historiadores, a mais severa que jamais atingiu estas ilhas. Os pássaros gelavam no ar e caíam como pedras no chão. Em Norwich, uma jovem camponesa de saúde vigorosa, que se dispunha a atravessar a rua, foi vista por testemunhas desfazer-se em pó e ser soprada por uma lufada de poeira para cima dos telhados quando uma rajada glacial a atingiu numa esquina. A mortandade de rebanhos e de gado foi enorme. Os cadáveres congelavam e não podiam ser arrancados dos lençóis. Não era raro se encontrar uma vara inteira de porcos congelados, imóveis, no caminho. Os campos estavam cheios de pastores, lavradores, parelhas de cavalos e meninos como espantalhos, todos paralisados na atitude do momento, um com a mão no nariz, outro com a garrafa na boca, um terceiro com uma pedra pronta para ser arremessada num corvo que pousava, como se empalhado, numa cerca próxima. O rigor da geada era tanto que às vezes causava uma certa petrificação; e era comum se acreditar que o grande aumento de rochas em algumas partes de Derbyshire se devia não à erupção, pois não houve nenhuma, mas à solidificação de infelizes caminhantes, literalmente transformados em pedra, no lugar em que se encontravam. A Igreja pouco ajudou no assunto, e, embora alguns proprietários fossem benzer essas relíquias, a maioria preferiu usá-las como marcos, postes para as ovelhas se coçarem, ou, quando a forma da pedra permitia, como bebedouro para o gado, funções a que servem, em geral, admiravelmente até hoje.

Mas, enquanto os camponeses sofriam necessidade extremas e o comércio do país estava paralisado, Londres desfrutava de um carnaval de brilho máximo. A corte estava em Greenwich, e o novo rei aproveitou a oportunidade de sua coroação para se congraçar com os cidadãos. Ordenou que o rio, que congelara a uma profundidade de mais de vinte pés, e por seis ou sete milhas de ambos os lados, fosse varrido, decorado e tivesse o aspecto de um parque de diversões, com caramanchões, labirintos, alamedas, barracas de bebidas etc., a suas próprias expensas. Para si e para seus cortesões reservou um certo espaço, imediatamente em frente aos portões do palácio, que, separado do público apenas por um cordão de seda, logo se tornou o centro da mais brilhante sociedade da Inglaterra. Grandes políticos, com barbas e gorjeiras, despachavam assuntos oficiais sob o toldo vermelho da Tenda Real. Soldados planejavam a conquista dos mouros e a derrota dos turcos em pavilhões listrados, encimados por plumas de avestruz. Almirantes caminhavam de um lado para outro nas alamedas estreitas, com lunetas na mão, varrendo o horizonte e contando histórias da travessia do noroeste e da Invencível Armada. Os amantes namoravam nos divãs cobertos por peles de marta. Rosas geladas caíam em chuveiro quando a rainha passeava com suas damas. Balões coloridos permaneciam imóveis no ar. Aqui e ali ardiam vastas fogueiras de madeira de cedro e carvalho, profusamente salgadas, para que as chamas fossem verdes, laranja e púrpura. Mas, por mais ferozmente que ardessem, o calor não era suficiente para derreter o gelo que, embora duro como aço, era de uma transparência singular. Era tão límpido que se podia ver congelados a uma profundidade de vários pés aqui um golfinho, ali um linguado. Cardumes de enguias jaziam imóveis, em transe, mas se seu estado era de morte ou de interrupção de vida que o calor pudesse reanimar, desconcertava filósofos. Perto da ponte de Londres, onde o rio gelara até umas vinte braças de profundidade, um navio era totalmente visível, jazendo no leito do rio no local onde naufragara, no último outono, carregado de maçãs. A velha do barco, que levava sua fruta para o mercado na ribeira de Surrey, estava sentada nas suas mantas e saia-balão, com o regaço cheio de maçãs, e, para todo mundo, parecia que estava atendendo um freguês, embora um certo tom azulado em seus lábios sugerisse a verdade. Era uma visão que o rei Jaime gostava de contemplar, e trazia um bando de cortesões para admirar com ele. Em suma, nada podia exceder o brilho e alegria da cena, durante o dia. Mas era à noite que o carnaval ficava mais alegre. Porque o gelo continuava intacto; as noites eram de tranquilidade perfeita; a lua e as estrelas brilhavam com a dura fixidez de diamantes, e ao som da bela música de flauta e trombeta os cortesões dançavam.

Orlando, é certo, não era daqueles que dançavam com leveza o coranto e a lavolta; era desajeitado e um pouco distraído. Preferia as danças simples de sua região, que dançava desde menino, a estes fantásticos compassos estrangeiros. Tinha acabado justamente uma quadrilha ou um minueto, pelas seis da tarde do dia 7 de janeiro, quando viu, saindo do pavilhão da embaixada moscovita, uma figura de homem ou de mulher, pois a túnica ampla e as calças à moda russa serviam para disfarçar o sexo, que o encheu da maior curiosidade. A pessoa, qualquer que fosse seu nome ou sexo, era de estatura mediana, de forma delgada e inteiramente vestida de veludo cor de ostra, orlado de uma estranha pele esverdeada. Mas esses detalhes eram obscurecidos pela extraordinária sedução proveniente da própria pessoa. Imagens, metáforas das mais excessivas e extravagantes se entrelaçaram e reviraram em sua cabeça. Ele a chamou de melão, abacaxi, oliveira, esmeralda ou raposa na neve, tudo no espaço de três segundos; não sabia se a tinha ouvido, provado, visto ou feito as três coisas juntas. (Pois, embora não devamos interromper em nenhum momento a narrativa, temos que anotar aqui, às pressas, que todas as suas imagens naquela época eram extremamente simples, para combinarem com seus sentidos, e eram, em sua maioria, extraídas de coisas de que tinha gostado em pequeno. Mas, se os sentidos eram simples, eram, ao mesmo tempo, extremamente fortes. Parar e procurar a razão das coisas era impossível.)… Um melão, uma esmeralda, uma raposa na neve — assim delirava, assim a fitava. Quando o rapaz, porque, ai de mim!, tinha de ser um rapaz — nenhuma mulher poderia patinar com tanta velocidade e vigor —, passou por ele quase na ponta dos pés, Orlando quase arrancou os cabelos de vergonha ao ver que a pessoa era do seu sexo, e que os abraços estavam fora de questão. Mas o patinador se aproximou. Pernas, mãos, porte eram de rapaz, mas nenhum rapaz tinha uma boca assim; nenhum rapaz tinha aqueles peitos; nenhum rapaz tinha olhos daqueles, que pareciam pescados no fundo do mar. Por fim, parando e dirigindo com a maior graça uma reverência para o rei, que negligentemente passava de braço com um camareiro, o patinador desconhecido parou. Ela estava ao alcance da mão. Era uma mulher. Orlando fitou-a; tremeu; sentiu calor; sentiu frio; teve vontade de se atirar pelo ar de verão; esmagar com os pés bolotas de carvalho; sacudir o braço com as faias e os carvalhos. Na verdade, ergueu os lábios sobre os pequenos dentes brancos; abriu-os talvez meia polegada, como se fosse morder algo; fechou-os como se tivesse mordido. Lady Eufrosina pendia de seu braço.

Ele descobriu que o nome da estrangeira era princesa Marousha Stanilovska Dagmar Natasha Iliana Romano-vitch, e viera na comitiva do embaixador moscovita, seu tio ou talvez seu pai, para assistir à coroação. Muito pouco se sabia dos moscovitas. Com barbas grandes e chapéus de peles, sentavam quase sempre em silêncio, tomando uma bebida escura que cuspiam de vez em quando no gelo. Nenhum falava inglês, e o francês ao qual alguns estavam pelo menos familiarizados era então pouco falado na corte da Inglaterra.

Foi por causa desse incidente que Orlando e a princesa se conheceram: estavam sentados um diante do outro, na grande mesa preparada sob um toldo enorme, para abrigo dos nobres. A princesa estava entre dois jovens senhores, um, Lorde Francis Vere, e o outro, o jovem conde de Moray. Era cômico ver a situação em que ela os colocara, pois, embora ambos fossem, a seu modo, belos rapazes, seus conhecimentos de francês eram como os de um recém-nascido. Quando, no começo do jantar, a princesa virou-se para o conde e disse com uma graça que lhe arrebatou o coração: “Je crois avoir fait la connaissance d’un gentilhomme qui vous; était apparenté en Pologne l’eté dernier” [1] — ou — “La beauté des dames de la cour d’Angleterre me met dans le ravissement. On ne peut voir une dame plus gracieuse que votre reine, ni une coiffure plus belle que la sienne”, [2] tanto Lorde Francis quanto o conde mostraram o maior embaraço. Um serviu-a abundantemente de molho de rábano, e o outro assobiou para o seu cachorro e fez com que ele pedisse um osso com tutano. Diante disso, a princesa não pôde mais conter o riso, e Orlando, captando seus olhos entre as cabeças de javali e os pavões recheados, riu também. Ele riu, mas o riso em seus lábios congelou de admiração. A quem teria amado, o que ele teria amado até agora?, perguntava a si mesmo, num tumulto de emoção. Uma velha senhora, que era só pele e ossos, respondia. Prostitutas de faces vermelhas, inúmeras para serem mencionadas. Uma monja choramingueira. Uma aventureira intratável e desbocada. Uma sonolenta massa de renda e etiqueta. O amor não tinha sido para ele mais do que serragem e cinzas. As alegrias que ele tinha experimentado, insípidas ao extremo. Admirava-se como pudera passar por isso sem bocejar. Pois quando a olhava, a espessura de seu sangue se derretia; o gelo se transformava em vinho em suas veias; ouvia as águas fluindo e os pássaros cantando; a primavera rompeu a pesada paisagem invernal; sua virilidade despertou; ele empunhou uma espada; investiu contra um inimigo mais ousado do que um polonês ou um mouro; mergulhou na água profunda; viu a flor do perigo crescendo numa fresta; estendeu a mão — na verdade, estava declamando um dos seus mais apaixonados sonetos quando a princesa se dirigiu a ele:

— Poderia ter a bondade de me passar o sal?

Ele corou violentamente.

— Com o maior prazer do mundo, Madame — respondeu, falando em francês com uma pronúncia perfeita. Pois, o céu seja louvado, ele falava a língua como se fosse a sua própria; a aia de sua mãe lhe havia ensinado. Contudo, porém, talvez tivesse sido melhor para ele que nunca tivesse aprendido aquela língua; nunca tivesse respondido àquela voz; nunca tivesse seguido a luz daqueles olhos...




continua pag 23...


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Virginia Woolf, escritora inglesa, nasceu em 1882, no seio de uma família da alta sociedade londrina. Após a morte de seus pais, ela e os irmãos se mudaram para uma casa no bairro de Bloomsbury, onde realizavam encontros com personalidades e poetas da época, como como T. S. Elliot e Clive Bell. Virginia começou a escrever em 1905, inicialmente para jornais. Dez anos depois, ela lançou seu primeiro livro “A Viagem”.

No período entre a 1ª e 2ª Guerra Mundial, Virginia Woolf se tornou uma figura conhecida na sociedade inglesa. Em 1941, ela cometeu suicídio se jogando no rio Ouse, perto da residência onde morava com seu marido, o crítico literário Leonardo Woolf, em Sussex. Mas, a obra de Virginia se imortalizou. Usando com excelência a técnica do fluxo de consciência, a escritora criou livros inovadores, que lhe fizeram ser conhecida como a maior romancista lírica do idioma inglês.

A Universidade de Adelaide, uma das instituições de ensino mais antigas da Austrália, disponibilizou online toda a obra de Virginia Woolf para download gratuito. Ao todo, são dez romances e dois livros de contos que podem ser baixados em três formatos: Zip, ePub e Kindle (para dispositivos Amazon). Entre os arquivos, estão algumas das obras mais famosas da escritora inglesa, como “Mrs. Dalloway” (1925), “Rumo ao Farol” (1927), “Os Anos” (1937) e “A Marca na Parede” (1944).

As obras estão em inglês. Para fazer o download, basta clicar sobre o título e escolher a opção “download. Também estão disponíveis ensaios de Virginia Woolf, como “O Leitor Comum” (1925), no qual ela reflete sobre a arte literária com base em obras-primas de outros autores renomados.



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Leia também:

Virgínia Woolf - Orlando : Apresentação e Prefácio
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(c) - A princesa prosseguiu


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[1] Creio ter conhecido, na Polônia, no verão passado, um cavalheiro que era seu parente.

[2] A beleza das damas da corte da Inglaterra me encanta. Não se pode ver dama mais graciosa do que a vossa rainha, nem um penteado mais belo do que o seu.


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VERBO SOLTO: "Orlando", de Virgínia Woolf, por Eugenio Dale





terça-feira, 28 de abril de 2020

60-MINUTE SINGALONG SPECIAL | Cirque du Soleil

60-MINUTE SINGALONG SPECIAL 

| Cirque du Soleil 
| April 24






O Cirque du Soleil fez algo um pouco diferente para o especial #CirqueConnect da semana: um single! Aproveite essa uma hora cheia de músicas favoritas dos fãs do Cirque du Soleil de shows como Alegría, KOOZA, Mystère e muito mais! Cante com eles e compartilhe suas renderizações no social com #CirqueAtHome.













Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (2)

Diante da Dor dos Outros





para David







… aux vaincus!
Baudelaire




A sórdida mentora, a Experiência...
Tennyson








1.


continuando...



Não sofrer com essas fotos, não sentir repugnância diante delas, não lutar para abolir o que causa esse morticínio, essa carnificina — para Woolf, essas seriam reações de um monstro moral. E, diz ela, não somos monstros, mas membros da classe instruída. Nosso fracasso é de imaginação, de empatia: não conseguimos reter na mente essa realidade. 

Mas será verdade que essas fotos, documentos antes da chacina de civis do que do confronto de exércitos, só poderiam estimular a repulsa à guerra? Sem dúvida poderiam também incentivar uma militância maior em favor da República. Não foi para isso que foram feitas? O acordo entre Woolf e o advogado parece inteiramente pressuposto e as fotos horrendas vêm confirmar uma opinião já compartilhada de antemão. Se a pergunta tivesse sido: Como podemos contribuir de forma mais eficaz para a defesa da República Espanhola contra as forças do fascismo clerical e militarista?, as fotos poderiam, ao contrário, ter reforçado a crença de ambos na justiça daquela luta.

As imagens que Woolf evocou não mostram, a rigor, o que a guerra, a guerra como tal, faz. Mostram um modo específico de promover a guerra, um modo naquela época rotineiramente classificado de “bárbaro”, no qual os civis são o alvo. O general Franco estava usando as mesmas táticas de bombardeio, massacre, tortura, assassinato e mutilação de prisioneiros que ele havia aprimorado na condição de comandante no Marrocos, na década de 1920. Nessa ocasião, de maneira mais aceitável para as potências dominantes, suas vítimas foram os súditos coloniais da Espanha, de cor mais escura e ainda por cima infiéis; agora suas vítimas eram seus compatriotas. Depreender das fotos, com faz Woolf, apenas aquilo que confirma uma aversão geral à guerra é esquivar-se de um engajamento com a Espanha como um país que tem história. É descartar a política.

Para Woolf, assim como para muitos polemistas antibelicistas, a guerra é genérica, e as imagens que ela descreve são de vítimas anônimas, genéricas. As fotos enviadas pelo governo de Madri parecem, o que é improvável, não ter sido legendadas. (Ou, talvez, Woolf simplesmente presuma que uma fotografia deva falar por si mesma.) Mas a argumentação contra a guerra não depende de informações sobre quem, quando e onde; o caráter arbitrário do morticínio implacável constitui prova suficiente. Para as pessoas seguras de que o certo está de um lado e a opressão e a injustiça estão do outro, e de que a luta precisa prosseguir, o que importa é exatamente quem é morto e por quem. Para um judeu israelense, uma foto de uma criança estraçalhada no atentado contra a pizzaria Sbarro no centro de Jerusalém é, antes de tudo, uma foto de uma criança judia morta por um militante suicida palestino. Para um palestino, uma foto de uma criança estraçalhada pelo tiro de um tanque em Gaza é, antes de tudo, uma foto de uma criança palestina morta pela máquina de guerra israelense. Para o militante, a identidade é tudo. E todas as fotos esperam sua vez de serem explicadas ou deturpadas por suas legendas. Durante a luta entre sérvios e croatas no início das recentes guerras nos Bálcãs, as mesmas fotos de crianças mortas no bombardeio de um povoado foram distribuídas pelos serviços de propaganda dos sérvios e também dos croatas. Bastava mudar as legendas para poder utilizar e reutilizar a morte das crianças.

Imagens de civis mortos e de casas destroçadas podem servir para atiçar o ódio contra os inimigos, como fizeram as reprises de hora em hora da Al Jazeera, a rede de televisão via satélite sediada no Qatar, das imagens de destruição no campo de refugiados em Jenin, em abril de 2002. Por mais incendiárias que fossem aquelas tomadas para o numeroso público que assiste a essa estação de tevê em todo o mundo, nada revelavam sobre o exército israelense que esse público já não estivesse predisposto a crer. Em contraste, imagens que apresentam provas que contradizem devoções acalentadas são invariavelmente descartadas como encenações montadas para as câmeras. Ante a ratificação fotográfica das atrocidades cometidas pelo lado a que a pessoa pertence, a reação-padrão consiste em tomar as fotos como algo fabricado, pensar que tal atrocidade jamais ocorreu, que eram cadáveres que pessoas do outro lado trouxeram do necrotério em caminhões e espalharam pela rua, ou que, sim, de fato aconteceu, mas foi o outro lado que o cometeu, contra si mesmo. Assim, o diretor de propaganda em favor da revolta nacionalista de Franco afirmou que foram os bascos que destruíram Guernica, sua própria e antiga cidade, e ex-capital, em 26 de abril de 1937, pondo dinamite nos esgotos (numa versão posterior, lançando bombas fabricadas em território basco), com o intuito de despertar indignação no exterior e revigorar a resistência republicana. E assim, também, a maioria dos sérvios residentes na Sérvia ou no exterior sustentavam, até o fim do cerco sérvio a Sarajevo, e mesmo depois, que os próprios bósnios haviam perpetrado o tenebroso “massacre da fila do pão” em maio de 1992, e o “massacre do mercado” em fevereiro de 1994, despejando bombas de alto calibre no centro da sua capital ou instalando minas a fim de criar cenas especialmente horripilantes para as câmeras dos jornalistas estrangeiros e angariar mais apoio internacional para o lado bósnio.

Fotos de corpos mutilados podem certamente ser usadas, como faz Woolf, para dar ânimo à condenação da guerra e podem, durante algum tempo, transmitir de forma convincente uma parcela da sua realidade para aqueles que não têm nenhuma experiência de guerra. Todavia, quem admite que num mundo dividido, como se verifica hoje, a guerra pode tornar-se inevitável e até justa, pode retrucar que as fotos não oferecem provas, absolutamente nenhuma prova, em favor da renúncia à guerra — exceto para as pessoas em quem as idéias de bravura e de sacrifício foram esvaziadas de significação e de credibilidade. O caráter destrutivo da guerra — sem chegar à destruição total, que não é guerra, mas suicídio — não constitui em si mesmo um argumento contra guerrear, a menos que se pense (como pouca gente pensa, de fato) que a violência é sempre injustificável, que a força está sempre, em todas as circunstâncias, errada — errada porque, como afirma Simone Weil em seu soberbo ensaio sobre a guerra, intitulado “A Ilíada, ou o poema da força” (1940), a violência transforma em coisa toda pessoa sujeita a ela.* Não — retrucam aqueles que, em dada situação, não vêem alternativa à luta armada —, a violência pode elevar uma pessoa a ela submetida à condição de herói ou de mártir.

De fato, há muitos usos para as inúmeras oportunidades oferecidas pela vida moderna de ver — à distância, por meio da fotografia — a dor de outras pessoas. Fotos de uma atrocidade podem suscitar reações opostas. Um apelo em favor da paz. Um clamor de vingança. Ou apenas a atordoada consciência, continuamente reabastecida por informações fotográficas, de que coisas terríveis acontecem. Quem pode esquecer as três fotos em cores de Tyler Hicks que The New York Times estampou na metade superior da primeira página da sua seção diária dedicada à nova guerra dos Estados Unidos, “Uma nação desafiada”, em 13 de novembro de 2001? O tríptico retratava o destino de um soldado talibã ferido, de uniforme, encontrado em uma vala por soldados da Aliança do Norte quando avançavam rumo a Cabul. Primeiro painel: o soldado é arrastado, de costas, por dois de seus captores — um agarra um braço; o outro, uma perna — ao longo de uma estrada pedregosa. Segundo painel (a câmera está muito perto): cercado, ele olha para cima aterrorizado enquanto é puxado para ficar de pé. Terceiro painel: no momento da morte, imóvel, de braços abertos e joelhos dobrados, nu e ensanguentado da cintura para baixo, executado pela turba de militares reunida a fim de trucidá-lo. É necessária uma vasta reserva de estoicismo para percorrer as notícias de um grande jornal a cada manhã, dada a probabilidade de ver fotos capazes de nos fazer chorar. E a compaixão e a repugnância que fotos como as de Hicks inspiram não nos devem desviar da pergunta acerca das fotos, das crueldades e das mortes que não estão sendo mostradas.


continua pag 38...



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"Imagens do sofrimento são apresentadas diariamente pelos meios de comunicação. Graças à televisão e ao computador, imagens de desgraça se tornaram uma espécie de lugar-comum. Mas como a representação da crueldade nos influencia? O que provocam em nós exatamente? Estamos insensibilizados pelo bombardeio de imagens?

Em “Ensaios sobre a fotografia”, publicado no Brasil no começo dos anos 1980, Susan Sontag abordou o tema em termos que definiram o debate pelas décadas seguintes. Aqui, em “Diante da dor dos outros”, faz uma nova e profunda reflexão sobre as relações entre notícia, arte e compreensão na representação dos horrores da guerra, da dor e da catástrofe.

Discutindo os argumentos sobre como essas imagens podem inspirar discórdia, fomentar a violência ou criar apatia, a autora evoca a longa história da representação da dor dos outros – desde “As desgraças da guerra”, de Francisco de Goya (1746-1828), até fotos da Guerra Civil Americana, da Primeira Guerra Mundial, da Guerra Civil Espanhola, dos campos nazistas de extermínio durante a Segunda Guerra, além de imagens contemporâneas de Serra Leoa, Ruanda, Israel, Palestina e de Nova York no 11 de setembro de 2001.

Num texto preciso e provocador, Sontag levanta questões cruciais para a compreensão da vida contemporânea. De sua reflexão surge uma formulação surpreendente e desafiadora: a relevância dessas imagens depende, em última instância, da maneira com que nós, espectadores, as encaramos."

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Leia também:

Susan Sontag - Na Caverna de Platão (01)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (3)



"Quando o mundo estiver unido
na busca do conhecimento, e
não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um novo
nível."





Susan Sontag, escritora e pensadora referência mundial, ganha biografia






Susan Sontag - Objetos de Melancolia (01)

Sobre fotografia

Ensaios


Susan Sontag



OBJETOS DE MELANCOLIA




A fotografia tem a reputação pouco atraente de ser a mais realista e, portanto, a mais fácil das artes miméticas. De fato, é a arte que conseguiu levar a cabo as ameaças bombásticas, datadas de um século, de um domínio surrealista sobre a sensibilidade moderna, ao passo que a maioria dos concorrentes dotados de pedigree abandonou a corrida. 

A pintura estava em desvantagem desde o início por ser uma bela-arte, em que cada objeto é único, um original feito à mão. Um risco adicional era o extraordinário virtuosismo técnico dos pintores habitualmente incluídos no cânone surrealista, que raramente concebiam a tela como algo não figurativo. Suas pinturas pareciam astutamente calculadas, pedantemente bem-feitas, não dialéticas. Mantinham uma distância larga e prudente da litigiosa noção surrealista de apagar as fronteiras entre a arte e a chamada vida, entre objetos e eventos, entre o voluntário e o involuntário, entre profissionais e amadores, entre o nobre e o de mau gosto, entre a competência e os disparates afortunados. O resultado foi que o surrealismo na pintura redundou em pouco mais do que o sumário de um mundo de sonhos mal sortido: umas poucas fantasias espirituosas e sobretudo sonhos eróticos e pesadelos agorafóbicos. (Só quando sua retórica libertária ajudou a incitar Jackson Pollock e outros no rumo de uma nova espécie de abstração irreverente, o ditame surrealista dirigido aos pintores parece ter, por fim, alcançado um sentido criativo amplo.) A poesia, a outra arte à qual os primeiros surrealistas se dedicavam de modo especial, produziu resultados quase igualmente frustrantes. As artes em que o surrealismo obteve a merecida fama foram a ficção (no conteúdo, sobretudo, mas muito mais abundante e mais complexo, em termos temáticos, do que se arrogou a pintura), o teatro, a arte da assemblage e — de forma mais triunfante — a fotografia.

A circunstância de ser a fotografia a única arte nativamente surreal não significa, todavia, que ela partilha o destino do movimento surrealista oficial. Ao contrário. Os fotógrafos (muitos deles ex-pintores) conscientemente influenciados pelo surrealismo contam, hoje, quase tão pouco quanto os fotógrafos “pictóricos” do século XIX, que copiavam o aspecto exterior da pintura de belas-artes. Mesmo as mais adoráveis trouvailles da década de 1920 — as fotos propositalmente veladas por exposição excessiva e as radiografias de Man Ray, os fotogramas de László Moholy-Nagy, os estudos de múltipla exposição de Bragaglia, as fotomontagens de John Heartfield e Alexander Rodchenko — são vistas como proezas marginais na história da fotografia. Os fotógrafos que se concentraram em interferir no realismo supostamente superficial da foto foram os que transmitiram, de modo mais exato, as propriedades surrealistas da fotografia. O legado surrealista para a fotografia veio a parecer trivial quando o repertório surrealista de fantasias e de adereços foi rapidamente absorvido pela alta-costura na década de 1930, e a fotografia surrealista oferecia, sobretudo, um estilo amaneirado de retratismo, identificável por seu emprego das mesmas convenções decorativas introduzidas pelo surrealismo nas demais artes, em especial na pintura, no teatro e na publicidade. A vertente dominante da atividade fotográfica mostrou que uma manipulação ou uma teatralização surrealista do real é desnecessária, se não efetivamente redundante. O surrealismo se situa no coração da atividade fotográfica: na própria criação de um mundo em duplicata, de uma realidade de segundo grau, mais rigorosa e mais dramática do que aquela percebida pela visão natural. Quanto menos douta, quanto menos obviamente capacitada, quanto mais ingênua — mais confiável havia de ser a foto.

O surrealismo sempre cortejou acidentes, deu boas-vindas ao que não é convidado, lisonjeou presenças turbulentas. O que poderia ser mais surreal do que um objeto que praticamente produz a si mesmo, e com um mínimo de esforço? Um objeto cuja beleza, cujas revelações fantásticas, cujo peso emocional serão, provavelmente, realçados por qualquer acidente que possa sobrevir? Foi a fotografia que melhor mostrou como justapor a máquina de costura ao guarda-chuva, cujo encontro fortuito foi saudado por um célebre poeta surrealista como uma síntese do belo.

À diferença dos objetos das belas-artes das eras pré-democráticas, as fotos não parecem profundamente submetidas às intenções de um artista. Devem, antes, sua existência a uma vaga cooperação (quase mágica, quase acidental) entre o fotógrafo e o tema — mediada por uma máquina cada vez mais simples e mais automática, que é infatigável e que, mesmo quando se mostra caprichosa, pode produzir um resultado interessante e nunca inteiramente errado. (O chamariz comercial da primeira Kodak, em 1888, era: “Você aperta o botão, nós fazemos o resto”. O comprador tinha a garantia de que a foto sairia “sem nenhum erro”.) No conto de fadas da fotografia, a caixa mágica assegura a veracidade e bane o erro, compensa a inexperiência e recompensa a inocência.

O mito é suavemente parodiado num filme mudo de 1928, The cameraman, que mostra um inapto e sonhador Buster Keaton pelejando em vão com seu equipamento deteriorado, derrubando portas e janelas toda vez que monta seu tripé, sem jamais conseguir uma imagem decente, embora no fim consiga um excelente flagrante jornalístico (um furo fotográfico de uma guerra de quadrilhas no bairro de Chinatown em Nova York) — por descuido. Foi o macaquinho de estimação do câmera que pôs o filme na câmera e a operou durante uma parte do tempo.


O erro dos militantes surrealistas foi imaginar que o surreal fosse algo universal, ou seja, uma questão de psicologia, ao passo que ele se revelou extremamente localizado, étnico, datado e restrito a uma classe. Assim, as primeiras fotos surreais provêm da década de 1850, quando os fotógrafos pela primeira vez saíram a vagar pelas ruas de Londres, Paris e Nova York, em busca da sua fatia de vida sem pose. Essas fotos, concretas, particulares, anedóticas (a não ser que a anedota tivesse sido apagada) — momentos de tempo perdido, de costumes desaparecidos —, parecem muito mais surreais para nós, agora, do que qualquer foto tornada abstrata e poética por efeito de superposição, de uma cópia esmaecida, de uma exposição excessiva e coisas do tipo. Acreditando que as imagens buscadas por eles provinham do inconsciente, cujo conteúdo, como freudianos fiéis, supunham ser intemporal e universal, os surrealistas entenderam mal o que havia de mais brutalmente comovedor, irracional, inassimilável, misterioso — o próprio tempo. O que torna uma foto surreal é o seu páthos irrefutável como mensagem do passado e a concretude de suas sugestões a respeito da classe social.

O surrealismo é um descontentamento burguês; o fato de seus militantes o tomarem por universal constitui apenas um dos sinais de que ele é tipicamente burguês. Como uma estética que almeja ser uma política, o surrealismo opta pelos oprimidos, pelos direitos de uma realidade marginal, não oficial. Mas os escândalos lisonjeados pela estética surrealista revelaram-se, em geral, nada mais do que aqueles mistérios caseiros obscurecidos pela ordem social burguesa: sexo e pobreza. Eros, que os primeiros surrealistas punham no topo da realidade tabuizada que buscavam reabilitar, era, ele mesmo, parte do mistério da posição social. Embora parecesse florescer com exuberância nos pontos extremos da escala social, encarando tanto a classe mais baixa quanto a nobreza como naturalmente libertinas, as pessoas de classe média tiveram de dar duro para promover sua revolução sexual. A classe era o mistério mais profundo; o inesgotável glamour dos ricos e poderosos, a degradação opaca dos pobres e dos párias.

A visão da realidade como um prêmio exótico a ser perseguido e capturado pelo diligente caçador-com-uma-câmera plasmou a fotografia desde os primórdios e assinala a confluência da contracultura surrealista e do aventureirismo social da classe média. A fotografia sempre foi fascinada pelas posições sociais mais elevadas e mais baixas. Os documentaristas (que não se confundem com aduladores munidos de câmeras) preferem estas últimas. Durante mais de um século, os fotógrafos rondaram os oprimidos à espreita de cenas de violência — com uma consciência impressionantemente boa. A miséria social inspirou, nos bem situados, a ânsia de tirar fotos, a mais delicada de todas as atividades predatórias, a fim de documentar uma realidade oculta, ou, antes, uma realidade oculta para eles.

Ao observar a realidade dos outros com curiosidade, com isenção, com profissionalismo, o fotógrafo ubíquo age como se essa atividade transcendesse os interesses de classe, como se a perspectiva fosse universal. De fato, a fotografia alcançou pela primeira vez o merecido reconhecimento como uma extensão do olho do flâneur de classe média, cuja sensibilidade foi mapeada tão acuradamente por Baudelaire. O fotógrafo é uma versão armada do solitário caminhante que perscruta, persegue, percorre o inferno urbano, o errante voyeurístico que descobre a cidade como uma paisagem de extremos voluptuosos. Adepto das alegrias da observação, connoisseur da empatia, o flâneur acha o mundo “pitoresco”. As descobertas do flâneur de Baudelaire são diversificadamente exemplificadas pelos instantâneos singelos tirados na década de 1890 por Paul Martin, nas ruas de Londres e no litoral, e por Arnold Genthe, no bairro de Chinatown em San Francisco (ambos com uma câmera oculta); pela Paris crepuscular de Atget, com suas ruas degradadas e lojas decadentes, pelos dramas de sexo e solidão retratados no livro de Brassaï, Paris de nuit (1933); pela imagem da cidade como um teatro de calamidades em Cidade nua (1945), de Weegee. O flâneur não se sente atraído pelas realidades oficiais da cidade, mas sim por seus recantos escuros e sórdidos, suas populações abandonadas — uma realidade marginal por trás da fachada da vida burguesa que o fotógrafo “captura”, como um detetive captura um criminoso.

Voltando ao filme The cameraman: uma guerra entre gangues de chineses pobres constitui um tema ideal. É totalmente exótico, portanto digno de se fotografar. Parte do que assegura o sucesso do filme feito pelo herói é que ele não compreende seu tema de forma alguma. (Tal como representado por Buster Keaton, ele nem sequer compreende que sua vida está em perigo.) O tema surreal perene é How the other half lives [Como vive a outra metade], para citar o título inocentemente explícito que Jacob Riis deu ao seu livro de fotos sobre os pobres de Nova York, publicado em 1890. A fotografia entendida como um documento social foi um instrumento dessa atitude essencialmente de classe média, zelosa e meramente tolerante, curiosa e também indiferente, chamada de humanismo — que via os cortiços como o cenário mais atraente. Os fotógrafos contemporâneos, é claro, aprenderam a concentrar-se e delimitar seu tema. Em lugar da insolência da “outra metade”, tomemos, por exemplo, East 100th Street (o livro de fotos de Bruce Davidson sobre o Harlem, publicado em 1970). A justificação é ainda a mesma, que tirar fotos serve a um propósito elevado: desvelar uma verdade oculta, conservar um passado em via de desaparecer. (A verdade oculta é, além do mais, não raro identificada com o passado em via de desaparecer. Entre 1874 e 1886, os londrinos prósperos podiam filiar-se à Sociedade de Fotografia de Relíquias da Londres Antiga.)

Começando como artistas da sensibilidade urbana, os fotógrafos rapidamente tornaram-se cônscios de que a natureza é tão exótica quanto a cidade; rústica e pitoresca como os habitantes dos cortiços urbanos. Em 1897, sir Benjamin Stone, rico industrial e membro conservador do Parlamento inglês, por Birmingham, fundou a Associação Nacional de Registro Fotográfico, com o propósito de documentar as tradicionais cerimônias e festas rurais inglesas que estavam prestes a se extinguir. “Todo vilarejo”, escreveu Stone, “tem uma história que deveria ser preservada por meio da câmera.” Para um fotógrafo bem-nascido, do fim do século xix, como o pedante conde Giuseppe Primoli, a vida de rua dos miseráveis era, pelo menos, tão interessante quanto os passatempos de seus pares aristocratas: comparem as fotos tiradas por Primoli do casamento do rei Victor Emmanuel com suas fotos dos pobres de Nápoles. Foi necessária a imobilidade social de um fotógrafo de gênio que calhou ser uma criança, Jacques-Henri Lartigue, para restringir o tema aos hábitos exóticos da própria família e da própria classe do fotógrafo. Mas, em essência, a câmera transforma qualquer pessoa num turista na realidade dos outros e, por fim, na sua própria realidade.

Talvez o mais antigo modelo de um olhar prolongado voltado para baixo sejam as 36 fotos contidas em Street life in London [Vida de rua em Londres] (1877-8), tiradas pelo viajante e fotógrafo inglês John Thomson. Mas, para cada fotógrafo especializado em pobres, muitos mais saíam à cata de uma realidade exótica de alcance mais amplo. O próprio Thomson teve uma carreira exemplar nessa linha. Antes de se voltar para os pobres de seu próprio país, já fora conhecer os gentios, uma estada que resultou em seus quatro volumes de Illustrations of China and its people [Ilustrações da China e de seu povo] (1873-4). E, após seu livro sobre a vida na rua dos pobres de Londres, voltou-se para a vida doméstica dos ricos de Londres: Thomson, por volta de 1880, foi o pioneiro da voga do retratismo fotográfico doméstico.

Desde o início, a fotografia profissional propunha-se, tipicamente, a ser a variedade mais abrangente de um turismo de classe, em que a maioria dos fotógrafos combinava uma coleta de dados da degradação social com retratos de celebridades ou de mercadorias (alta moda, publicidade) ou com estudos de nus. Muitas carreiras fotográficas exemplares do século XX (como as de Edward Steichen, Bill Brandt, Henri Cartier-Bresson, Richard Avedon) se desenvolveram por meio de bruscas mudanças de nível social e de relevância ética do tema. Talvez a ruptura mais dramática seja aquela ocorrida entre as obras pré e pós-guerra de Bill Brandt. Ter passado das fotos implacáveis da penúria da Depressão no Norte da Inglaterra aos retratos de celebridades elegantes e aos nus semiabstratos das últimas décadas parece, de fato, uma longa viagem. Mas não existe nada particularmente idiossincrático, ou talvez até incoerente, nesses contrastes. Viajar entre realidades degradadas e glamourosas faz parte do próprio impulso original da atividade fotográfica, a menos que o fotógrafo esteja encerrado em uma obsessão extremamente particular (como aquilo que Lewis Carroll sentia por meninas, ou o que Diane Arbus sentia pela multidão do Dia das Bruxas).

A pobreza não é mais surreal do que a riqueza; um corpo envolto em farrapos imundos não é mais surreal do que uma principessa trajada para um baile, ou do que um nu imaculado. O surreal é a distância imposta, e ligada como por uma ponte, pela foto: a distância social e a distância no tempo. Vistas da perspectiva que a classe média tem da fotografia, as celebridades são tão intrigantes quanto os párias. Os fotógrafos não precisam ter uma atitude irônica, inteligente, com respeito a seu material estereotipado. O fascínio submisso, respeitoso, pode também servir perfeitamente, sobretudo com os temas mais convencionais.

Nada poderia estar mais longe das, digamos, sutilezas de Avedon do que a obra de Ghitta Carell, fotógrafa húngara das celebridades da era de Mussolini. Mas suas fotos parecem, agora, tão excêntricas quanto as de Avedon, e muito mais surreais do que as de influência surrealista tiradas por Cecil Beaton, do mesmo período. Ao situar seus temas — vejam as fotos que tirou de Edith Sitweel, em 1927, e de Cocteau, em 1936 — em cenários extravagantes e suntuosos, Beaton os transforma em efígies demasiadamente explícitas e inconvincentes. Mas a cumplicidade inocente de Carell com o desejo de seus generais, aristocratas e atores italianos de parecer estáticos, posados, glamourosos, revela uma dura e rigorosa verdade sobre eles. A reverência da fotógrafa tornou-os interessantes; o tempo tornou-os inofensivos, todos demasiado humanos.



continua...




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Susan Sontag (16 de janeiro de 1933, Nova Iorque — 28 de dezembro de 2004) foi uma escritora, crítica de arte e ativista dos Estados Unidos.

Graduou-se na Universidade de Harvard e destacou-se por sua defesa dos direitos humanos. Publicou vários livros, entre eles Styles of Radical Will, The Way We Live Now, Against Interpretation e In America, pelo qual recebeu em 2000 um dos mais importantes prémios do seu país, o National Book Award.

Publicou artigos em revistas como The New Yorker e The New York Review of Books e no jornal The New York Times.

Num de seus últimos artigos, publicado em maio de 2004 no jornal The New York Times, Sontag afirmou que "a história recordará a Guerra do Iraque pelas fotografias e vídeos das torturas cometidas pelos soldados americanos na prisão de Abu Ghraib. Ela faleceu aos 71 anos de idade de síndrome mielodisplásica seguida de uma leucemia mielóide aguda em 28 de Dezembro de 2004.



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Nota de esclarecimento da LêLivros

Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo 

Sobre nós: O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de domínio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. 

Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.link ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. 

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."


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Leia também

Susan Sontag - Na Caverna de Platão (02)
Susan Sontag - Na Caverna de Platão (03)
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Susan Sontag - Estados Unidos, visto em fotos, de um ângulo sombrio (03)
Susan Sontag - Objetos de Melancolia (02)

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Copyright © 1973, 1974, 1977 by Susan Sontag
Este livro foi publicado originalmente em 1977, nos Estados Unidos,
pela Farrar, Straus & Giroux

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.


Título original
On photography

Capa
Angelo Venosa

Foto de capa
Fotógrafo americano anônimo (c. 1850). /
Coleção Virginia Cuthbert Elliot, Buffalo, Nova York

Preparação
Otacílio Nunes Jr.

Revisão
Denise Pessoa
Ana Maria Barbosa

Atualização ortográfica
Página Viva

ISBN 978-85-8086-579-0

Todos os direitos desta edição reservados à
editora schwarcz ltda.
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As fotografias de Arbus...


Fotografia de Diane Arbus , gêmeos idênticos, Roselle, Nova Jersey, 1967 .

By Photograph by Diane Arbus, this particular version of the photograph comes from artnet.comFair useLink



Os gêmeos idênticos retratam duas jovens irmãs gêmeas, Cathleen e Colleen Wade, lado a lado em vestidos de veludo combinando, meias brancas e faixas brancas nos cabelos escuros. Ambos olham fixamente para a câmera, um sorri levemente e o outro franze a testa. Dizem que a foto resume a visão da Arbus. A biógrafa Patricia Bosworth disse: "Ela estava envolvida na questão da identidade . Quem sou eu e quem é você? A imagem gêmea expressa o cerne dessa visão: normalidade em esquisitice e esquisitice em normalidade".
A investigação de Arbus sobre a identidade atinge um clímax nesta fotografia com a tensão perceptível entre as meninas serem gêmeas e indivíduos ao mesmo tempo. Sua extrema proximidade, a uniformidade de suas roupas e o corte de cabelo sublinham seus laços estreitos, enquanto as expressões faciais enfatizam fortemente sua individualidade.
Os gêmeos tinham sete anos quando Arbus os viu em uma festa de Natal para gêmeos e trigêmeos. O pai dos gêmeos disse uma vez sobre a foto: "Achamos que era a pior semelhança dos gêmeos que já vimos"