Sobre fotografia
Ensaios
Susan Sontag
Ninguém jamais descobriu a feiura por meio de fotos. Mas muitos, por meio de fotos, descobriram a beleza. Salvo nessas ocasiões em que a câmera é usada para documentar, ou para observar ritos sociais, o que move as pessoas a tirar fotos é descobrir algo belo. (O nome com que Fox Talbot patenteou a fotografia em 1841 foi calótipo: do grego kalos, belo.) Ninguém exclama: “Como isso é feio! Tenho de fotografá-lo”. Mesmo se alguém o dissesse, significaria o seguinte: “Acho essa coisa feia... bela”.
É comum, para aqueles que puseram os olhos em algo belo, lamentar-se de não ter podido fotografá-lo. O papel da câmera no embelezamento do mundo foi tão bem-sucedido que as fotos, mais do que o mundo, tornaram-se o padrão do belo. Anfitriões orgulhosos de sua casa podem perfeitamente mostrar fotos do lugar onde moram para deixar claro aos visitantes como se trata de uma casa, de fato, maravilhosa. Aprendemos a nos ver fotograficamente: ver a si mesmo como uma pessoa atraente é, a rigor, julgar que se ficaria bem numa fotografia. As fotos criam o belo e — ao longo de gerações de fotógrafos — o esgotam. Certas glórias da natureza, por exemplo, foram simplesmente entregues à infatigável atenção de amadores aficionados da câmera. Pessoas saturadas de imagens tendem a achar piegas os pores do sol; agora, infelizmente, eles se parecem demais com fotos.
Muitos se sentem nervosos quando vão ser fotografados: não porque receiem, como os primitivos, ser violados, mas porque temem a desaprovação da câmera. As pessoas querem a imagem idealizada: uma foto que as mostre com a melhor aparência possível. Sentem-se repreendidas quando a câmera não devolve uma imagem mais atraente do que elas são na realidade. Mas poucos têm a sorte de ser “fotogênicos” — ou seja, parecer melhor nas fotos (mesmo quando não são maquiados ou beneficiados pela luz) do que na vida real. A circunstância de as fotos serem muitas vezes elogiadas por sua espontaneidade, por sua honestidade, indica que a maioria das fotos, é claro, não é espontânea. Em meados da década de 1840, o processo negativo-positivo de Fox Talbot começou a substituir o daguerreótipo (o primeiro processo fotográfico viável). Uma década depois, um fotógrafo alemão inventou a primeira técnica de retocar o negativo. Suas duas versões de um mesmo retrato — uma retocada, a outra não — espantaram a multidão na Exposition Universelle de Paris, em 1855 (a segunda feira mundial e a primeira com uma exposição de fotos). A notícia de que a câmera podia mentir tornou muito mais popular o ato de se deixar fotografar.
As consequências de mentir têm de ser mais cruciais para a fotografia do que jamais seriam para a pintura porque as imagens planas, em geral retangulares, que constituem as fotos reclamam para si uma condição de verdade que as pinturas nunca poderiam pretender. Uma pintura falsificada (cuja autoria é falsa) falsifica a história da arte. Uma fotografia falsificada (retocada ou adulterada, ou cuja legenda é falsa) falsifica a realidade. A história da fotografia poderia ser recapitulada como a luta entre dois imperativos distintos: embelezamento, que provém das belas-artes, e contar a verdade, que se mede não apenas por uma ideia de verdade isenta de valor, herança das ciências, mas por um ideal moralizado de contar a verdade, adaptado de modelos literários do século XIX e da (então) nova profissão do jornalismo independente. A exemplo do romancista pós-romântico e do repórter, o fotógrafo deveria desmascarar a hipocrisia e combater a ignorância. Uma tarefa para a qual a pintura era um procedimento demasiado lento e demorado, por mais que muitos pintores do século xix partilhassem a crença de Millet de que le beau c’est le vrai [o belo é o verdadeiro]. Observadores sagazes notaram que havia algo nu na verdade que uma foto transmitia, mesmo quando seu criador não tencionava ser intrometido. Em A casa das sete torres, Hawthorne faz o jovem fotógrafo Holgrave comentar sobre o retrato em daguerreótipo que, “embora lhe demos crédito apenas por retratar a mera superfície, na verdade ele desvela o caráter secreto com uma veracidade a que nenhum pintor jamais se atreveria, mesmo se pudesse detectá-lo”.
Livres da necessidade de fazer escolhas rigorosas (como faziam os pintores) de quais imagens eram dignas de se contemplar, devido à rapidez com que as câmeras registravam tudo, os fotógrafos transformaram a visão em um novo tipo de projeto: como se a visão, em si mesma, perseguida com avidez e dedicação, pudesse de fato reconciliar a pretensão de veracidade com a necessidade de achar o mundo belo. No passado, um objeto de assombro por causa da sua capacidade de apresentar fielmente a realidade, bem como, no início, um objeto de desprezo devido a sua escassa exatidão, a câmera terminou por promover uma brutal ascensão do valor das aparências. As aparências como a câmera as registra. As fotos não se limitam a apresentar a realidade — realisticamente. A realidade é que é examinada, e avaliada, em função da sua fidelidade às fotos. “A meu ver”, declarou Zola, o mais destacado ideólogo do realismo literário, em 1901, após quinze anos de fotografia amadora, “não se pode afirmar ter visto uma coisa antes de ter fotografado essa coisa.” Em lugar de simplesmente registrar a realidade, as fotos tornaram-se a norma para a maneira como as coisas se mostram a nós, alterando por conseguinte a própria ideia de realidade e de realismo.
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Susan Sontag (16 de janeiro de 1933, Nova Iorque — 28 de dezembro de 2004) foi uma escritora, crítica de arte e ativista dos Estados Unidos.
Graduou-se na Universidade de Harvard e destacou-se por sua defesa dos direitos humanos. Publicou vários livros, entre eles Styles of Radical Will, The Way We Live Now, Against Interpretation e In America, pelo qual recebeu em 2000 um dos mais importantes prémios do seu país, o National Book Award.
Publicou artigos em revistas como The New Yorker e The New York Review of Books e no jornal The New York Times.
Num de seus últimos artigos, publicado em maio de 2004 no jornal The New York Times, Sontag afirmou que "a história recordará a Guerra do Iraque pelas fotografias e vídeos das torturas cometidas pelos soldados americanos na prisão de Abu Ghraib. Ela faleceu aos 71 anos de idade de síndrome mielodisplásica seguida de uma leucemia mielóide aguda em 28 de Dezembro de 2004.
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Susan Sontag - Na Caverna de Platão (02)
Susan Sontag - Na Caverna de Platão (03)
Susan Sontag - Estados Unidos, visto em fotos, de um ângulo sombrio (01)
Susan Sontag - Estados Unidos, visto em fotos, de um ângulo sombrio (02)
Susan Sontag - Estados Unidos, visto em fotos, de um ângulo sombrio (03)
Susan Sontag - Objetos de Melancolia (01)
Susan Sontag - Objetos de Melancolia (02)
Susan Sontag - Objetos de Melancolia (03)
Susan Sontag - Objetos de Melancolia (04)
Susan Sontag - O Heroísmo da Visão (02)
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Copyright © 1973, 1974, 1977 by Susan Sontag
Este livro foi publicado originalmente em 1977, nos Estados Unidos,
pela Farrar, Straus & Giroux
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Título original
On photography
Capa
Angelo Venosa
Foto de capa
Fotógrafo americano anônimo (c. 1850). /
Coleção Virginia Cuthbert Elliot, Buffalo, Nova York
Preparação
Otacílio Nunes Jr.
Revisão
Denise Pessoa
Ana Maria Barbosa
Atualização ortográfica
Página Viva
ISBN 978-85-8086-579-0
Todos os direitos desta edição reservados à
editora schwarcz ltda.
Rua Bandeira Paulista 702 cj. 32
04532-002 — São Paulo — sp
Telefone: (11) 3707 3500
Fax: (11) 3707 3501
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Ensaios
Susan Sontag
O HEROÍSMO DA VISÃO
Ninguém jamais descobriu a feiura por meio de fotos. Mas muitos, por meio de fotos, descobriram a beleza. Salvo nessas ocasiões em que a câmera é usada para documentar, ou para observar ritos sociais, o que move as pessoas a tirar fotos é descobrir algo belo. (O nome com que Fox Talbot patenteou a fotografia em 1841 foi calótipo: do grego kalos, belo.) Ninguém exclama: “Como isso é feio! Tenho de fotografá-lo”. Mesmo se alguém o dissesse, significaria o seguinte: “Acho essa coisa feia... bela”.
É comum, para aqueles que puseram os olhos em algo belo, lamentar-se de não ter podido fotografá-lo. O papel da câmera no embelezamento do mundo foi tão bem-sucedido que as fotos, mais do que o mundo, tornaram-se o padrão do belo. Anfitriões orgulhosos de sua casa podem perfeitamente mostrar fotos do lugar onde moram para deixar claro aos visitantes como se trata de uma casa, de fato, maravilhosa. Aprendemos a nos ver fotograficamente: ver a si mesmo como uma pessoa atraente é, a rigor, julgar que se ficaria bem numa fotografia. As fotos criam o belo e — ao longo de gerações de fotógrafos — o esgotam. Certas glórias da natureza, por exemplo, foram simplesmente entregues à infatigável atenção de amadores aficionados da câmera. Pessoas saturadas de imagens tendem a achar piegas os pores do sol; agora, infelizmente, eles se parecem demais com fotos.
Muitos se sentem nervosos quando vão ser fotografados: não porque receiem, como os primitivos, ser violados, mas porque temem a desaprovação da câmera. As pessoas querem a imagem idealizada: uma foto que as mostre com a melhor aparência possível. Sentem-se repreendidas quando a câmera não devolve uma imagem mais atraente do que elas são na realidade. Mas poucos têm a sorte de ser “fotogênicos” — ou seja, parecer melhor nas fotos (mesmo quando não são maquiados ou beneficiados pela luz) do que na vida real. A circunstância de as fotos serem muitas vezes elogiadas por sua espontaneidade, por sua honestidade, indica que a maioria das fotos, é claro, não é espontânea. Em meados da década de 1840, o processo negativo-positivo de Fox Talbot começou a substituir o daguerreótipo (o primeiro processo fotográfico viável). Uma década depois, um fotógrafo alemão inventou a primeira técnica de retocar o negativo. Suas duas versões de um mesmo retrato — uma retocada, a outra não — espantaram a multidão na Exposition Universelle de Paris, em 1855 (a segunda feira mundial e a primeira com uma exposição de fotos). A notícia de que a câmera podia mentir tornou muito mais popular o ato de se deixar fotografar.
As consequências de mentir têm de ser mais cruciais para a fotografia do que jamais seriam para a pintura porque as imagens planas, em geral retangulares, que constituem as fotos reclamam para si uma condição de verdade que as pinturas nunca poderiam pretender. Uma pintura falsificada (cuja autoria é falsa) falsifica a história da arte. Uma fotografia falsificada (retocada ou adulterada, ou cuja legenda é falsa) falsifica a realidade. A história da fotografia poderia ser recapitulada como a luta entre dois imperativos distintos: embelezamento, que provém das belas-artes, e contar a verdade, que se mede não apenas por uma ideia de verdade isenta de valor, herança das ciências, mas por um ideal moralizado de contar a verdade, adaptado de modelos literários do século XIX e da (então) nova profissão do jornalismo independente. A exemplo do romancista pós-romântico e do repórter, o fotógrafo deveria desmascarar a hipocrisia e combater a ignorância. Uma tarefa para a qual a pintura era um procedimento demasiado lento e demorado, por mais que muitos pintores do século xix partilhassem a crença de Millet de que le beau c’est le vrai [o belo é o verdadeiro]. Observadores sagazes notaram que havia algo nu na verdade que uma foto transmitia, mesmo quando seu criador não tencionava ser intrometido. Em A casa das sete torres, Hawthorne faz o jovem fotógrafo Holgrave comentar sobre o retrato em daguerreótipo que, “embora lhe demos crédito apenas por retratar a mera superfície, na verdade ele desvela o caráter secreto com uma veracidade a que nenhum pintor jamais se atreveria, mesmo se pudesse detectá-lo”.
Livres da necessidade de fazer escolhas rigorosas (como faziam os pintores) de quais imagens eram dignas de se contemplar, devido à rapidez com que as câmeras registravam tudo, os fotógrafos transformaram a visão em um novo tipo de projeto: como se a visão, em si mesma, perseguida com avidez e dedicação, pudesse de fato reconciliar a pretensão de veracidade com a necessidade de achar o mundo belo. No passado, um objeto de assombro por causa da sua capacidade de apresentar fielmente a realidade, bem como, no início, um objeto de desprezo devido a sua escassa exatidão, a câmera terminou por promover uma brutal ascensão do valor das aparências. As aparências como a câmera as registra. As fotos não se limitam a apresentar a realidade — realisticamente. A realidade é que é examinada, e avaliada, em função da sua fidelidade às fotos. “A meu ver”, declarou Zola, o mais destacado ideólogo do realismo literário, em 1901, após quinze anos de fotografia amadora, “não se pode afirmar ter visto uma coisa antes de ter fotografado essa coisa.” Em lugar de simplesmente registrar a realidade, as fotos tornaram-se a norma para a maneira como as coisas se mostram a nós, alterando por conseguinte a própria ideia de realidade e de realismo.
continua página 53...
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Susan Sontag (16 de janeiro de 1933, Nova Iorque — 28 de dezembro de 2004) foi uma escritora, crítica de arte e ativista dos Estados Unidos.
Graduou-se na Universidade de Harvard e destacou-se por sua defesa dos direitos humanos. Publicou vários livros, entre eles Styles of Radical Will, The Way We Live Now, Against Interpretation e In America, pelo qual recebeu em 2000 um dos mais importantes prémios do seu país, o National Book Award.
Publicou artigos em revistas como The New Yorker e The New York Review of Books e no jornal The New York Times.
Num de seus últimos artigos, publicado em maio de 2004 no jornal The New York Times, Sontag afirmou que "a história recordará a Guerra do Iraque pelas fotografias e vídeos das torturas cometidas pelos soldados americanos na prisão de Abu Ghraib. Ela faleceu aos 71 anos de idade de síndrome mielodisplásica seguida de uma leucemia mielóide aguda em 28 de Dezembro de 2004.
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Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo
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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
Susan Sontag - Na Caverna de Platão (03)
Susan Sontag - Estados Unidos, visto em fotos, de um ângulo sombrio (01)
Susan Sontag - Estados Unidos, visto em fotos, de um ângulo sombrio (02)
Susan Sontag - Estados Unidos, visto em fotos, de um ângulo sombrio (03)
Susan Sontag - Objetos de Melancolia (01)
Susan Sontag - Objetos de Melancolia (02)
Susan Sontag - Objetos de Melancolia (03)
Susan Sontag - Objetos de Melancolia (04)
Susan Sontag - O Heroísmo da Visão (02)
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Copyright © 1973, 1974, 1977 by Susan Sontag
Este livro foi publicado originalmente em 1977, nos Estados Unidos,
pela Farrar, Straus & Giroux
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Título original
On photography
Capa
Angelo Venosa
Foto de capa
Fotógrafo americano anônimo (c. 1850). /
Coleção Virginia Cuthbert Elliot, Buffalo, Nova York
Preparação
Otacílio Nunes Jr.
Revisão
Denise Pessoa
Ana Maria Barbosa
Atualização ortográfica
Página Viva
ISBN 978-85-8086-579-0
Todos os direitos desta edição reservados à
editora schwarcz ltda.
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