segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (22)

 Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1


1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Memórias de duas jovens esposas





PRIMEIRA PARTE




XXII – LUÍSA A FELIPE [1]


Junho




Não estou satisfeita com o senhor. Se não chorou ao ler Berenice[2] de Racine, se não viu nela a mais horrível das tragédias, é que não me compreende, e jamais nos entenderemos: rompamos, não nos vejamos mais, esqueça-me; porque se não me responde de modo satisfatório, eu o esquecerei, o senhor será para mim o barão de Macumer, ou antes, não será nada, pois será como se jamais tivesse existido. Ontem, em casa da sra. d’Espard, mostrou não sei que ar de contentamento que me desagradou imensamente. Parecia ter certeza de ser amado. Enfim, sua liberdade de espírito apavorou-me, e naquele momento não vi mais no senhor o servo que dizia ser na sua primeira carta. Em vez de estar abstraído como deve estar um homem que ama, o senhor tinha ditos espirituosos. Um verdadeiro crente não procede assim: está sempre prostrado ante a divindade. Se eu não sou um ser superior às outras mulheres, se não vê em mim a fonte de sua vida, sou menos do que uma mulher, porque sou então simplesmente uma mulher. Despertou minha desconfiança, Felipe: ela rugiu de modo a abafar a voz da ternura, e, quando encaro nosso passado, sinto-me com direito de ser desconfiada. Saiba-o, senhor ministro constitucional de todas as Espanhas, refleti profundamente sobre as tristes condições de meu sexo. Minha inocência susteve archotes em suas mãos sem se queimar. Ouça bem o que me disse minha jovem experiência e que aqui lhe repito. Em qualquer outra coisa, a duplicidade, a falta de fé, as promessas não executadas encontram juízes, e os juízes infligem castigos; mas isso não acontece com o amor, que deve ser ao mesmo tempo a vítima, o acusador, o advogado, o tribunal e o algoz; porque as mais atrozes perfídias, os crimes mais horríveis permanecem ignorados, sendo praticados de alma para alma, sem testemunhas, e está no interesse bem compreendido do assassinado permanecer mudo. O amor tem, pois, seu próprio código, sua própria vingança: a sociedade nada tem a ver com isso. Ora, resolvi eu jamais perdoar um crime, e nas coisas do coração não há nada insignificante. Ontem, o senhor parecia um homem que tem certeza de ser amado. Faria mal se não tivesse essa certeza, mas seria criminoso aos meus olhos se ela lhe tirasse a graça ingênua que antes lhe davam as ansiedades da esperança. Não quero vê-lo, nem tímido nem fátuo, não quero que trema pelo receio de perder minha afeição porque seria um insulto, mas não quero tampouco que a segurança lhe permita carregar despreocupadamente seu amor. Nunca deverá ser mais livre do que eu própria. Se não conhece o suplício que um único pensamento de dúvida impõe à alma, tema que eu lhe ensine. Por um único olhar entreguei-lhe a alma, e nela você pôde ler. Possui o senhor os sentimentos mais puros que jamais se ergueram numa alma de moça. A reflexão, as meditações de que lhe falei enriqueceram-me apenas o espírito, mas quando o coração maltratado pedir conselho à inteligência, creia-me, a moça participará do anjo, que tudo sabe e tudo pode. Juro-lhe, Felipe, se me ama, como creio, e se deixa que me invade a suspeita do mínimo enfraquecimento nos sentimentos de temor, de obediência, de respeitosa espera, de desejo submisso, que me afirmou; se me apercebo um dia da mínima diminuição daquele primeiro e belo amor que de sua alma veio até a minha, nada lhe direi; não o importunarei com uma carta mais ou menos digna, mais ou menos altiva ou zangada, ou somente repreensiva como esta; nada direi, Felipe: você me veria triste à maneira das pessoas que sentem a morte aproximar-se; mas eu não morreria sem lhe ter impresso o mais horrível estigma, sem ter desonrado do modo mais vergonhoso aquela a quem ama e ter-lhe enterrado no coração eternos remorsos, porquanto me veria perdida na Terra aos olhos dos homens e para sempre maldita na outra vida. 

Assim, pois, não me deixe ciumenta de uma outra Luísa feliz, de uma Luísa santamente amada, de uma Luísa cuja alma se expandia num amor sem sombras e que possuía, segundo a sublime expressão de Dante,

Senza brama, sicura ricchezza![3]

Saiba que esquadrinhei o Inferno para de lá trazer a mais dolorosa das torturas, um castigo moral terrível ao qual associarei a eterna vingança de Deus.

Ontem, pois, insinuou-se, em meu coração, por seu procedimento, a lâmina fria e cruel da suspeita. Compreende? Duvidei de si e sofri tanto que não quero mais duvidar. Se achar que sua escravidão é demasiado dura, abandone-a, não lhe quererei mal por isso. Não sei acaso que é um homem de espírito? Reserve todas as flores de sua alma para mim, tenha os olhos inexpressivos em sociedade, não se coloque nunca em situação de receber uma lisonja, um elogio, um cumprimento de quem quer que seja. Venha ver-me saturado de ódio, suscitando mil calúnias ou acabrunhado de desprezo, venha dizer-me que as mulheres não o compreendem, caminham a seu lado sem vê-lo, e que nenhuma delas seria capaz de amá-lo: conhecerá então o que há para si no coração e no amor de Luísa. Nossos tesouros devem estar tão bem enterrados que o mundo inteiro os calque aos pés sem suspeitá-los. Se o senhor fosse belo, seguramente eu jamais lhe teria prestado a menor atenção e não teria descoberto em si o mundo de razões que faz desabrochar o amor; e, conquanto não as conheçamos, do mesmo modo por que não sabemos como faz o sol para criar as flores e amadurecer os frutos, não obstante, entre essas razões uma existe que conheço e me encanta. Sua sublime fisionomia não tem seu caráter, sua linguagem, seu aspecto a não ser para mim. Somente eu tenho o poder de transformá-lo, de torná-lo o mais adorável de todos os homens; não quero, pois, que seu espírito escape de meu poder: ele não deve revelar-se aos outros, do mesmo modo que seus olhos, sua encantadora boca, suas feições nada lhes dizem. Que somente a mim toque acender os clarões de sua inteligência, como inflamo seus olhares. Conserve-se esse sombrio e glacial, esse enfadonho e desdenhoso grande de Espanha que era antes. O senhor era um tosco domínio destruído, em cujas ruínas ninguém se aventurava: era contemplado de longe. E eis que o senhor desbasta estradas complacentes para que todos ali penetrem, e vai tornar-se um amável parisiense! Não se recorda mais de meu programa? Sua alegria dizia demasiado que amava. Foi preciso um olhar meu para impedi-lo de dar a conhecer ao mais perspicaz, ao mais zombeteiro, ao mais espirituoso dos salões de Paris, que Armanda Luísa Maria de Chaulieu lhe dava espírito. Considero-o demasiado grande para recorrer ao menor ardil da política em seu amor; mas, se não tiver comigo a simplicidade de uma criança, eu o lamentaria; e, apesar desta primeira falta, é ainda alvo de profunda admiração para


LUÍSA DE CHAULIEU




continua pág 286...
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[1] Em sua correspondência com a condessa Hanska, sua futura esposa, Balzac afirma que esta carta de Luísa a Felipe constitui um dos poucos trechos de sua obra em que ele se inspirou conscientemente num acontecimento da própria vida, a saber, numa cena de ciúme que se verificou entre ele e a condessa durante seu encontro em Viena, em 1835.

[2]Berenice: bela tragédia de Racine, quase impossível de se resumir, pois toda a ação é íntima, desenvolvendo-se no coração de dois amantes famosos, o imperador Tito e a rainha Berenice. Todo o enredo foi tirado destas duas linhas de Suetônio: “Tito, que amava apaixonadamente a rainha Berenice e até lhe teria prometido casamento, mandou-a embora de Roma a malgrado seu e dela, logo nos primeiros dias de seu império”.

[3]Senza brama, sicura ricchezza (em italiano): “(possuir) sem inquietação, riquezas seguras”; palavras de Dante (Paraíso, xxvii, 9).

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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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