segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, IX — Alegre fim de festa

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Terceiro — Em 1817




IX — Alegre fim de festa




Ficando sós, as raparigas encostaram-se a duas e duas em cada uma das janelas e começaram a falar umas com as outras, debruçando-se pela parte de fora. 

Viram sair os rapazes de braço dado, voltarem-se, dizerem-lhes adeus entre risos e desapareceram no meio da poeira e da multidão, que todos os domingos invade os Campos Elíseos.

— Não se demorem! — gritou Fantine.

— O que nos trarão eles? — indagou Zefina.

— Não pode deixar de ser uma coisa bonita — respondeu Dália.

— Eu desejo que seja de oiro o que nos trouxerem — disse Favorita.

Dentro em pouco foram distraídas pelo movimento que se operava junto do cais, que distinguiam por entre os ramos das árvores e que muito as divertia. Era a hora da partida das mala-postas e diligências.

Quase todos os transportes do sul e do oeste passavam então pelos Campos Elíseos. A maior parte deles seguia pelo cais e saía pela barreira de Passy. De instante a instante, um grande veículo pintado de amarelo e preto, em extremo carregado, cuidadosamente aparelhado, disforme à força de malas, de baús e trouxas, cheio de cabeças que mal se viam, esmagava a calçada, arremessando-se por entre a multidão, espargindo mais faíscas do que uma forja, levantando uma nuvem de poeira, correndo impetuoso como uma fúria. Este ruído continuado causava imenso prazer às raparigas. Favorita exclamou:

— Que barulheira! Dir-se-ia serem montões de correntes de ferro despenhando-se pelo ar!

Sucedeu que um destes veículos, que dificilmente se distinguia por entre a espessura dos ulmeiros, parou por um momento, partindo logo depois a galope. Isto causou grande espanto a Fantine.

— É singular! — disse ela.

— Sempre julguei que a diligência não parava.

Favorita encolheu os ombros e replicou:

— Esta Fantine é única! Faz rir a gente, ainda que não tenha vontade! Merece ser vista por curiosidade! Espanta-se com as coisas mais simples! Ora supõe tu que eu sou um viajante e digo ao cocheiro da diligência: «Eu vou andando e quando passar no cais, entrarei». A diligência passa, o cocheiro vê-me, pára e eu entro. É uma coisa que se faz todos os dias. Olha, minha cara, não conheces mesmo nada das coisas deste mundo!

Decorreu assim algum tempo. De súbito, Favorita com um movimento de quem desperta, exclamou:

— É verdade, e a surpresa?

— Tens razão — acudiu Dália —, a tal famosa surpresa?

— Demoram-se tanto! — disse Fantine.

Mal Fantine acabara de dizer isto, quando o criado que servira o jantar entrou, trazendo na mão uma coisa que parecia uma carta.

— O que é isso? — perguntou Favorita.

— É um papel que aqueles senhores deixaram para entregar às meninas — respondeu o criado.

— Mas por que não o trouxe há mais tempo?

— Porque me recomendaram que o não entregasse senão passada uma hora.

Favorita arrancou o papel das mãos do criado e viu que era com efeito uma carta.

— Querem ver? — disse ela. — Não traz sobrescrito, mas tem escrito por fora: AÍ VAI A SURPRESA!

Em seguida abriu rapidamente a carta e leu (já dissemos que Favorita sabia ler):



Queridas amantes: 
Saibam que temos pais. Decerto não imaginam bem o que isto quer dizer. É uma coisa de que se fala no código civil, pueril e honesto. Ora, estes parentes choram de saudades, esses velhos reclamam-nos, essas excelentes criaturas chamam-nos filhos pródigos, estão ansiosos por nos ver e prometem receber-nos com uma grande festa. Não podemos deixar de satisfazer tão virtuoso desejo. Quando lerem isto, cinco fogosos cavalos nos transportarão ao seio de nossos papás e mamãs. Levantamos campo, como diz Bossuet. Ausentamo-nos, ou, por outra, partimos. Fugimos nos braços de Laffite e nas asas de Caillard. A diligência de Toulouse arranca-nos ao abismo, e o abismo sois vós, encantadoras pequenas! Voltamos à sociedade, ao dever e à ordem, a trote largo, à razão de três léguas por hora. A pátria quer que sejamos, como toda a gente, perfeitos pais de famílias, guardas campestres e conselheiros de Estado. Venerem-nos, porque nos sacrificamos. Chorem-nos rapidamente e substituam-nos depressa. Se esta carta vos magoar, façam-lhe o mesmo. Não nos guardem rancor. Adeus.
Assinado: 
Blachevelle
Fameuil
Listolier
Félix
Tholomyés
P. S. O jantar está pago.



As quatro raparigas olharam-se mutuamente. Favorita foi a primeira que rompeu o silêncio:

— Então?! — exclamou ela. — Hão-de concordar que foi uma boa peça!

— Tem graça, na verdade! — disse Zefina.

— Foi decerto o Blachevelle quem teve esta lembrança — tornou Favorita. — Isto faz com que o ame. Se mais depressa se fosse, mais depressa o amava, esta é que é a verdade!

— Não! — atalhou Dália. — Esta ideia foi do Tholomyés. Bem se vê!

— Nesse caso — replicou Favorita — morra Blachevelle e viva o Tholomyés!

— Viva o Tholomyés! — exclamaram Dália e Zefina.

E desataram a rir às gargalhadas. Fantine riu como as outras.

Decorrida uma hora, porém, quando se encontrou só no seu quarto, chorou. Era este o seu primeiro amor; dera-se a Tholomyés como a um marido e a pobre rapariga tinha um filho.





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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, VII — Prudência de Tholomyés
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, VIII — Morte dum cavalo
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quartoo - Confiar é por vezes abandonar  — I


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Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)



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