Vimos as mesmas atrocidades, mas de jeitos diferentes
Canalhas disfarçados de humanidade
baitasar
Caso exista destino... O meu é ser puta. Não, eu não quero chocar ninguém, nem você minha amiga querida. Mas chegou a hora da minha verdade. É agora ou nunca. É bem assim: tem hora de chorar, rir as gargalhadas e fugir, e fingir, e foder. Ah! Já sei, você foi ensinada a fingir como uma das branquelas: não consegue fingir de tanto fingir. Não acredito que você acredita que cada vez que um desses homens se enfia em minhas covinhas ele me faz gozar. Tudo fingimento minha querida. Eles me pagam para não fingir: eu finjo que não finjo.
Sabe como é, puta muda de patrão, mas não de condição. E minha amiga, a sina depois de conquistada com a fama precisa deitar na cama e aconselhar a zanga descontrolada a ter paciência. Perca-se tudo, menos a honra. Puta não pode embravecer; puta furiosa vai à cana e perde o sustento, às vezes, por causa de um vintém se gasta cem. Então, poupa teu vintém que um dia serás alguém. Muitas das gentes, mesmo aqui, no Morro do Galo, apostaram sobre quem me cortaria a cabeça. Juram que não apostavam por mal, apenas curiosidade e oportunidade de afirmar alguma coisa, qualquer coisa, contra la castellana; no início chorei muito, depois foi diferente ou não importava, o fim é sempre um fim.
Foi o destino que eu quis que me fez. Fugi da Montaña e do Coronel por crer que o meu destino seria longe de Piedras Altas e dos que viam tudo.
O Coronel era homem de poucos aparecimentos entre os pardos e os nativos. Por instinto, el hombres de maíz se desassossegavam com a desaparição do patrão na Montaña. Quanto menos o Coronel aparecia mais lhes aconselhava a prudência: os olhos do patrão vigiavam
(A desgraça do pobre é querer imitar o rico.) (Por que diz isso, Jaquín?) (Essa merda de aumentar o rebanho deu em nada, não temos as leiteiras, nem os bezerros, nem o touro, nem a vida.) (É preciso esperar os dias de parir.) (José, qual a desculpa para o aparecimento dos novilhos?)
Com certeza pensariam em algo.
Em Piedras Altas, naqueles dias de sumiço do touro, o Coronel criou um grupo de quadrilheiros pagos para perseguir o desaparecimento do animal do coronel. Aprisionaram um homem para torturar e amedrontar. Não sabiam por onde começar, então, a agonia começou por aquele coitado. Um qualquer que encontraram pelo caminho da roça. Quando a impunidade é assegurada, por quem tem o dever de policiar, os homens maus batem até se entediarem. E enfadados de bater e espremer, eles cortaram as duas mãos do pobre infeliz, e assim deixaram o torturado como recado de avisar aos escondidos da Montaña: a vida é apenas morte quando não se tem permissão do Coronel.
No momento em que Juzé Qualquer soube da crueldade, quis descer aos gritos sobre aqueles homens perversos, foi impedido pelo realismo ingênuo do seu propósito. Precisava manter os cuidados secretos da gestação das leiteiras, e ademais, um anão morto é apenas um nanico morto
(Espero que tanto sacrifício valha à pena...)
Escutava do viento as palavras da minha irmã
(Valentia no es privilegio.)
Nem o tempero da vingança, que precisa ser servida com cuidado e paciência
(Uma corja de assassinos... assassinos de contrato!) (¡Hijos-de-puta! ¡Asalariados de la muerte!)
Foram dias de muita frustração para Juzé Qualquer. Não fora feito homem para lutar, mas o cheiro insuportável e moribundo da muerte o fez querer rebelar los hombres mata-piolhos. Não havia tempo para treinar soldados, na verdade, ele tinha medo de aprender a matar com aqueles homens ingênuos. Resistia pendurar na sua consciência o gosto de matar em jovens e velhos de milho. Não tinha o paladar revolucionário: “Matar, se preciso!”
(Blanca, não quero sangue em minhas mãos, não espero ensinar a matar.) (Entonces, esta lucha ya es perdida.) (Desde o tempo do primeiro esbranquiçado.) (¿Y queda nada sino abuso, violencia y tormentos?) (Lutar.) (No entiendo...) (Minha querida, lutar e sobreviver é a obrigação de qualquer soldado, mas todos perdem a ternura.)
E assim, seguiu seu caminho naquele rebanho e paraíso destruído, se todos somos um destino, Juzé Qualquer Um, por certo, estava resistindo ao seu, um destino de morte e traição. Sabia que la muerte lhe viria chamar, como dever de ofício ao código de honra, todo hombre haverá de morrer em razão de alguma coisa, alguma ordem, algum descuido, alguma traição, sobreviver é sua obrigação, mas seu ato de covardia final.
Um período de calmaria anunciava a tempestade de destruição que se aproximava. Os homens pagos pelo dono dos milhos, dos campesinos e da Montaña aliviaram os patrulhamentos de cavalos entre os milhos. Na vila ou nas estradas, a vida quase voltava às normalidades do dia-a-dia. Os cachorros e as galinhas retornavam aliviadas ao cotidiano de resmungos e alaridos. Os ovos retornaram a aparecer nos ninhos. As poedeiras estavam acalmadas e empolgadas com a tarefa de pôr ovos.
As crianças brincavam de mocinho e bandido, ali, as fantasias entre los enfantes, o bandido e o mocinho se misturavam e separavam, conforme os amigos de um dia passavam a ser os inimigos no outro dia, dependia dos escolhidos para empunhar pistolas feitas de gravetos, que atiravam balas de chumbo saídas das gargantas, pá-pá-pá. O mocinho empunhava sua espada de pau, não podia ser muito pesada, nem frágil ao ponto que se partisse no primeiro golpe, era uma escolha difícil, não raras vezes, adiavam o início das escaramuças. As meninas somente se reuniam aos meninos nas tréguas para comerem bananas e falarem sus miedos.
Eu queria estar entre os meninos, acompanhando o dono da espada, qualquer que fosse, a cada novo dia. Queria ser a Blanca, La Leporina. Todas as manhãs, quando saíamos para os tiroteios de fantasia, riscava com carvão um corte no lábio de cima até as ventanas, enquanto esperava los niños decidirem quem seria o anão. Não me importava o escolhido, bastava que me cuidasse e empunhasse sua espada. Carregava meu companheiro por caminhos desconhecidos para eles. Estradas misteriosas imaginadas por mim, alguns desistiam e se entregavam assustados ao inimigo, esses não mereciam a confiança da La Leporina, recebiam o desprezo. Até que Juanito teve sua oportunidade como Qualquer Um. O guri já chegou com sua espada na mão, pronta para as escaramuças. Olhou para todos, um por um, até me encontrar, e disse
(Sígueme.)
Respondi que era a La Leporina e ele deveria me seguir. Não pareceu me escutar. Ordenou que os demais ficassem deitados de barriga e, com os olhos cerrados e as orelhas tapadas com as mãos, contassem até cem ou até onde conseguissem. Depois, com um olhar selvagem e desconfiado, voltou a me ordenar que o seguisse. Quase lhe respondi que o seguiria ao fim do mundo, mas já estávamos no fim do mundo. Silenciei e partimos.
(uno, dos, tres, cuatro, cinco, seis, siete...)
A cada vez que avançamos aquela contagem se perdia nos ruídos e alvoroço dos milhos. Até que iniciamos a trilha da mata. No início o carreiro me era conhecido, mas não demorou muito para me parecer perdida. Não lembrava onde, naquela confusão de idas e vindas, deixei de cuidar do caminho e desatentei, seguia apenas as ordens do Juanito. Isso não era um bom sinal, voltar seria penoso e exigiria de mim muito jeito de entender os mistérios da Montaña.
Pulamos uma cerca de farpas. Uma placa jogada no chão com uma caveira e uma cruz deitada pareciam anunciar que não devíamos estar daquele lado da cerca farpada
(Juanito, estamos longe...) (Asi, los chicos procuram e não nos acham.)
Depois de horas fugindo, já me parecendo que estávamos do outro lado da Montaña, Juanito fez sinal para que eu parasse de caminhar e falar. Foi quando me pareceu ouvir gritos abafados, desesperados. Primeiro, meu corpo amoleceu de pavor, pequenas gotinhas de xixi me escorreram, quis fugir, mas não conhecia o caminho da volta. Depois de uma nanica hesitação, Juanito ordenou o nosso avanço precavido.
Seguíamos gritos abafados, como se estivessem presos naquela Montaña sem ouvidos, berros que nunca foram escutados além da mestiçagem, então nunca existiram. Aqueles que não vivem não têm voz, si caminas te alcanza y si corres se te pega. A trilha dos milhos estava perdida desde tempos atrás, continuamos mata adentro e acima, um território desconhecido para nosotros. Já estava recobrada do meu amolecimento e a curiosidade empunhava meus pés. A clareza dos gritos indicava o caminho a ser andado. Juanito empunhava sua espada da pau, eu carregava a cicatriz de La Leporina, me achava encantada, mas o cheiro da muerte invadia nossos pequenos cuerpos y almas.
Súbito, Juanito se virou e tapou minha boca com a sua. O inesperado daquele gesto voltou a me assustar além da minha compreensão. Quis lhe perguntar por que, mas quando meus olhos aprenderam para onde olhar, o restante do meu xixi ficou a derramarse, como uma represa de pavor. Juanito não tapou a minha boca, mas cobriu o seu silêncio. O meu paraíso estava para sempre destruído.
Campesinos estavam prisioneiros em forcas longas e baixas, semi-nus, de modo que os pés tocavam quase a terra, o fogo queimava vivos todos que ali estavam presos. Haviam certos gradis sobre garfos com um pequeno fogo por baixo a fim de que, lentamente, como animais sendo assados para um banquete, rodando sobre o fogo, dando gritos e em tormento infinitos, rendessem o espírito ao senhor da Montaña
(Basta encontrar as respostas para o Coronel...) — nenhuma resposta, apenas o lamentoso desespero dos condenados — (Caraca, cholo! És mejor hablar y deixar que pensem o que quiserem.) — somente os vivos ficam vivos — (Preguiçosos até para salvar suas vidas.)
Os risos de zombaria se misturavam as súplicas e gritos de dor.
Um vapor esbranquiçado subia acima das feridas, mas não ousava passar das árvores. Enchia com seu perfume de carne assada, tudo na sua volta. Grudado na pele, enfiados nos pés, nas mãos, las ventanas foram as primeiras que ficaram acostumadas com os vapores da carne grelhada. Fiquei sem respirar nos pulmões, rezava por um redemoinho de vento para fazer escapar aquele cheiro de carne mortificada.
Pensei num catavento assoprando para longe. Assoprava e assoprava, atirando cuspe no ar, empurrando com meus pequenos pulmões as pás até que ficou desgovernado, empurrava minha vontade de vomitar como um chicote empurra a dor dos seus estalos para os seus cadáveres gemendo. Não existe glória en la Montaña, apenas, cadáveres gratuitos.
La Muerte passeava sua indignação diante das fogueiras, junto com seu braço direito, el capataz do churrasco. O homem que aviva as brasas não tinha o braço esquerdo, entregue para salvar su patrón de emboscada dos índios
(Índios... Índios... O jeito é passar o fio da espada em todos.) — el hombre do braço direito parecia descontar a falta de um enfiando o outro com sua espada — (... porcaria! É gente sem importância.) (Mas fazem as covas del maíz.) (La Muerte esquece que podemos usar os cholos.) (Esses precisam de algum aliciante.) (Mierda, ninguém trabalha mais por gosto.) (Voltemos ao nosso serviço de urgência...) (Convencer os índios que morrer pela espada és mejor que morrer pelo fogo.) (Isso.)
Ficavam ali, torrando-se e queimando-se sobre esses gradis, quatro foi o que consegui contar ou a memória me deixa notar. Os gritos destes campesinos me impedem de dormir, mesmo hoje, tantos anos passados. Em certo momento, acho que o comandante de tudo aquilo ordenou que estrangulassem os porcos sendo assados, não conseguia dormir; mas o sargento, pelo menos a túnica me pareceu ser de um sargento — a manga do braço esquerdo estava amarrada na cintura, acho que devem existir sargentos com um braço — não quis que fossem estrangulados e ele mesmo embocou pelotas na boca de cada um, para que não gritassem. Atiçou o fogo até que ficassem torrados, dançava em meio a fumaça daquele cheiro de carne queimada, sentia prazer no medo que provocava, o sangue fervendo, as tripas tremendo, apenas a certeza da morte.
Juanito e eu retrocedemos sobre os passos de avançar, estávamos em retirada, não podíamos com o nosso olhar de dor, ver no outro a expiação daquele sofrimento nos despejaria os choros. Não havia tempo para histerismo. Não queríamos nenhuma confirmação, eles não queriam nenhuma testemunha. Enquanto não éramos a narração real um do outro, poderíamos desviar da realidade e falar de pesadelos, histórias de bruxas, esquecer as condolências por morte e reclamar da Montaña. O xixi que nos escapou pernas abaixo, os suores e tremores passariam às lendas e mistérios da devoradora de homens. O ar estava sufocante, mas tínhamos que voltar. De repente, estávamos cansados, perdidos e calados. Retrocedíamos tropeçando em nossas sombras e nas sombras que caiam da mata, depois dos milhos gigantescos. Movíamo-nos como formigas atontadas na selva de milhos, tentando aqui ou ali, até reconhecer algum sinal estúpido qualquer, mostrando o caminho para casa. Durante o caminho de volta não tivemos tiempo para combinarmos a história que contaríamos.
Vimos as mesmas atrocidades, mas de jeitos diferentes. Meus olhos estavam frios, a garganta e os olhos secos, como tomates ao sol, descarnados da pele. Minha alma em carne viva, avermelhada. Foi quando eu soube que os homens eram capazes de qualquer crueldade, mas ainda não descobrira todas as suas cruezas grosseiras, demências que meu corpo iria, como penitência por minha mestiçagem, ser obrigado a submeter-se.
A influência das palavras que serve para encantar crianças, não desperta campesinos tratados como niños y niñas líricas, espíritos caídos del cielo para a elegia daquela paisagem dourada. A bocarra do monstro devora seus corpos dia-a-dia com histórias de bruxas e fadas. A voz dos campesinos fica adormecida em tonterías, e vez ou outra se aprontava para deixar desarranjada a Montaña, atontada com a desobediência.
O Coronel vivia em seu palácio elegante, asseado dos sons do sofrimento, o ar isolado das nuvens cinzas, as noites com suas vagas claridades malvas, verdes e as fragrâncias das ervas. Depois de olhar a Montaña pela janela aberta, mira el cielo dourado em sombras. Os milhos adormecem.
Por estas horas não sabia por andava o touro desaparecido.
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