domingo, 23 de outubro de 2011

XIII (1ª) - No se puede hacer la revolucion sin las mujeres


A primeira vez que tive vergonha de não ter buenas agarraderas
Não lembro as despedidas


baitasar

Blanca e Juzé Qualquer Um decidiram que eu seria despedida da Montaña, todos corríamos riscos de sermos usados, uns contra os outros, reféns da ferocidade do Coronel. Havia os murmúrios sobre a vingança dos campesinos armando sus brazos com enxadas: um contra-ataque de desforra. O medo e a insensatez provocavam o histerismo nos puros, a falação sobre a brutalidade da degeneração humana: indios, cholos y impuro são apenas animais. O lixo desprezado da vida, o inimigo perverso a ser muerto. Bruxaria. Falação com os mortos. Palavras da salvação. A mão direita cristã subia como se o sinal da cruz fosse um desenho natural decorado, com promessas e ameaças, mas parava nos lábios carnudos do silêncio conivente
(Silêncio, crianças.) — não somos crianças, somos adubo — (O esterco da vida.) (Amém.)
A outra mão apontava o dedo do meio em riste, ereto
(¡No te jode!) (Calma, calma...) (¡Tenemos el derecho de responder!)
O destempero da vingança: desforra enfurecida por cada trapo de gente cortada ao meio pelas espadas e assadas em fogueiras. Gente sem valia: serviço de alimento. Desaparecidos para a força que une as pessoas pelo terror: medo. Fazem o cadáver do índio e o cadáver do animal flutuarem juntos nas lágrimas choradas que não puderam esperar. Assados, cortados, rasgados, famintos
(Mi hermana, quiero que estes a salvo)
Aceitar isto me pareceu demasiada covardia. Colocar-me em segurança enquanto os demais ardiam em gradis. Fugir me parecia demasiado, mas o que faria uma criança no meio da matança além de atrapalhar e morrer junto
(Não tenho medo de morrer.) (Presunción.)
Disse que não tinha medo da Montaña, ela só assustava os covardes, gritei que não era medrona. Carregava os cojones nos peitos. As lágrimas me saiam como se todas as neves acumuladas em meu topo estivessem desgelando, aquecidas pela vontade de brigar e furar esses monstros, os matadores de nuestras madres. Por breves instantes desejei ser homem, por certo, me deixariam ficar e lutar — Los hombres matan la vida que las mujeres crean — minha irmã sempre com suas razões.
Desisti daquela vontade sinistra, mas as despedidas sempre são difíceis e incontroláveis, pelo menos, para mim. As minhas águas desciam caudalosas dos olhos, se ajuntavam as águas espessas das ventanas e engrossavam, até formar um único rio com as águas da minha boca, então, uma baba adoçada e espessa respingava em meu vestido de linho branco, outra parte daquela baba inútil se perdia enfiada no chão de terra. Todos deixavam suas partes naquele mármore de tierra arrugada de um jeito ou de outro. Una tierra roçada e limpa até o sabugo dos ossos. Passamos a vida afogadas na escravidão da Montaña, continuamos sujeitas a um senhor do Senhor, esmorecendo e derretendo nós mesmas. Não se tem escolha de vida enquanto não enxergamos quem somos, depois começamos à luta
(Soy uma perra egoísta y capitalista, jodida por dinero.)
Foi uma coragem estúpida que me fez pedir para ficar, meu corpo franzino jamais seria um obstáculo para os inimigos dos campesinos. Na verdade, quis ficar por medo da saudade. Carregava muitas saudades ausentes da mamãe e do papai. Estava assustada e sentia muita raiva daqueles bandidos comprados com o sangue das galinhas, dos guaguas, dos piolhos. Queria estar longe, mas tinha vergonha de reconhecer como bom: fugir
(Blanca, não quero ficar escondida.) (Creemos que esta es la necesidad y tú tiene que desaparecer.) (Mas...) (Ellos pueden usar tú para llegar a Juzé.)
Não tinha o que discutir, não tinha nada a oferecer com aquele meu tamanho de risco e fedor, não tinha nada, sabia que os dois tinham razão. Depois que contamos o que eu e Juanito vímos, decidiram atacar o casario senhorial. O anão e La Leporina. O destino estava para se cumprir. O meu também. Apenas que ninguém sabe que ele está se cumprido, é um parceiro que vai se preenchendo enquanto andamos. Aparenta que o destino de uns demora mais que o destino de outros, mas é apenas bobagem: é o que é e pronto
(Não fiz filhos.)
Não haveria de querer filhos para adubar as covas de maíz, para engraxar com su sangre as espadas que nos cortam a cabeça, não, nunca quis filhos. Não saberia como chorar seu destino sepultado em silêncio, aun en mi barriga. Todos pareceram tão mortos, empapados de aguardente no frio e no quente. Não, não queria filhos para o frio da morte nem para o calor das velas. Não seria mais uma mulher a crear la vida, yo solo queria vivir la vida.
A Montaña é um monte de terra que afunda os corpos, afoga as intenções de imaginação. Ela não recebe ordens, todos satisfaziam as suas ordens. Como nosso velho pai, antes do seu encontro com o amolecimento e o descolamento da carne e do osso, antes de desaparecer passava os dias deitado. As costas coladas na palha e a barriga para cima subindo e descendo, enchendo e esvaziando do ar que entrava e saia pela boca. Ele não se contentava mais com o ar en las ventañas. Reclamava que eram furos mui pequeños. Blanca resmungava que os furos deviam estar menores porque papá estava com saudades de sus mujeres e se apressava em ir ao encontro das saias. Ele dava-lhe os ombros: o feito não poderia ser desfeito. O ar no quarto de papá ficava entupido com a fumaça dos seus cigarrillos de palha. En su muerte papá passa os dias e noites deitado... esperando ser encontrado.
O velho bem que tentava sentar, levantar, mas a aldeia e a Montaña, os cachorros, as galinhas, os mestiços, as putas, tudo na sua visão girava, girava, e girava tanto, que os sonhos saiam de dentro da cabeça e retornavam pelos olhos, iam para fora da garganta até a boca, vomitando as entranhas, sacudindo o corpo, estremeciam o roçado e o milho. A tontura e o destino lhe carregaram da vida aos pouquinhos, definhando de fome até não reconhecer na dor a própria fome. Os delírios rodavam em sua cabeça e saiam anunciando o dia do juízo final, a traição de todas as traições: a domesticação da candura e do corpo que os jesuítas da Companhia trouxeram para a Montaña, junto veio a crendice que tudo se acaba um dia, mesmo contra a vontade do patrão da Montaña de maíz.
Titubeando nas palavras, repetia que um imenso porteiro, índio de um lado e mestiço de outro lado, havia de não permitir a passagem de hombres y mujeres de luxo, essa era a porteira prometida aos abandonados e sofridos, o paraíso da vida eterna dos pobrecitos. Um mundo verde, sem preconceitos, sem desigualdades, um mundo de fartura. Assim foi, dia após noite, até que desapareceu em uma noite de estrelas brilhando e dançando, enquanto o exército do coronel entrava en Piedras Altas, descontrolados, aos gritos e as armas atirando nas estrelas. A última vez que vi papá ele caminhava dormindo. Enfrentava os demônios com os espíritos antigos ao seu lado. Desapareceu como se a escuridão do universo estivesse abrindo seus braços para aquele hombre del maíz, um sobrevivente na naturalidade da velhice, parando de suspirar, parando de respirar
(¡Encontramos!)
Papá queria ser levado ao topo da Montaña, enrolado em tecido fino e simples, sem choradeiras ou cantorias. Quis o silêncio de uma cova de milho. Pediu que Blanca colocasse grãos de milho em seus bolsos e mãos, quando o geminado florisse, sua alma estaria se libertando daquela carne enfraquecida, a sua ressurreição estaria completada.
A Montaña é o que é: um montão de tierra; o coronel é o que é: um assassino com autorização de massacrar; nós somos o que somos: gente colocada à parte e sem autoridade. De vez en cuando surge alguém que nos diz que podemos morrer lutando. Éramos muitos para morrer todos, então, seria bom não levar a vida tão a sério, afinal ninguém sairá vivo dela
(Por que devemos morrer lutando?) (Não tenha medo Juanito, Blanca siempre me diz que não podemos morrer duas vezes.) (E uma vez não basta?)
Foi minha última conversa com Juanito, se é que você pode chamar essas palavras de conversa. Saímos vivos do inferno de La Muerte e jamais voltamos a nos encontrar. Não dá para levar a vida tão controlada, antes de entrar pensar na saída, tem vez que a saída é o começo.
Naquela noite fiquei sabendo de conversas entre Juzé e um tal senhor Caraca, ouvi comentário da Blanca que o homem vendia a leitaria das suas vacas. Minha irmã perguntou se ele foi ou é companheiro de farras do Juzé Qualquer, não pude entender com mais claridade de voz, os dois aumentavam e diminuíam seus cochichos. Entendi que o amigo do Zé vivia de espremer tetas. Parece que sempre viveu de espremer quaisquer tetas. Blanca reclamava das tetas de las putas
(¡Me cago em dios!) (Meu amorzinho, são as tetas das vacas...) (¡Apretando las putas tetas!) (Como teu pai!) (¡Papá está muerto!) (Desaparecido!)
Por lá, na Montaña, vivíamos de rasgar a terra com nosso instrumental de campesino: a enxada e as mãos. Nessas maneiras de apertar tetas ficam às putas, com suas sandálias de saltos altos e bocas vermelhas, caminhando acima e abaixo das estradas de barro e poeira. As mãos são ferramentas úteis para arar, semear e colher. Um campesino sem suas mãos não tem utilidades na tierra, será apenas um estorvo que embaraça a enxada esquecida em algum canto por desuso.
Esse amigo do Juzé, o tal espremedor, procurava alguma menina que pudesse dar conta de ajudar la mujer en su buena vida. A tarefa primeira seria cuidar dos filhos da parelha. El exprimidor surgia-me nos sonhos como un hombre com mãos enormes para agarrar tantas tetas e fazer tamanha leitaria. Lembro que só pensava que el hombre não usava as mãos na terra como papá. Com certeza seriam macias de tanto acariciar las vacas. Passei minhas mãos em meus dois pontinhos inchados, parecendo se florir. Foi a primeira vez que tive vergonha de não ter buenas agarraderas e medo de nunca mais encontrar Juanito.
Sai correndo ao encontro de Juanito.
Queria tantas coisas, me lembro apenas da confiança nos olhos de Juanito e a vontade de mostrar minhas pequeñas agarraderas. Fazer daquele momento uma espera para sempre. Corria como jamais havia viajado, entre galinhas e perros, esmagando las cucarachas, chutando los ratones, desviando dos que habían envejecido. Passávamos pelo tempo, minhas agarraderas iam à frente, saltitando, avisando que já chegávamos. Entramos no milharal. Atravessamos.
Lá estava Juanito. Em pé. Esperando.
Paramos na sua frente. Não lhe pudemos falar, não conversamos. Meu coração ofegante silenciava minha garganta. Meus olhos gritavam
(Hoje... me vou embora.)
Suas mãos deixadas ao lado do cuerpo pequeño não se mexiam, inertes e obedientes  não respondiam
(Eu sei.)
Nada mais. Ficamos, ali, em pé, olhando o milharal e escutando seus gemidos. Mutilados. Está foi nossa última conversación sem palavras.
Não ergui a blusa como planejara fazer, nem disse adeus, nem pedi que esperasse meu regresso à Montaña. Ficou apenas o vazio incompleto desta vida de desejos escondidos no silêncio.
Minha amiga, você quer saber se tenho algum arrependimento, posso responder que apenas um, não ter erguido minha blusa e mostrado minhas pequeñas agarraderas para o Juanito. Foi a minha primeira vez de permitir que a vida se tornasse apenas um quadro para apreciar de fora, de longe. Foi a primeira vez que morri por minhas próprias mãos. Elas estavam ali, caídas ao lado do meu corpo e não conseguiram se erguer para mostrar minhas pequeñas agarraderas. Minhas mãos ficaram em silêncio, solidificaram como as lavas de um vulcão. Podia sentir o calor avermelhado da indecência sob aquela fina crosta feita de aparência e ilusão. Não as deixei livres, ou melhor, descobri que não eram livres, era insuportável atravessar a cobertura cinza do miedo. Juanito jamais viu minhas pequeñas agarraderas, elas continuaram escondidas sob as escamas endurecidas de aparentar o que não sentia, aquelas pequeñas agarraderas eram rios de lava escorrendo avermelhados onde a luz não penetrava, nem esborrifava no ar. Permaneceram secretas do silêncio.
Não houve derrame, nem ruídos, continuei congelada nas minhas profundidades, miedo do julgamento dos olhos de Juanito ou miedo que minhas pequeñas agarraderas não fossem perfeitas.
Então, me fui.
Era um jardim esperando pelo sol da primavera, mas parecia que o inverno não abandonava minhas terras, para florir as melhores rosas do pátio, acolher o alegre canto dos pássaros, encantados com a vida nova. Sentia apenas a falta de ar e as pernas cansadas, como se estivessem me carregando para uma jaula.
Uma tristeza áspera me acompanhava naqueles dias, e hoje, me parece que jamais se rendeu, nem aos ventos, nem às flores, como um viver por viver em amarguras, um dia após o outro desencantado.
A menina que fui partiu para cuidar dos filhos de outros senhorios. Deixei a Montaña e Juanito para trás, em pé, parados. A exuberância da madrugada e a sua delicadeza com fugitivos deitava o manto do negrume para encobrir Blanca, Juzé e eu.
El corazón continúa pequeño y frío.
Não lembro as despedidas.

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