Prólogo
Reginaldo Prandi
Um dia, em terras africanas dos povos iorubas, um mensageiro chamado Exu andava de aldeia em aldeia à procura de solução para terríveis problemas que na ocasião afligiam a todos, tanto os homens como os orixás. Conta o mito que Exu foi aconselhado a ouvir do povo todas as histórias que falassem dos dramas vividos pelos seres humanos, pelas próprias divindades, assim como por animais e outros seres que dividem a Terra com o homem. Histórias que falassem da ventura e do sofrimento, das lutas vencidas e perdidas, das glórias alcançadas e dos insucessos sofridos, das dificuldades na luta pela manutenção da saúde contra os ataques da doença e da morte. Todas narrativas a respeito dos fatos do cotidiano, por menos importantes que pudessem parecer, tinham que ser devidamente consideradas. Exu deveria estar atento também aos relatos sobre as providências tomadas e as oferendas feitas aos deuses para se chegar a um final feliz em cada desafio enfrentado. Assim fez ele, reunindo 301 histórias, o que significa, de acordo com o sistema de numeração dos antigos iorubas, que Exu juntou um número incontável de histórias. Realizada essa pacientíssima missão, o orixá mensageiro tinha diante de si todo o conhecimento necessário para o desvendamento dos mistérios sobre a origem e o governo do mundo dos homens e da natureza, sobre o desenrolar do destino dos homens, mulheres e crianças e sobre os caminhos de cada um na luta cotidiana contra os infortúnios que a todo momento ameaçam cada um de nós, ou seja, a pobreza, a perda dos bens materiais e de posições sociais, a derrota em face do adversário traiçoeiro, a infertilidade, a doença, a morte.
Conta-se que todo esse saber foi dado a um adivinho d nome Orunmilá, também chamado Ifá, que o transmitiu aos seus seguidores, os sacerdotes do oráculo de Ifá, que são chamados babalaôs ou pais do segredo. Durante a iniciação a que é submetido para o exercício da atividade oracular, o babalaô aprende essas histórias primordiais que relatam fatos do passado que se repetem a cada dia na vida dos homens e mulheres. Para os iorubas antigos, nada é novidade, tudo o que acontece já teria acontecido antes. Identificar no passado mítico o acontecimento que ocorre no presente é a chave da decifração oracular. Os mitos dessa tradição oral estão organizados em dezesseis capítulos, cada um subdividido em dezesseis partes, tudo paciente e meticulosamente decorado, já que a escrita não fazia parte, até bem pouco tempo atrás, da cultura dos povos de língua ioruba. Acredita-se que um determinado segmento de um determinado capítulo mítico, que é chamado odu, contém a história capaz de identificar tanto o problema trazido pelo consulente como sua solução, seu remédio mágico, que envolve sempre a realização de algum sacrifício votivo aos deuses, os orixás. O babalaô precisa saber em qual dos capítulos e em que parte encontra-se a história que fala dos problemas do consulente. Ele acredita que as soluções estão lá e então joga os dezesseis búzios, ou outro instrumento de adivinhação, que lhe indica qual é o odu e, dentro deste, qual é o mito que procura. Acredita-se que Exu é o mensageiro responsável pela comunicação entre o adivinho e Orunmilá, o deus do oráculo, que é quem dá a resposta, e pelo transporte das oferendas ao mundo dos orixás.
Essa arte da adivinhação sobrevive na África, entre os iorubas seguidores da religião tradicional dos orixás, e na América, entre os participantes do candomblé brasileiro e da santeria cubana, principalmente. Na África e em Cuba, o oráculo é prerrogativa dos babalaôs, e, no Brasil, onde os babalaôs se extinguiram, dos pais e mães-de-santo. Aqui, pouco a pouco a adivinhação praticada no candomblé no jogo de búzios foi sendo simplificada e o corpo de mitos foi sendo desligado da prática divinatória, preservando-se, contudo, os nomes dos odus, as previsões e os ebós ou oferendas propiciatórias, além do nome dos orixás que eram os protagonistas das histórias originais de cada odu. O próprio orixá Orunmilá foi sendo esquecido, passando Exu a ocupar papel central na prática oracular do jogo de búzios. Os mitos, entretanto, continuaram presentes nas explicações da Criação, na composição dos atributos dos orixás, na justificativa religiosa dos tabus, que são muito presentes no cotidiano do candomblé, no sentido das danças rituais etc. Tudo porém muito difuso, embutido nos ritos, sem organização alguma.
A partir da década de 1960 conheceram significativo reavivamento religiões tradicionais, entre elas as religiões dos orixás constituídas na América, verificando-se grande expansão do candomblé, que da Bahia se alastrou por todo o território brasileiro, e da santeria cubana, agora também cultivada nos Estados Unidos, sobretudo entre os imigrantes hispano-americanos. Isso fez proliferar as publicações sobre as religiões dos orixás. Textos oraculares, coletâneas de mitos e de fórmulas rituais colhidos na África, em cuba e no Brasil têm sido publicados por pesquisadores e sacerdotes, geralmente de modo fragmentado e pouco sistematizado. Essas publicações, científicas ou religiosas, foram se tornando mais e mais procuradas, tanto pelos pesquisadores como pelos seguidores das religiões dos orixás, denominados entre nós de o povo-de-santo. A recente expansão do candomblé no Brasil envolveu forte adesão de segmentos diferentes daqueles em que se originou no Brasil a religião dos orixás, com a inclusão de adeptos não necessariamente de origem negra e que são provenientes de camadas sociais com maior escolaridade e habituadas à ideia da informação pelo livro. Esse novo segmento, que em geral associa culturalmente religião com a palavra escrita, encontrou nos mitos explicações e sentidos para práticas e concepções do candomblé, descobrindo que o mito está impregnado nos objetos rituais, nas cantigas, nas cores e desenhos das roupas e colares, nos rituais secretos da iniciação, nas danças e na própria arquitetura dos templos e, marcadamente, nos arquétipos ou modelos de comportamento do filho-de-santo, que recordam no cotidiano as características e aventuras míticas do orixá do qual se crê descender o filho humano. Isso reforçou o crescimento e a diversificação de um mercado livreiro sobre os orixás, de modo que a transmissão oral do conhecimento religioso, que caracteriza o candomblé, foi aos poucos incorporando o uso do texto escrito.
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Reginaldo Prandi, paulista de Potirendaba e professor titular de sociologia da Universidade de São paulo, é autor de três dezenas de livros. Pela editora Hucitec publicou Os candomblés de São Paulo, pela Edusp, Um sopro do Espírito, e pela Cosac Naify, Os príncipes do destino. Dele, a Companhia das Letras publicou também Segredos guardados: orixás na alma brasileira; Morte nos búzios; Ifá, o Adivinho; Xangô, o Trovão; Oxumarê, o Arco-Íris; Contos e lendas afro-brasileiros: a criação do mundo; Minha querida assombração; Jogo de escolhas e Feliz Aniversário.
Prandi, Reginaldo. Mitologia dos Orixás / Reginalso Prandi; ilustrações de Pedro Rafael. - São Paulo: companhia das Letras, 2001.
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