João-de-barro
Valdomiro Martins
João-Capataz ferrava o cavalo mouro. Os olhos grandes do animal espelhavam a bela tarde de verão. Fora difícil domá-lo e as ferraduras colocadas nas patas eram coroas de uma importante conquista. “Cavalo bom é cavalo brabo” dizia João. Homem forte, filho de escravos e vida de capataz. Depois da família Saraiva Andrade, sua palavra era ordem. O elo entre João-Capataz e o coronel Aureliano Saraiva Andrade era de extrema confiança. Colocavam a última ferradura. João-Capataz mostrava os dentes por entre os pelos do bigode num sorriso largado.
— Seu João — disse o negrinho que acabara de chegar. Ofegava muito. — A Dolores foi levada para a senzala menor!
— Mas que tal! — respondeu João-Capataz ainda agachado. Segurava ainda a pata do animal. — Outra cria buena vai nascer! — e levantou-se. Os dois peões se olharam.
João-Capataz, na sua típica agilidade, montou no gateado que pastoreava preso ao moirão, sem usar o estribo de prata. Deu de relho na garupa do animal e galopeou sobre a coxilha na direção da estância.
Os dois peões terminaram o serviço, deixaram que o cavalo, recém ferrado, ficasse livre. Um dos homens disse:
— Lá vai o velho João-de-barro, mais um chupim vai nascer.
Entardecia. A lua cheia surgia atrás da coxilha e provava aos ignorantes a existência de Deus. João-Capataz entrava na senzala menor, onde Dolores encontrava-se em trabalho de parto. As escravas suavam muito. João-Capataz deslocou-se até o canto da parede, onde havia uma cadeira improvisada, e sentou-se. Todas as espécies de gemidos, múltiplos apelos e rezas não foram capazes de arrancar uma atitude nervosa de sua face. O homem fumava o seu cachimbo como se estivesse no mais íntimo momento de prazer. Quando acabou o fumo, tirou do bolso um pequenino espelho e alisou o bigode numa carícia felina.
O choro do bebê foi o único som capaz de fazer João-Capataz se levantar. Num movimento impulsivo perguntou à parteira Maria de que se tratava.
— Vosmecê vem ver — respondeu a velha. — Meu serviço eu já fiz, agora, vosmecê faça o seu.
Velha maldita! Pensou João-Capataz, como pode falar asneira. Se fosse uma das outras mulheres, ainda na idade de trabalho e surra, bem que lhe daria uma lição ou levaria para sua peça e mostraria sua macheza. Entretanto, era uma mulher, mais próxima da morte que todos ali presentes. Se bem que fizera seu trabalho e, a ele, restava mesmo ver o que era e terminar o serviço.
João_Capataz aproximou-se de onde estavam as mulheres. Franziu a testa, apertou os olhos, fez a cara mais feia que pode para deixar claro à parteira e demais mulheres que não gostara daquelas palavras que ouvira.
— Levante! Quero ver! — João pediu a uma das mulheres. Olhou como alguém que verifica a validade de um dinheiro e liberou o discreto sorriso. Deu as costas e saiu.
As mulheres trataram de cuidar da mãe e da criança. Uma das mulheres, enquanto enrolava o recém nascido, comentou:
— O João-de-barro não perde tempo. Vai logo preparar o ninho.
As estrelas estavam todas visíveis quando João-Capataz bateu à porta da cozinha. Queria falar com o coronel, disse à cozinheira que lhe atendeu. Era assunto sério, importante. A mulher lhe informou que o patrão estava com visita, pela cor, bigode e roupa, gente importante. Ele, ainda com a mulher à frente, colocou fumo no cachimbo, acendeu e tragou. Soltou a longa e fantasmagórica serpente de fumaça e disse:
— Pois bem, velha. Não lhe peço, mando. Com o patrão eu me entendo. Agora, vosmecê se entende comigo.
A mulher teve o gosto da submissão arranhando-lhe a garganta. Pediu licença e saiu.
O cachimbo havia queimado o fumo quando a mulher apareceu à porta.
— O coronel já vem — e ficou parada.
— Entonces, vosmecê pode ir cuidar do que lhe interessa — João-Capataz dava um rumo ao destino da mulher.
João_Capataz tragava outro fumo quando o coronel apareceu à porta da cozinha.
— O que foi João? — o coronel, com um guardanapo à mão, pedia pressa. — Vamos, diga! — e pôs os olhos no cachimbo. — Bem na hora! Me dá logo, rápido, o deputado diz que não fuma. Maricas!
Os dois homens foram para as proximidades de um celeiro. Havia uma intensa escuridão onde os dois desapareceram. Apenas vozes perdidas sob a noite quente. João dera-lhe a notícia de que tudo fora bem.
— E a Dolores, como está? — perguntou o coronel.
João-Capataz tomou o cachimbo da mão do patrão, tragou e disse:
— boa parideira, coronel, boa parideira!
O coronel lembrou-se de seu tempo breve, deveria voltar antes que sua esposa viesse chamá-lo. Logo, não soubera o sexo e perguntou o que nascera.
— Macho do pé grande, coronel — respondeu João-Capataz.
O coronel sorriu. Tirou o cachimbo das mãos de João-Capataz e deu mais uma tragada. Devolveu. Despediu-se e saiu. Quando colocava a mão na porta da cozinha, parou. Virou-se e disse ao homem que continuava parado:
— Não se esqueça João, vosmecê é o pai!
— Qual o nome do guri, coronel?
O coronel entrou e fechou a porta sem responder a pergunta. João-Capatazainda colocou mais um pouco de fumo no cachimbo e acendeu. Caminhou sem pressa enquanto a lua reinava sublime no céu.
Valdomiro Martins nasceu em Bagé, município gaúcho que faz fronteira com o Uruguai, em 01 de julho de 1978. É funcionário público e formado em letras pela Universidade da Região da Campanha — URCAMP, onde estreitou seus laços com a literatura. Atualmente, faz especialização em Língua Portuguesa e leciona Literatura em curso pré-vestibular.
Guerrilha e solidão / Valdomiro Santos Martins. – Porto Alegre: Literalis, 2008. 88p.
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