XIV (2ª) - No se puede hacer la revolución sin las mujeres
baitasar
O
meu primeiro ano na família Caraca foi cheio de novidades, nem poderia ser
diferente para a menina saída das montanhas para o litoral. A ramagem cheia e
espessa da selva com seus coiotes, macacos, veados, porcos-do-mato, pacas,
coelhos, morcegos, cobras venenosas, haviam dado seus lugares para os
automóveis, as charretes, os vestidos e anáguas, os trilhos do trem, as cabanas
crescidas uma em cima das outras. O milho desapareceu das vistas e cedeu seu
lugar para prédios e casas de tijolo que engalanavam a paisagem.
As
pessoas iam e vinham compenetradas, quietas, em silêncio, mas acima de todos,
pairando sobre tudo, havia um murmúrio indecifrável, misterioso, como se todos
estivessem satisfeitos com a própria insatisfação, con miedo daquela
alegria que haveria de terminar, nada dura para sempre, nem lo miedo dos
mendigos, homens e mulheres jogados pelo chão com as mãos estendidas. Olhares
tristes. Todos pareciam tristes. E morreriam aborrecidos com seus melhores
feitos inacabados, irrealizados como as pás da hélice, girando indefinidamente,
até que param: nascidos, crescidos e morridos ali, na hélice, sem nunca terem
saído dos redemoinhos de vento da própria vida e daquelas vozes desfeitas pelo miedo dos
mendigos, homens jogados pelo chão com as mãos estendidas. Todos pareciam
tristes. La tierra estava enterrada por calçadas,
pisoteadas por passeantes, sufocando as entranhas de sua lama fértil,
escondida, impedida de florir e se dar à chuva, prevenida do calor do sol e dos vientos arrebatados,
protegida dos relâmpagos.
Minha
irmã Blanca veio visitar-me duas vezes, neste primeiro ano de exílio, mas La Leporina quando
descia a Montaña perdia a proteção dos deuses e era vista como
uma visão estranha que as mulheres grávidas não poderiam conhecer, para não
influenciar no jeito dos filhos que carregavam em suas barrigas. Longe dos
olhos, do coração e do ventre germinando: lo
que no se ve no hay, si no hay no va a ocurrir.
A
sua primeira visitação foi logo após minha chegada. Meu coração estava no tiempo,
jogado ao relento todo apertado, assustado e curioso. Desatei meu choro antes
de chegar em seus braços, as águas desceram dos meus olhos até salgar nossos
pés. Fiquei ali, agarrada em sua cintura. Não me pediu nada, não me negou o seu
refúgio, ficou comigo até que as águas de meus pés secassem. Então, cantarolou
as mesmas canções que afastavam os muertos da minha volta. Não
brigava, nem alterava sua voz, apenas ninava a eles e a mim com o poder de
montanha de la Leporina.
Jamais
esqueci o calor de seu cuerpo e a paz invadindo mi propio cuerpo: este
soplo los arrojó en mi vida y mi trabajo. Nunca desgostei de un hombre que
me paga, nem daqueles que jamais aceito um tostão de lucro. Aprendi que todos
que me procuram carregam uma angústia, um desespero, um despreparo, eu os
acolho no refúgio das minhas piernas: como una trampa que protege las tormentas, para calmar las aguas embalsadas.
Não os faço sentirem culpas ou glórias, apenas o conforto de se terem despejado
dos fantasmas que rondam a todos os homens: su
dureza. Um medo que se enraíza desde pequenino, quando o pepino se entorta
com os medos e as fantasias dos agoniados.
Las
rameras y atormentados são invencionice, existem como
sombras refrescando o mormaço das outras vidas escondidas com as claridades do
dia e suas aparências. Ninguém vive apenas nos feitios. Las perras são
a chance dos atormentados esconderem as aparências, mas é preciso pagar — ¡Hombre! Ninguna cosa es grátis ni la cruz.
Na
segunda vinda, La Leporina foi avisada que Dona
Lara estava com o ventre encantado por uma criança, então, foi proibida de vir
até o casario dos Caraca. Pelo menos, até a criança nascer. Mas a vida de uns
parece que não se submete aos planos de outros, faz parecer que nunca se
refreia ao contrário da sua vontade; às vezes, dá a entender que não é bem
assim, resmunga que podemos comandar nossas escolhas, como se comanda a
montaria em cima do lombo do animal. Quero acreditar que sei comandar a minha
montaria, mas sem sempre, nem sempre... têm vezes que a montaria me faz
esquecer quem sou e o quanto fui paga para representar no meu palco, a calma me
foge e todas as virgens me socorrem e rezam por mim: que mujer despreciable, hija de puta... goza
por todas: en nombre de la madre, hyja y
todos los santos.
Tudo
é teatro.
E
acertou que nesta sua segunda visitação, La Leporina defrontou-se
com Dona Lara e sua barriga arredondada como uma lua cheia. A sementeira levou
as mãos cruzadas e assustadas ao ventre agitado. Instinto. A fêmea lutando por
sua cria. Todos correram pelo casario gritando, chorando que a desgraça estava
por acontecer e não seria pouca desgraça, e nem seria bobagem pequena.
Um
dia para nunca ser esquecido: lo que hace
que un dia no se puede olvidar es la distancia del tiempo que se adapte a nuestras memorias, mas num
relâmpago lá está ele, intacto, melodioso, brilhante, enquanto os outros dias
comuns que carregaram nas costas todas as vidas são deslembrados e tratados com
indiferença, acusados rotineiros: dias comuns que todos têm. Não queremos o que
todos têm.
Até
que sentimos falta do herói: los hombres y mujeres comunes protegen el héroe en el anonimato. Ilustre
y famoso por sus hazaña o virtude, heroico, protagonista, nacido de un dios o
una diosa y de una persona humana: más que hombre y menos que dios.
Somos
vividos pelos sobressaltos e arrumações: pecados y el arrepentimiento, menos
pecados y más arrepentimientos.
O
dia em que a criança na barriga da mãe foi assustada por La Leporina,
poderia ser apenas mais outro dia caindo no esquecido, outra história para assustar
as crianças, palavras que sussurramos à alma, para que acreditem além dos olhos,
não fosse por um detalhe: o filho de Dom Juan nasceu com uma fissura no lábio
superior, e os detalhes fazem as diferenças.
Era
tão óbvio que aconteceria o que aconteceu: nació
en un atormentado por las apariencias, todos somos diferentes, mas não
podemos ser tão diferentes sem pagar uma portagem de atormentado — Espelho,
espelho meu, existe alguém tão feio como eu — Sí, joven — Quem — Los
hombres del maíz de la Montaña!
A
aparição do milagre ao contrário, o que não se quer que aconteça é o que
acontece. Y la Leporina ficou proibida de abaixar de la Montaña. Eu queria
voltar com todas minhas forças, mas continuava apenas girando como uma hélice,
as pás se movendo no rumo contrário.
Hoje,
não sei se quero prolongar minha vida e por influência de feitiçaria voltar en la
Montaña. Essa cor do nada e formas de tudo encantam aos espíritos, mas
eu não me deixo seduzir. Os homens todos juram que me comeram, tolos que
respiram como o gado e adubam a Montaña, mesmo de longe. Minha cama
contaria se falasse: esas huellas fueron colgados trofeos louros, morenos,
negros, caçadores abatidos enquanto martelavam minhas virilhas, procurando o
meu gozo infranqueável aos tolos
(¡La española no es tonta!)
La Montaña começou
esse meu desencanto. Não sei se vou deixar meu espírito retornar. Quero
abandonar tudo para trás. Carrego minhas histórias enquanto houver madrugadas
para contar os feitos e desfeitos, esses são eternos: têm a velhice do
universo, são o próprio espírito da Montaña com seus delírios
e alucinações. Na escuridão só existe nada, mas vejo sombras de purgatórios,
voltam a reivindicar mi cuerpo para sus viajes. Chamo Blanca,
preciso das suas cantorias que suavizam o embate entre dois mundos: advierten de que mi cuerpo está aislado.
Recebo
um jovem senhor e já vou avisando — Nunca voy a besar — o
atormentado quer saber por que — Saliva lleva el alma —
retruca que não entende por que lhe deixo beijar minhas intimidades com o seu
cuspe — A alma é minha única intimidade, você enfie a sua alma onde lhe achar
conveniente.
Os
cuspes dos meus pedidos me voltavam na cara, Blanca me deixou sozinha: aparece la fatiga completa, passa às
noites alimentada de frutas, e estrelas, e bosques, não consegue sair do
purgatório nem para beber água. Virou um fantasma sem olhos usa máscaras para
ocultar seus rostos das ameaças do fim del tiempo, sem
o oceano das folhas verdes en la Montaña, sem pegadas, apenas a
saliva en el viento que me cuspia dos
milharais
(Soy el fantasma
de los espíritus.)
Outra
noite, dessas que afundamos no sono para espantar o espanto, não acordei, mas
lembro da necessidade de levantar e sentar no banco sanitário. Sonhei que fui —
Fue muy duro para salir de la cama —
meu fantasma sentou no banco das bacias e derramou a dor que me incomodava, depois
duvidei ou pensei que foi apenas um sonho, precisava sair novamente da cama — Fue maís difícil para mí salir de la cama despierta
— levantei resmungando que a preguiça me obrigava sair duas vezes da cama, até
que voltei para a segurança do sono, fugindo dos barulhos gigantes das esporas
castelhanas: en las noches de los fuertes vientos
y lluvias excesivas los espíritus vinieron a llevarse a su
hija que había quedado; até que o cantar do galo dava início a
mais um dia na família Caraca.
Ainda
na antemanhã, antepasto, ante tudo, o movimento dos vivos já tinha início. O
dono do galo e do tambo de leite soltava un pedo ao
levantar as pernas, ainda embaixo das cobertas. A dona do dono do galo e das
vacas enfiava os dois pés no homem e o fazia saltar da cama
(Que
nojo!) (O que foi mi mamá?) (Não sei por que fui casar com um homem
tão porco!) (Tesão, minha querida, ninguém jamais te jodió como
eu!) (Ahhhhhhhh! Meu Deus! Isso é coisa que se pode mudar!) (Não entendi...)
(Sai... sai da cama.) (Já vou taradinha...) (Vá cuidar das tuas vacas!)
(Querida, eu espremo úberes...) (Eu sei, não és hombre de negócios.) (As vacas
continuam a pagar a comida desta casa.) (E de quantas mais?) (Fica linda quando ponerse celosa.)
(Um dia destes...)
Levantava
nu em pelo, bem assim, era puro pelo. Seu corpo imenso produzia uma pelugem que
o fazia parecer um gorila, parecido com aquelas bobagens que os gringos teimam
em filmar para fazer esquecer que nos matam todos os dias. O homem macaco
erguia os braços como se estivesse em fúria, soltava um urro e olhava para sua
cobiçada mulher. Pensava naqueles quadris mágicos. Adorava agarrá-los com as
duas mãos enquanto ia adentrando ao salão de festas
(Dom
Juan, me responde...) (Pergunta, minha cabeluda...) (Por que os homens adoram a
desarrumação da saída do esgoto, mesmo com um salão de festas tão pertinho.) (O
que é isso mulher?) (Não vai responder?)
Nessas
horas, bem que ela gostava que ele tivesse mais mãos e se pusesse a fazer mais
viagens. Era um belo macho peludo. Ele rezingava que ela era um tesão de
mulher, uma mãe gostosona. A fera peluda caminhava pelo quarto assobiando. Um
gorila branco de pelo preto... suado e desabusado. Seu corpo parecia um imenso
couro cabeludo, tudo se escondia por baixo dos pelos. O que não se ocultava era
a aborrecível pouca vergonha.
Soltava
mais um estalo de vento e mau cheiro
(Por
favor, Dom Juan Pedro Caraca!)
Pronto,
o gorila peludo, porco e careca estava apresentado. Não mantinha um fio de pelo
na cabeça. Sempre foi careca e peludo: um marido com umas partes com tanto y otras con tan poco o nada. Era uma
efígie tão acostumada com o retrato de si mesma que achava os demais diferentes
e regulares. Muito iguais para o seu gosto. Entrava no banheiro
(¡Carajo, que el agua fría!) — tinham uma
suíte. A única exigência da patroa quando Dom Juan sugeriu o aumento do casario
da família — Quero paredes de tijolos, piso de tábuas e um banheiro dentro do
quarto do casal.
Como
sei de tanto segredo abrigado?
Minha
amiga, não esqueça, eu lavava as intimidades daquela gente toda e dormia no
chão ao lado do leporino, aos pés do casal. E os segredos da cama se confessam
no dia seguinte, em meio à confusão dos lençóis, calcinhas, cuecas; bastava ter
um bom nariz e olhos atentos. Não saia só vento pelo fim de Dom Juan, o homem era
descuidado com sua ventosidade. E tinha compulsão para comer as calcinhas da
Dona Lara. As rendas não chegavam ao fim da luta, elas eram martirizadas na
pilhagem daquele pirata, o Capitão Gancho das vacas. E tão certo, como o sol
nasce com o dia e as estrelas surgem à noite, o gancho do capitão fuçava no
salão de festas e no esgoto, sem dó nem piedade — Yo estaba fuera de control de mi propia voluntad, escoava minhas
águas limpas e sujas.
Depois,
a patroa passava o dia ditando ordens, desabafando, explicando manchas e
cheiros. Ela não precisava dizer qualquer coisa, mas encontrou uma ouvinte para
sua falação, alguém sem palpites para oferecer: uma sombra com voz. Não
procurava opiniões ou sugestões, queria desafogar da raiva de se dar sem
limites. Contar da sua história aquilo que lhe interessava contar, sem
gritarias ou escândalos.
Os
fingimentos da senhora eram outros.
Foi
quando aprendi que uma mesma história tem muitos jeitos para ser contada ou
descontada. Tudo são interesses da lei que não é justiça, mas invenção do
apatacado que não quer morrer enforcado. Já sei, não precisa olhar desse seu
jeito canino, minha língua não tem osso, de qualquer maneira descobri cedo,
ainda menina, que mais se arrepende quem fala do que quem cala. Passei pela
vida calada; fingindo que não fingia, escorada em mentiras e fantasias que não
desfazia. Esta história é apenas outra de tantas outras de mentira e
faz-de-conta que aquecem o coração da sinhazinha bela e adormecida que alimenta
o seu homem à mesa, mas tem medo de ser comida pelo avesso — Si usted supiera lo que sé — por aqueles
dias nunca soube o que minha patroa havia descoberto.
E
aqui, entre nós, aquela mulher me assustava. Acho que fazia de propósito, sabia
do meu jeito assustadiço y lengua sumisa. Eu procurava
ficar firme, sem estardalhaços. Apertava as pernas e segurava o xixi, sempre
fui muito mijona. Depois corria, as tábuas do chão estalavam com meus passos
apertados; como los dientes gimiendo, una
sensación de frío violenta acompañada de contracciones de fiebre. Con un vagido me
tiré en la cama. O rosto enfiado no travesseiro, uma tristeza áspera e
quente se derramando de mim — Vuelvo a mi casa — chorava de saudade.
Queria resistir, mas não conseguia.
Lembro
da minha outra amiga com muita saudade e aflição — Espere um instante, já volto
— quero mostrar essa minha amiga de muitos tiempos atrás que
larguei sem mesmo me dar conta da abandonação. Tudo passa e quando é demais
aborrece.
Volto
do nosso quarto com a minha almofada de cabeceira. Uma grande companheira e
confidente. Só ela e eu sabemos quantas lágrimas me vazaram em seus plumaços.
Descobri a duras penas que tempo é remédio, mas ele vai e não volta — El tiempo cura, amiga mia, pero no vuelve.
Segue sempre em frente, não faz meia volta nem volta e meia. Aproveita e
recolhe com os goles da memória as lembranças que te importa fazer voltar, mas
não te deixa enganar — é bem assim, o que foi feito não pode ser mais desfeito:
uma flor caída que não volta mais ao galho. Sou despojada da coloração vistosa
da juventude. Não posso mais salvar vidas com o colorido da minha beleza, esse tiempo atravessou
para o lado do passado em algum lugar. Minhas virilhas não são mais virilhas,
mas histórias antigas.
Claro, minha querida, essa história me veio pela
imaginação com alguns detalhes verídicos, fica atenta às minudências. Não quis
deixar de colocar todos os pontos na agulha, deixar ponto sem nó. Considere
como minha contribuição para ilustrar melhorar a biografia da ascensão da
família Caraca, no entorno das leiteiras
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