segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Acaba em desforra : General Calçacurta


Minha desforra!
baitasar 

Quando entro no corredor, o quarto de Moriá está dormindo. Ouço ruídos e fico assustada, a casa não dorme. Penso em chamar Himineu. Desisto. A curiosidade me faz ir em direção aos murmúrios. Passo pelo quarto da Moriá, está em silêncio e escuro. Talvez intrusos que estão no térreo. Aproximo-me do parapeito e olho para baixo. Ninguém. Penso que sou uma louca.
Decido descer. Meus passos não são fortes. Estão indecisos. Tudo está envolto na penumbra da madrugada.
No meio da descida, os barulhos no quarto do guardião chegam mais fortes e decido seguir.
Faço olhar de espiã através da porta entreaberta.
Himineu está todo enfiado na Moriá.
Essa putinha sem-vergonha, pelo visto só tem a perna mais curta, o resto está tudo no lugar.
Tenho vontade de entrar e aos gritos mostrar meu ódio.
Bem feito pra mim.
Olho para ele, ali.
Cedo a minha vontade de contemplar de perto.
Vou em direção daqueles dois e me convido. Não sou recusada
─         Soldado filho-da-puta deixa a guria em paz!
Jogo a faca do faqueiro no chão e sinto quando ele me entra sem oposição.
O corpo do soldado me deixa estendida no chão. Não quero desmontar da montaria empinada. Adoro encenar essa cavalgada.
Sou a mulher mais promíscua deste Continente.

Está tudo pronto para o desaparecimento físico do morto. Não escuto choro, nem vejo lágrimas. Gente durona. Recolho a bandeira que cobria o caixão. Eu e o Jacaré fazemos as dobraduras oficiais do lábaro estrelado, com toda a pompa que o momento merece, e o entregamos à viúva. Todos estão visivelmente emocionados, mesmo sem o fausto da salva de tiros e toques de clarin. Alguns dirão que as honras foram feitas meio às escondidas. Outros vão jurar que estamos provocando com tanta ostentação solene. Na verdade, quero que tudo se acabe logo. E que os segredos do General se fiquem engavetados com ele. Tudo se encaminha para o sepultamento. Até mesmo aqueles comunistas enraivecidos estão a se dispersar aos poucos.
O general-de-exército em pijama pede o uso da palavra. Sinto o meu próprio murmúrio de descontentamento
─         Merda.
Não posso nada, nem aconselhar que a hora não se põe a favor das palavras provocativas. Não sei o que pode ser feito além de escutar
─         Amigos, cansei. Hoje, estamos mais desprotegidos, mais a mercê destes baderneiros porque homens como o General se foram, nos traíram morrendo e deixando os vivos na servidão desta caravana de bestas domesticadas para tração e carga. Estamos a serviço desta gentalha, eles fazem qualquer coisa por um prato de arroz e feijão — o cadeirante para e retoma o fôlego — O nosso sonho não acaba por aqui, estamos abertos a adesão de pessoas e entidades. Não fazemos convites e a ideia é contar com a iniciativa de cada um. Não priorizamos ninguém...
De repente, três disparos de pistola
─         Bang, bang, bang!
Uma correria incontrolável tem início. Os cartazes e as faixas são deixados para trás. As pessoas caem umas por sobre as outras. O cortejo foge em debandada desorganizada, é o salve-se quem puder, cada um que cuide de si. As cruzes cravadas são derrubadas. Ninguém é de ninguém. A capela é invadida. O sacristão da confiança do General sumiu na correria, era o homem encarregado da guarda da sacristia e da arrumação dos jardins da capela dominical, desde guri. Nomeado pelo próprio General, sem direito a vetos. A última vez que fora avistado, dizia aos gritos que o tempo dos acertos de contas estava chegando. Até sumir na multidão, corria com a batina vermelha erguida pelas mãos até a cintura, pedia socorro contra os diabos vermelhos. Tenho dúvidas se o General não sentiu as velhas vontades de sacar suas armas e sair atirando a esmo. Bem no seu feitio de espalhar aglomerado de gente. Afinal, era uma figura mista, ainda metade deste lado, mundo dos vivos, e a outra metade do outro lado, dos fantasmas e da visagem de alma dos mortos.
Assim, o cortejo se dispersa aos gritos
─         Os comunistas estão atacando!
─         Meu Deus, o que vai ser de nós?
─         Fujam, corram para seus carros!
—        Tenho armas na cobertura... me sigam!
O anfiteatro dos mortos foi vitimado por vivos, mortos de medo. Todos correm do mesmo receio: morrer. No condomínio das gavetas, os mortos se debruçavam sobre seus ossos e apreciavam o descontrole, tinham um pequeno sorriso nos lábios desossados
─         Eles voltaram, eles voltaram!
─         Os companheiros estão caindo!
Todos estão tombando, de um jeito ou de outro.
Olho para o lado e vejo o Jacaré encilhando a sua arma
─         O General merecia a sua salva de tiros.
Fala de um jeito que parece estar sacudindo os ombros com indiferença. Não lhe importa o que pensamos dos tiros dados para o alto
─         Jacaré, você devia ter avisado.
─         Não tinha intenção nenhuma, foi tudo espontâneo.
─         Veja a confusão que você arrumou.
─         Deixa prá lá, a gente só lembrou que ainda temos as armas.
Os que ficaram terminaram a cerimônia
─         'Urra! Urra! Urra!', grito de guerra puxado por mim, seu fiel escudeiro.
Erguemos o ataúde do chão e o encilhamos no buraco da parede. Com um ruído arrastado empurramos o General para dentro do sepulcro. O emparedador vem com sua colher de pedreiro e um balde de argamassa. Com movimentos rápidos e controlados lacra a abertura. As coroas são penduradas em pequenos ganchos, outras ficam depositadas no chão. Tudo em silêncio.
As pessoas se retiram depois do tumulto esfumaçado e o tapamento da. Acabara a farra. Estou desnorteado. Minha farda não tem qualquer uso de finalidade militar. Pensando melhor, a minha fantasia só foi de utilidade para deixar as pessoas amedrontadas. Agora, eu estou com medo. Quero sair dali e respirar diferente, mas aguardo até todos se irem. A missão ainda não havia terminado. Olho para o Jacaré e nos despedimos com um pequeno aceno de mãos. Ele dá meia-volta e se afasta perdido entre as pessoas do povo. O seu uniforme vai aos poucos se parecendo com as roupas paisanas.
Sou o último.
Estou na deriva
─         Himineu, Himineu.
Estendo os olhos para trás. A viúva me chama
─         Sim, dona Clara?
─         Você não vai com a gente?
─         Isso mesmo, mamãe, eu tenho medo daquele casarão assombrado.
─         Senhora, não sei o que vou fazer.
─         Nos leve e fique descansando até tomar alguma decisão.
Caminhamos lado a lado, Moriá a nossa frente. Nossas mãos se tocam em outro gesto voluntário. Levo as minhas ao bolso das calças
─         O que você achou?
─         Sobre o quê, dona Clara?
─         Do desaparecimento do bigode.
─         Que bigode?
─         O bigode do General.
─         Não sei, foi uma surpresa, mas sei lá, depois acostumei.
─         Fui eu.
─         A senhora?
─         Isso mesmo.
─         Por quê?
─         Minha desforra! Ele vai passar a sua eternidade sem os cheiros que carregava abaixo do nariz.

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