Ensaio 23
baitasar
Aqueles que
não queriam lembrar o casarão Canela Preta entorpeciam devagarinho a memória do
perto, acomodavam as próprias lembranças que vinham do longe para muito mais
tempo atrás, o tempo do faz de conta, e pareciam fingir despreocupação com o
medo do fim – se disfarçam a despreocupação estão preocupados, sabem que é
imoral, mas têm medo do pé-de-vento na bunda – apenas nas aparências o casarão havia de
acabar, sua alma reunida de tantos espíritos não iria para longe da memória,
ficaria no território das poeiras que foram varridas e jogadas no ar, levadas
para longe, uma memória perdida, pendurada na beirada do abismo, apoiada no esquecimento
cínico do mundo faz de conta, até que a brisa e depois a ventania carreguem
tudo de volta
— Maiami, acho que estou desgovernando,
vez por outra, imagino que essa casa grande e velha se parece com gente. — a
rapariga enfiada dentro da sua miudeza, um pequeno retalho de pano colorido
mais lhe mostrava que escondia, apenas sorriu, e ficou pensativa, por duas
vezes, pareceu que diria alguma coisa, hesitava, é bem assim, as pessoas são
todas covardes de algum jeito, têm medo de perder, desacomodar do lugar, desabituar
do amor que se perdeu, parece que ficar no mesmo lugar é melhor, não
desarticula, nem espalha, então, criam coragem para não mudar, ficam onde se
estava
— En
mi país, creemos que nuestra Montaña está habitada por espíritus, na verdade, não deixamos el lugar al que pertenecemos. — o embaraço lhe escorria do tempo vivido
longe das mulheres de milho, sabia que uma mulher de milho não abandona la Montaña,
ela continua lhe comendo na saudade de um sonho, uma terra prometida, um lugar
que não permite ninguém ser feliz, sente lembrança de repartir a miséria, as
esteiras, as baratas, a obrigação de adubar a terra com suas carnes, um ofício
que se aprende antes da natividade, o desejo de retornar ao pó de la
Montaña, o vento da impermanência na
vida descansada
— Eu entendo, têm vezes, que as coisas materiais
tomam forma de gente, e gente mata por essas coisas materiais, como se fosse
legitima defesa da própria vida, esmagam as baratas com seu brilho e seus
cheiros, feias, a força do mais forte deixa para trás as paredes das memórias,
monumentos dos rastros que são seguidos pelos que vêm depois. As coisas ganham
as lembranças da gente: ser forte é o que importa.
— Aunque
sea de lejos, los espíritus traen los olores, cierra los ojos y los pies en el
suelo, você descobre que tem uma passagem para o mundo da regeneração,
estamos todos ligados por fios, por lá, ou por aqui, tanto faz, mais cedo ou
tarde ela se ocupa de nós.
— Imagino esta casa como uma mulher muito
generosa, uma mulher como você.
— Con
apetitos. — os dois sorriem.
Ele
não percebeu quando, mas o assunto dos espíritos e da regeneração perdia a vez para
a miudeza das roupas, a beleza da carne, os perfumes, as miçangas, tatuagens,
comidas — Sim... claro, muitos apetites, acolhedora.
— Lo
sé, ló sé...
— Imagino a cozinha como o útero da
gestação da vida, a comida e os fluidos saciando a fome da terra por adubo,
esgotando a sede do mar por água doce. A senzala nutrindo o corpo com a sua alma
que se juntou de muitos espíritos. Água e sangue, terra e carne...
— ¿Y
yo? Soy una mujer que me parezco a una casa?
Ele
se arrepia enquanto a espia, ela parece com essas moças das capas das revistas,
tão longe, inatingíveis, até que você chega perto, as revistas não são reais, não
têm vida, e você descobre que o real é você, não existem como se imaginam, esses
sonhos não são seus, são os desejos do porta-seios que lhe quer muito como um
estúpido – os donos de la Montaña são os donos de tudo – para vender os sonhos que diz que são seus. Você sabe, mas decide correr o
risco, diz que vale a pena ser estúpido, pelo menos... uma vez, pelo menos.
Isso lhe faz tão bem, ficar duro, abrindo na mata a trilha mais firme, não parece
igual o aspecto dos caminhos, as paisagens em torno são variadas, os cheiros diferentes, quer fugir da monotonia, da falta de ideias, mas não existe um jeito de não ser estúpido correndo atrás do porta-seios
— ¿Quieres
un poco de palomitas de maíz?
— Ainda nem tomamos café!
— ¿Y
qué? — risca um fósforo e acende uma pequena chama azul no fogão, coloca
uma panela no fogo, óleo para esquentar, joga um pequeno grão de milho no óleo,
e observa... depois que ele floresce no calor da fervura, deposita dois
punhados de grãos de milho na panela, tampa a pipoqueira; com uma colher segue
dando pequenas pancadas na tampa enquanto recita algo incompreensível, talvez uma
oração para provocar que os milhos floresçam ou agradecimento aos espíritos que brotam como
pipocas no calor do óleo
— Não, você não se parece com coisa ou
gente que já tenha visto.
— Hum...—
o milho fica em silêncio, ela levanta o chapéu da panela com cuidado, não
parece querer torrar um grão que seja — ...
lo que me hace única, inusual, não sei se gosto, prefiro a normalidade dos
parecidos.
— Normalidade... bobagem, não existe
prostituta com uma vida normal...
ninguém faz pipoca nua.
— ¿Por
qué no?... me gusta pensar que soy
normal, os outros, as outras... eu não sei.
— A moça acha normal gostar de três?
— No
siempre, pero a veces me gusta con un... — ela coloca a mão no peito do
rapaz e o empurra. O faz sentar. A chaleira apita, avisa da fervura, ele apita
enquanto a segura, pela cintura, está em fervura, quer o controle do que não
controla, acredita que está no comando — Me
encanta que me miren...
— Excitada até ser comida.
— Yo
estoy comiendo ...
— Adoro comer quando a Laetitia está
comendo. — já foi chamada de tantos nomes, mas esse não lembra e não se importa
— Me
gusta estar en la parte superior ... — coloca a mão no ombro do menino e
levanta. Não terminou a lição de casa, ele precisa de um castigo, e senta
— Allí
mi manera y su camino en solitário... aos poucos você vai se trazendo, mais
e mais, para mim. — ele entende, ele entende, quer gritar, permanece calado, apenas
lamenta não ter visto aquela mulher antes de todos, ela cavalga com força, dá
saltos
— Como é que você... — ela leva o dedo
indicador aos lábios, ordena que fique quieto, a segunda lição: não pedir
explicações, não perguntar quanto custa, existem coisas que não têm preço, são
como são, apenas faça do seu jeito, monta sem rédeas, não tem sela, enfia os
dedos em seus cabelos
— No
siempre es bueno... estoy gozando.... ¡vaya! — a lição mais
importante: humildade e coragem, a verdade dói, mas é verdade, nem sempre é
bom, mesmo quando é bom. Não concorda, nem discorda, já entendeu que a moça não
tem sócios, tem negócio próprio — Si
pudiera amar, pero no puedo, negocios son negocios.
Ninguém lhe tira os olhos, nem Sèzar, nem os espíritos. Qual a
necessidade disso? Espíritos batendo punheta, venerando uma puta, que
espiritualidade medíocre e machista. Ta bem, desculpem os palavrões. Prometo
que vou manter a elegância das palavras, mesmo nas oficinas com a foto nua em
um calendário. Não sei o que dói mais: o que se vê ou o que se ouve. Ou o que
se fecha para não ouvir e não ver. Mas os espíritos não lhe tiram os olhos, ela
sai de um lugar para outro, os cabelos soltos, desalinhados – estão alinhados
para parecerem desalinhados – uma blusinha branca, os seios transparentes,
grandes desenhos da imaginação empurram a blusinha branca até que se pareça com
seios, aparecem, todos babam e batem palmas, carne e espírito, água e sangue.
Sinto inveja da minha juventude que reagia tão rápido, preciso de muitos
espíritos para formar minha alma
— A moça quer ser uma puta normal, é isso?
Seguir as regras da normalidade é renunciar aos instintos, não oferecer perigo,
não querer comer a mulher do amigo, nem...
— Já chega, entendi, mí me gusta pensar que soy normal, me gustan los trios, também
saio com garotas, mas os homens me dão mais tesão, creo que es la penetración, a força, a barba, não sei...
— Viu? Isso não são as normas.
— Usted
es un idiota, quer comer e não sabe pedir.
— Eu já comi.
— Yo
no estoy tan segura, el tamaño es importante, não pode ser do mindinho nem
GG... extra-grande.
— Você tá insinuando...
Não
o conforta de qualquer atenção, apenas o usa como plateia
— Me
gusta masturbarme... ¿qué es lo que quieres saber más?
— Não coloca muito sal. — os olhos estão
enfiados um no outro, provocam. Ela levanta da montaria, pega o saleiro e vira
na panela. Sacode e parece que vira a massa de panquecas assando no fogo, volta
para a montaria e enfia os grãos estourados na boca do guri, um a um, ele
engole
— O que a atrai num homem?
— Que ele seja verdadeiro, no se quede encima como una tapa del ataúd,
gosto de ficar por cima, é melhor pra gozar.
— Você é safada...
— Eu?
— Você gosta de coisas...
— ¿Impropias?
¿Sin prudencia? Tal vez sin la prevención o la previsión.
— A sua vida é uma aventura. — um sorriso
lhe nasce espontâneo, como se ela o estivesse descobrindo
— Me
encanta el sexo... tenho sempre um cara diferente, já transei com quem não
era bem dotado, e foi bom... muy grande,
a veces me duele.
— E eu, como fui?
— Si
te gusta el sexo de la persona será buena.
Um
breve silêncio e a pergunta inevitável — E você gosta de mim?
— Gusto...
— Tem alguma parte favorita?
— Tengo...
mis pechos... son naturales. Dios me dio un cuerpo, prefiero seguir con lo que
me fue dado.
— Em mim, não em você!
— Ah...
su boca.
— É?
— Usted
habla demasiado cuando estás trepando. Eu adoro. Odio a los chicos tranquilo y aburrido. Su boca inventou um nome para mim.
— É?
— Laetitia... ¿quién es?
— Não sei.
— ¿Quieres
más palomitas de maíz?
— Não... estão muito salgadas.
— Me
gusta el sexo cuatro... estou tentando comprar minha casa... quero todos
felizes, sem brigas, seu traumas... mis
pechos son naturales, mi parte favorita...
— Você já disse, também gosto.
— Usted
me hace decir tonterías... não gosto de pássaros, eles me assustam... sou
do tipo bobona, gosto do cantinho da lareira... mi encanta el sexo oral... que
me miren...
— Nunca se apaixonou?
— Tal
vez cuando encontrar al hombre adecuado... quando encontrar o meu coração
vai saber... tengo un vibrador que se ve
como una varita mágica...
A
porta da entrada range nas dobradiças, parece o lamento da preguiça
— Os dois pombinhos já levantaram?
— ¡Estamos en la cocina!
O
Fumaça entra com uma sacola de pano pendurada no ombro, faz uma pequena
reverência antes de soltar a si mesmo da sacola — Trouxe o pão, o leite e o
jornal. — aquilo lhe parece ser uma deliciosa reunião de família. Olha para os
dois com seu melhor sorriso lambuzado. Reconhece a sorte que tem
— Já contei pra vocês do dia que eu e o
Fugueti entortamos a avó?
— No,
no a mi. — a jovem estava parada a meio caminho entre a mesa e o fogão,
tinha acabado de colocar um pequeno avental
— Para mim, também não.
— Pois então, abram as orelhas e deixem
essa história...
Nenhum comentário:
Postar um comentário