Ensaio 25
baitasar
Outra
manhã nublada, as copas das árvores bailançando, cedendo e resistindo, dobrando
e voltando, agarradas com seus dedos enfiados até onde a terra permite ou até
onde o entusiasmo dos músculos, do sangue, do instinto continue a corrida por
suas umidades, alimentos que a terra comida transforma em verdura, ramos de
flores coloridas, botões perfumados, seiva escorrida até as margens da
terreira. A sede e a fome saciadas tornam forte a força para resistir aos
ventos que vão e voltam.
Os
ventos moldaram uma terra de guerras e guerreiros, homens aventureiros como o vento;
mulheres-raízes, inconquistáveis pelo vento, só o tempo para dominar esses
homens e essas mulheres. O tempo com suas histórias, como as memórias das águas
que estão e não ficam, seguem o curso das margens, carregando lembranças do riachuelo
para o caudal dos rios, até a desembocadura do estuário. A gente daqui, é um
pouco assim, escutam e contam causos que ouviram contar, os ouvidos escutam, o
causo se reinventa e a história não é mais a mesma, parece que é, mas são só as
aparências do que é parecido.
As
histórias são assim, aparência do que foi o ocorrido. Fica como verdade a
história melhor contada, mais parecida com a cara de quem ouve. É o ouvido que
se importa e escolhe o que lhe convém ter visto. Os olhos enxergam pelas
orelhas, não basta ver, tem que saber contar. A poesia precisa ser cantada na
alma, como os sussurros das mãos unidas ao peito cantam ao deus cego, mas todo
ouvido.
É
preciso prestar atenção com os olhos ao que é ouvido. Uma terra com raízes e
ventos tem tempo para as histórias do vento bailançando conforme os ventos.
Sèzar
tinha tempo para as histórias do rabanete preto. Assim, como assim, o emprego
de jornalista já devia ter escapado da sua mesa; Adelaide não dava maiores
importâncias para mais essa evasão, acostumada com suas assunções e desaparições.
Ninguém mais haveria de se importar com seu desaparecimento.
O
jovem escritista é respeitoso com o seu anfitrião, mas a diamba trás efeitos no
seu gosto, acalma os olhos de ouvir e muda a aparência de contar, ele não quer,
mas interfere nas histórias do anão — E a moça puta?
— Foi embora, finalizou o contrato e não
quis renovar.
— Ao menos se explicou?
— Vamos dizer que a moça já teve outros
momentos difíceis, talvez, bem mais complicados, disse que foi a surpresa de
estar enganada.
— Não deveria... é uma especialidade
trabalhista em que brotam muitos imprevistos. É como a paixão incontrolável do
futebol... quer? — ele tem o bixo da seda preso entre o polegar e o indicador,
estende o braço na direção do anão. A diamba troca de mãos
— Estava surpresa consigo mesma, com a sua
esperança... alguma chance de encontrar o olho-d’água dentro dela mesma, alguma
fonte de encantamento...
— Foi a afetação sem a diamba. — o
escritista aparenta mais frieza do que sente
— Você acha mesmo?
— Claro, o que mais haveria de ser?
— Não sei... — o anão puxou o fumo duas
vezes, apertou o nariz com o indicador e polegar da mão esquerda, parecia sair
fumacinha pelos ouvidos, depois devolveu ao escritista
— Ela é só mais uma puta!
— Não sei... — agora o anão olhava para o
escritista deitado em sua cama, lhe parecia a Laetitia
— Sèzar, nem sempre o óbvio se mostra
óbvio aos olhos, às vezes, ele precisa das orelhas do assistente, então...
apalpa, roça, lambe.
— O quê?
— Os olhos precisam saber escutar.
— E daí?
O
bixo da seda continua voando de lá para cá, sumindo entre os dedos
— Quando você olha uma casa, como você
sabe que temos pessoas morando ali? A casa não está abandonada...
— Hum, sei lá, a grama cortada, as
cortinas das janelas, um carro na garagem... — o escritista não entendia aquela
pergunta tola, sem propósito, nem a mão do anão em seu ombro
— A antena... nada existe sem a antena da
televisão.
— Bobagem.
— O óbvio parece uma bobagem, mas é por
onde nos pegam.
O
escritista puxa a fumaça que lhe entra iluminando, estende a mão na direção do
anão — Gosta?
— Já tive outros gostos na boca.
— Agora, tens o gosto da diamba na boca, o
gosto do proibido.
— Então, somo dois criminosos.
— Pior, dois pecadores.
O
anão achou graça da sua cartilha do bê-á-bá, o certo e o errado. Estendeu o
braço, novamente, e tocou mansamente no ombro do escritista, indo e voltando,
uma manobra de cada vez. Aproximou os olhos do cara pálida — Agora, tens o
gosto da minha mão.
— Já tive outros gostos.
— O proibido é o condimento do tesão... —
os dedos desenham as curvas, subindo e descendo — ... um dia, muito tempo pra
trás, tava deitado de costas na senzala, ali era meu refúgio pra sonhar.
Todo
aquele bafo com choro e sangue das histórias que a avó contava não amedrontava
a minha vontade de ficar em comunhão com a minha mão e a professora da
geografia. Era tudo treino pra quando fosse de verdade, ilusão da castidade,
naquele porão das memórias do bafo forte com o cheiro da morte.
No
final, o nosso treinador tava sempre repetindo: “ quem não treina não joga”.
Era a regra. E eu lá... treinando, deitando, ensinando a mão direita, toda
molhada, espremendo, escorregando, esperando o dia do jogo.
Anos
mais tarde, fui descobrir que treino é treino, jogo é jogo. No treino você se
combina na jogada preferida, no jogo, tem o o outro time com vontade própria,
treinado com outras jogadas, outros jeitos e gostos. O segredo é você não se
permitir ser um tolo, que só acredita em suas tolices, não tem como ensinar
tolos que se orgulham das próprias bestagens. Esses carregam o bater de queixos
no coração, e quando o frio tá no ânimo... o coração congela rápido. O treino
passa a ser mais importante que o jogo
— Fumaça! Vem cá, moleque!
A
voz nervosa da avó estremecia meu corpo. Ela tinha parado num tempo de
insatisfação. O tempo das memórias não é um canto de amadurecimento, trás a
quietude e o embelezamento do anoitecer, é a preparação para a durabilidade sem
um novo dia de sol. Por isso, escritista, nunca é demasiado construir memórias
doces, lutar boas lutas, ter amigos, jogar o jogo da vida, deixar de ficar
apenas treinando, engordando as lembranças com a inabalável indiferença ao
sofrimento dos pequenos, o tempo da impermanência – metódico, breve, volátil – precisa
distinção de importância, um jogo da vida com a morte
— Fumaça! Onde esse neinho tá tapado?
Ela
vivia com a ideia da morte. Gritava da infinidade da morte. Lá, pela tantas,
depois de muito tentar não escutar, parei com a mão direita, a imaginação
perdeu o feitio das pernas da professora. E treinar só por treinar, sem os
divertimentos da imaginação, não me apetecia. Não conseguia derramar os santos
óleos do meu corpo em adoração às pernas da geografia. Parei o treino dos cinco
contra um, antes que o excesso me fizesse brotar cabelos na mão, nada de tão
importante é mais importante que o tempo e a oportunidade
— Fumaça! Eita, neinho de ouvido abafado!
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