sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Fumaça! Eita, neinho de ouvido abafado!


Ensaio 25
baitasar
Outra manhã nublada, as copas das árvores bailançando, cedendo e resistindo, dobrando e voltando, agarradas com seus dedos enfiados até onde a terra permite ou até onde o entusiasmo dos músculos, do sangue, do instinto continue a corrida por suas umidades, alimentos que a terra comida transforma em verdura, ramos de flores coloridas, botões perfumados, seiva escorrida até as margens da terreira. A sede e a fome saciadas tornam forte a força para resistir aos ventos que vão e voltam.
Os ventos moldaram uma terra de guerras e guerreiros, homens aventureiros como o vento; mulheres-raízes, inconquistáveis pelo vento, só o tempo para dominar esses homens e essas mulheres. O tempo com suas histórias, como as memórias das águas que estão e não ficam, seguem o curso das margens, carregando lembranças do riachuelo para o caudal dos rios, até a desembocadura do estuário. A gente daqui, é um pouco assim, escutam e contam causos que ouviram contar, os ouvidos escutam, o causo se reinventa e a história não é mais a mesma, parece que é, mas são só as aparências do que é parecido.
As histórias são assim, aparência do que foi o ocorrido. Fica como verdade a história melhor contada, mais parecida com a cara de quem ouve. É o ouvido que se importa e escolhe o que lhe convém ter visto. Os olhos enxergam pelas orelhas, não basta ver, tem que saber contar. A poesia precisa ser cantada na alma, como os sussurros das mãos unidas ao peito cantam ao deus cego, mas todo ouvido.
É preciso prestar atenção com os olhos ao que é ouvido. Uma terra com raízes e ventos tem tempo para as histórias do vento bailançando conforme os ventos.
Sèzar tinha tempo para as histórias do rabanete preto. Assim, como assim, o emprego de jornalista já devia ter escapado da sua mesa; Adelaide não dava maiores importâncias para mais essa evasão, acostumada com suas assunções e desaparições. Ninguém mais haveria de se importar com seu desaparecimento.
O jovem escritista é respeitoso com o seu anfitrião, mas a diamba trás efeitos no seu gosto, acalma os olhos de ouvir e muda a aparência de contar, ele não quer, mas interfere nas histórias do anão — E a moça puta?
—        Foi embora, finalizou o contrato e não quis renovar.
—        Ao menos se explicou?
—        Vamos dizer que a moça já teve outros momentos difíceis, talvez, bem mais complicados, disse que foi a surpresa de estar enganada.
—        Não deveria... é uma especialidade trabalhista em que brotam muitos imprevistos. É como a paixão incontrolável do futebol... quer? — ele tem o bixo da seda preso entre o polegar e o indicador, estende o braço na direção do anão. A diamba troca de mãos
—        Estava surpresa consigo mesma, com a sua esperança... alguma chance de encontrar o olho-d’água dentro dela mesma, alguma fonte de encantamento...
—        Foi a afetação sem a diamba. — o escritista aparenta mais frieza do que sente
—        Você acha mesmo?
—        Claro, o que mais haveria de ser?
—        Não sei... — o anão puxou o fumo duas vezes, apertou o nariz com o indicador e polegar da mão esquerda, parecia sair fumacinha pelos ouvidos, depois devolveu ao escritista
—        Ela é só mais uma puta!
—        Não sei... — agora o anão olhava para o escritista deitado em sua cama, lhe parecia a Laetitia
—        Sèzar, nem sempre o óbvio se mostra óbvio aos olhos, às vezes, ele precisa das orelhas do assistente, então... apalpa, roça, lambe.
—        O quê?
—        Os olhos precisam saber escutar.
—        E daí?
O bixo da seda continua voando de lá para cá, sumindo entre os dedos
—        Quando você olha uma casa, como você sabe que temos pessoas morando ali? A casa não está abandonada...
—        Hum, sei lá, a grama cortada, as cortinas das janelas, um carro na garagem... — o escritista não entendia aquela pergunta tola, sem propósito, nem a mão do anão em seu ombro
—        A antena... nada existe sem a antena da televisão.
—        Bobagem.
—        O óbvio parece uma bobagem, mas é por onde nos pegam.
O escritista puxa a fumaça que lhe entra iluminando, estende a mão na direção do anão — Gosta?
—        Já tive outros gostos na boca.
—        Agora, tens o gosto da diamba na boca, o gosto do proibido.
—        Então, somo dois criminosos.
—        Pior, dois pecadores.
O anão achou graça da sua cartilha do bê-á-bá, o certo e o errado. Estendeu o braço, novamente, e tocou mansamente no ombro do escritista, indo e voltando, uma manobra de cada vez. Aproximou os olhos do cara pálida — Agora, tens o gosto da minha mão.
—        Já tive outros gostos.
—        O proibido é o condimento do tesão... — os dedos desenham as curvas, subindo e descendo — ... um dia, muito tempo pra trás, tava deitado de costas na senzala, ali era meu refúgio pra sonhar.
Todo aquele bafo com choro e sangue das histórias que a avó contava não amedrontava a minha vontade de ficar em comunhão com a minha mão e a professora da geografia. Era tudo treino pra quando fosse de verdade, ilusão da castidade, naquele porão das memórias do bafo forte com o cheiro da morte.
No final, o nosso treinador tava sempre repetindo: “ quem não treina não joga”. Era a regra. E eu lá... treinando, deitando, ensinando a mão direita, toda molhada, espremendo, escorregando, esperando o dia do jogo.
Anos mais tarde, fui descobrir que treino é treino, jogo é jogo. No treino você se combina na jogada preferida, no jogo, tem o o outro time com vontade própria, treinado com outras jogadas, outros jeitos e gostos. O segredo é você não se permitir ser um tolo, que só acredita em suas tolices, não tem como ensinar tolos que se orgulham das próprias bestagens. Esses carregam o bater de queixos no coração, e quando o frio tá no ânimo... o coração congela rápido. O treino passa a ser mais importante que o jogo
—        Fumaça! Vem cá, moleque!
A voz nervosa da avó estremecia meu corpo. Ela tinha parado num tempo de insatisfação. O tempo das memórias não é um canto de amadurecimento, trás a quietude e o embelezamento do anoitecer, é a preparação para a durabilidade sem um novo dia de sol. Por isso, escritista, nunca é demasiado construir memórias doces, lutar boas lutas, ter amigos, jogar o jogo da vida, deixar de ficar apenas treinando, engordando as lembranças com a inabalável indiferença ao sofrimento dos pequenos, o tempo da impermanência – metódico, breve, volátil – precisa distinção de importância, um jogo da vida com a morte
—        Fumaça! Onde esse neinho tá tapado?
Ela vivia com a ideia da morte. Gritava da infinidade da morte. Lá, pela tantas, depois de muito tentar não escutar, parei com a mão direita, a imaginação perdeu o feitio das pernas da professora. E treinar só por treinar, sem os divertimentos da imaginação, não me apetecia. Não conseguia derramar os santos óleos do meu corpo em adoração às pernas da geografia. Parei o treino dos cinco contra um, antes que o excesso me fizesse brotar cabelos na mão, nada de tão importante é mais importante que o tempo e a oportunidade
—        Fumaça! Eita, neinho de ouvido abafado!

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