domingo, 24 de fevereiro de 2013

Neinho, mal-criado... fez a avó esperá


Ensaio 27
baitasar
A vida que foi, entre dias de sol ou chuva, frios, quentes, solitários, tristes com sorrisos, alegres com lágrimas, conversas ou silêncios, pertence à vida que foi. A vida que é, enquanto nos escapa entre os dedos, nem bem nasceu já se foi. E fica a mágoa do que poderia ter sido, mas não foi
—        Fumaça!
—        A avó estava chamando você...
—        Eu tinha ouvido de escutá, escritista.
Não queria abandonar os pensamentos na geografia, sair da comodidade da senzala, ir ao boteco do Beto Suco, no caminho cruzar pelo Zemor, sentado na sombra da única sombra que não foi abatida por machado e facão, ele gostava de declamar a palavra escrita de Deus, de cabeça, o Zemor tinha uma memória do diabo, lembrava tudinho. Diziam que os padres não deixaram o memorialista entrar nos estudos de padre, ele nem sabia ler. Acho que o Zemor era um milagre da leitura, mas tinha mania de perseguir as pessoas com os seus discursos, caminhava por um pedaço de caminho ao lado do ouvinte, Todos têm algum pecado, Qual é o seu pecado, ninguém gosta do dedo duro importuno. Eu sabia que aquele atrevimento no porão precisava ser mantido em sigilo. Namoro de imaginação pode virar piada de desprezo, Como é que esse rabanete preto tem coragem de fazer isso, Fazer o quê, Imaginar que comeu a professora da geografia. Não tive medo, mas não queria conversa de maldade pro meu lado. Não fui buscar o fumo de corda pra avó, o egoísmo é coisa de guri no banquete dos pensamentos, não queria estragar tudo com maus presságios
—        Você não sente? — a pergunta do escritista fez a história do Fumaça pairar suspensa no ar do casarão, o anão emudeceu, não sabia se o seu pai era o anão e como a mãe sumiu com a nêga Laetitia, que não saia do poço. O Capitão continuava perdido. A avó se calou e não pedia pelo Fumaça, os pretos pararam de embranquecer as mola da carapinha, o primeiro navio negreiro nunca saiu de lá, foi tudo mentira
—        O que tem pra sentir?
—        Cada um de nós já tem um cortejo fúnebre esperando, as velas já foram feitas e as flores colhidas... quer? — estendeu o braço.
O anão esticou de lá — Quero.
—        Meu amigo, o passado pertence à morte.
—        Bobagem, isso é conversa de branco, tenho a lembrança de muitas histórias.
A avó contava de outro tempo, um tempo de histórias, tempo em que o primeiro preto – que se tem notícia – embranqueceu o cabelo. Muito antes de o branco escravizar a África, o cabelo dos pretos era preto, depois, quase em seu fim de deixar o coração desistir, a pele alisava e o cabelo ficava cinza, não tinha essa cor de branco na carapinha. Era o tempo em que os velhos envelheciam da alegria e o cabelo virava cinza. Não tinham que batizar a criança que nascia, reconheciam os filhos com a choração da alegria, a linhagem do avô e da avó que renascia da cinza, nenhum registro escrito, apenas dançavam e cantavam a mistura dos antigos que chegava com o novo.
Na história da avó, o primeiro preto que embranqueceu o cabelo foi embarcado do outro lado da imensidão das águas salgadas com o cabelo preto. Depois da travessia, desceu do negreiro com o cabelo branco, e se disse, Foi quando o preto envelheceu da tristeza. Continuamos um povo de cantoria e alegria, mas espalhados no campo aberto, ermo, vastidão do deserto, lhanos, planície, savana, estepe, charneca, campanha, prado, banhados, morros, favelas, a nossa tristeza só aparece na cor branca do cabelo que devia ser cinza, nas rugas da pele que devia ser lisa, até o dia inaugural da liberdade foi de esquecimento. Um dia desses que ficam atrás, o tio Manoel me explicou que a memória não é indiferente, escolhe o que quer lembrar pra seguir em frente. A África de hoje não é a África da avó da avó, a nêga Laetitia era filha de alguém, chegou aqui, filha de ninguém, num tempo de entrada e saída dos escravos pra enchimento dos bolsos. Tudo que temos tiramos de alguém, por isso a memória não pode ser desinteressada
—        Meu amigo, Fumaça, se permite um conselho, gostaria de lembrar um jargão jornalístico, ‘Desgraça velha, e sempre a mesma, não perturba ninguém’, são as memórias da morte.
—        A morte só existe porque temos lembranças da vida.
O casarão ficou em silêncio, nada saia ou chegava, nem os navios negreiros chegavam e saiam de lá, antes de embarcar, os pretos arrodiando na Árvore do Esquecimento, até que os brancos descobriram a árvore e roubaram o esquecimento. Não lembrar dói, então, é preciso escolher o que lembrar. O Fumaça estica o braço curto até o escritista. O bixo da seda troca de mão, vai e volta de lá, sumindo com o esquecimento
—        Fumaça!
—        A avó continuava chamando.
—        Eu já disse que tenho ouvido de escutar.
—        Então, homem... dá continuação na história.
O Fumaça apertou o bixo entre o polegar e o indicador, antes de continuar puxou fundo o ar
—        Fui até os bolsos da bermuda do Tigão — o Tigão foi o meu irmão de mais idade, que ainda não tinha se perdido pro pulícia. Peguei um punhado de fumo picado e dei pra avó. Ela enrolou na palha do milho. Tava nervosa de tanto me gritar o nome e não ter resposta
—        Neinho, mal-criado... fez a avó esperá.
Daquele fumo fez dois cigarros de palha. Antes da avó incendiar o palheiro, eu sumi. Queria mais uma tentativa com a geografia, agora que a avó tinha acomodado o nervosismo na diversão do fumo.
Voltei na senzala, precisava terminar os estudos. Antes, tinha que acalmar os músculos. Deitei na rede. Não tem recurso melhor pra ficar disposto e perder os escrúpulos, ficar ao avesso. Fechei os olhos. Tinha que fazer a imaginação sair da cabeça e deitar na rede, ao lado da mão esquerda, a direita precisava ficar livre. Depois, era preciso deixar tudo por conta da imaginação da professora. Quem dorme perde o conhecimento do tempo e das coisas, afastado das próprias feridas, fica encantado pelo sono e descobre a si mesmo, mais nada, o que pensa que tem foi tirado dos outros.
Ela já estava ali, deitada... me acariciava. Adormeci com a mão padecente do esforço. Ouvia a voz da geografia como se estivesse sentado na fórmica verde, Delícia os meus labirintos sendo pisoteados pelos teus pezinhos, precisava lembrar de perguntar ao professor de português sobre o que é isto de labirintos, ela continuava, Sou uma refém do teu carinho, doces lembranças e uma ardente saudade, molhada, quentinha. Descobria que era mais fácil ser um bom amante na meditação do pensamento
—        Mano!
Tava me despedindo da imaginação, que lindeza de geografia, Que tal voltar amanhã, Lamento muito, espero que a causa seja boa, Adoro fechar os olhos aqui na senzala e sorrir, sei quem provoca esse meu riso
—        Mano! Porra, acorda!
Acho que me chamou três vezes, foram as vezes que lembrei de contar
—        O quê?
Você é tão preguiçosa quanto esse porão abafado, tudo bem, ta indo... mas volta, Já to indo com saudade do teu sabor e calor, neinho.
O Tigão não tem o despreparo da avó, com um esticão me joga no chão
—        O que foi?
—        Mano, quem mexeu nos bolso da minha bermuda?
Agora, já estava definitivamente acordado do sonho. A nêga Laetitia continuava lá, o Capitão foi vendido pra outros donos, além-mar, mas antes, foi amarrado no tronco, o corretivo servia pra lembrar aos pretos quem mandava, capitão do mato era jagunço a mando do branco, não tinha direito de branco. Não tinha nome escrito no papel provando que era gente. No caso do Capitão, não foi muito o açoite, pra não estragar a mercadoria. Tudo registrado pelo magistrado, pra não deixar dúvidas, quem quiser se inteirar é só procurar os papéis, que a justiça do casarão sempre fez o serviço de registrar o decidido e aplicado pelo senhoril. Ela sempre esteve no serviço de mostrar quem manda, os tempos passam e as histórias mostram quem sempre esteve no serviço de alguém. Depois ficamos atônitos, envergonhados, esquecidos, mas nada adianta, a vida já se foi. Mamãe morreu mendigando qualquer bocadinho de nada, desdentada, feia, maluca da saudade de alguma coisa que nem sabia onde estava, a senzala tinha virado favela e o carnaval mais um negócio de branco, bastava mostrar bundas de pretas que o morro virava o paraíso do esquecimento, Preciso dar no jeito de não repetir o ano na escola... por causa das pernas da geografia
—        Eu...
—        ...
—        Dei pra avó um resto de fumo.
—        É erva, mano!
Levantei do jeito mais rápido procurando a minha vítima, fiz da avó uma usuária acidental
—        E, agora?
—        Cala essa boca, vamos procurar a avó!
Só tinha um jeito de entrar e sair da senzala, as pernas cumpridas do Tigão chegaram na saída. Subi no seu encalço.

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