Ensaio 26
baitasar
As
tragédias têm a força de nos imobilizar dentro do sofrimento os outros. Quanto
mais somos parecidos com os outros, um tanto a mais nos identificamos, e
pronto, aplicamos a teoria da conversibilidade: poderia ter sido comigo. Isso nos
impede de sair da tragédia e olhar pra fora, além do espectador imantado pelo
mimetismo. Alguém grita: ‘Mandrake!’, e ficamos parados à frente da televisão,
ao lado do rádio, debruçados no jornal, magnetizados, consumidores do calvário.
Mas, antes o outro do que eu, conseguimos orar. Ficamos solidários como
se a solidariedade nos protegesse dessas decisões casuísticas que parecem nos
colocar numa cilada
— Todos têm tragédias para lembrar.
É isso,
rapaz, quanto mais associados ao sofredor da cilada, maior é a vida comunal da
morte que renasce das nossas cinzas. A dor não se dilui entre tantos
padecentes, apenas aumenta a fila dos curiosos, que não são parecidos com
aqueles que caíram na cilada, apenas precisam estar atualizados com as
conversas e opinar de tanto escutar, o único conforto que resta ao fascínio da
bisbilhotice.
Algumas mortes,
muitas mortes, enxergamos como sofrimento do nosso espírito gregário, essas são
quase insuportáveis, levamos tempo pra reagir sem indagações, tantas palavras
pra ouvir, muitos sorrisos, diversas lágrimas, amores, ciúmes, abraços, tudo
isso jogado num abismo de frustrações por um tartufo; outras mortes, tantas
mortes, olhamos como um espetáculo triste, mas distante, uma abstinência divina
casual, iria acontecer a morte inevitável, mais dia ou menos dia. São fáceis de
esquecer os mais distantes, os renegados, as camadas da dor não estão dispostas
em substratos homogêneos, não existe horizontalidade no cacho
— Fumaça! Eita, neinho... onde tu anda,
desaparecido!
Fui o
primeiro e o único da nossa árvore, até agora, que chegou aos estudos de
jornalista, a sabedoria dos livros entrou na senzala com o rabanete preto.
Parece pouco, mas é muito pra quem carrega na memória a nêga Laetitia, ainda
escondida no poço, esperando o seu Capitão. Entrou na academia o menos
provável: eu, o anão preto.
Nem houve
festejo de alegria, alguns pretos desconfiavam de algum erro na notícia, outros
apostavam que no final do dia, a pulícia batia e levava encarcerado o pequeno
perfuntório, como já tinha carregado o Tigão, meu irmão de mais idade, adotado
pela avó, que se perdeu com a pulícia. Celebridade na família não era costume,
a não ser do jeito do Tigão.
Os tiuzin faziam o que sabiam, foi ensinado e deixavam os tiuzin fazer.
Os tiuzin faziam o que sabiam, foi ensinado e deixavam os tiuzin fazer.
O tio
Manoel tava nos afazeres de alfaite dos soldados do exército. Homem dos mais
bons, mas gostava das brancas mais que das pretas, não tinha dinheiro que
chegava. Ficou sabendo da notícia diferente, só depois do quartel e da noitada
com as branca, não posso dizer que ele sabia o que escutava. Acho que o Tigão
foi a casuística do tio Manoel, que provocou a solidariedade da avó.
O tio Jorge
já tinha ido pro bar 44. O tio era garçom dos bons, saia no meio da tarde e a
volta só no amanhecido do outro dia. Quando a noite tava calma, sentava no
lugar da jogatina, perdia os ganhos da noite e das outras que tavam por chegar.
Tinha o apelido de Detefon. Demorei pra descobrir do tio Manoel explicação pro
nome fantasia, ‘O tio tonteia, mas não mata...’ Quando chegava era motivo de
muitas pancadas nas molas, a avó ficava sem a calma dos velhos, repetia que era
de nascença essa mania de jogatina, vinha do pai do tio, meu avô, mas que lhe
tirava a mania de qualquer jeito.
O tio João
tinha carroça de ferro-velho e vidro quebrado, que ele mesmo puxava, ‘Assim, não
desaproveito a comida do animal.’ Nunca ganhou muito, não sabia de negócio, nem
de encurtar a viagem. Os disputantes da carreira não queriam o carregamento do
ferro-velho, nem de osso ou vidro quebrado, preferiam acertar um carregamento
por vez, quando tinham o carregamento no carrocim e o dinheiro combinado nas
mãos, tocavam de puxar com passo de lebre, desviavam uma, duas, três ruas e, na
primeira terra favorável, despejavam tudo. Limpavam daqui, sujavam de lá. O tio
tinha saído na manhã com os arreios, só voltava no fim do dia, já escurecendo.
Não tinha como saber da minha notícia de sucesso.
O mais novo
dos tios, do lado dos homens, era o tio Batata, corria atrás do caminhão do
lixo, era fininho de tanto suar. Sempre que falava lembrava uma batata quente
na boca. A avó repetia que ele parecia um jogador de futebol, fardado com
tênis, meias até os joelhos, calção e colete amarelo. Seleção canarinho. O
tiuzin jogava bem. Sempre chegava tarde, depois da correria nas ruas, ficava
metido na associação, conhecida como DASLU, Associação dos Servidores da
Limpeza Urbana. Vez que outra o futebol. Fazia muitas amizades e conhecimentos
no futebol. Virou estrela do time. A avó repetia que isso era perda de tempo,
os brancos fazem o que querem até o dia que não querem mais. O tio rebatia que
era preciso lutar. Ninguém na família dava atenção pro tio Batata. Eu achava
errado tanto desinteresse, mas a dor havia de ensinar o melhor jeito de gemer,
ou não, conheci gente que morreu sem um gemido, acho até que foi porque não
sabia que morria. Esse também chegou na madrugada, depois de outra reunião no
sindicato.
Esses tiuzin
sabiam o que faziam, foi ensinado e deixavam os tiuzin fazer.
A mãe sumiu
depois que se desfez de me dar o peito. E também, tinha o caso do meu pai que
nem ela sabia afirmar o nome ou apontar o aproveitador. Desconfiava de dois,
mas podiam ser mais. As ideias da mãe não obedeciam nenhuma lógica consagrada
do formal, típico, senso comum, até na hora de sair a furo da barriga da avó,
fez jeito de indecisão. Foi arrancada com a força das mãos. Terminou caída no
chão. Não se recuperou do susto daquele seu nascimento. Era a mais parecida com
a Laetitia das histórias. Eu tenho pra mim que a mãe se dissipou quando ficou
certo que eu não ia ficar maior. Nunca mais voltou. A avó nunca lhe esqueceu.
No começo do sumiço chorava escondida, depois chorava nos cantos, até que o
humor foi trocando da esperança pra tristeza. Não sei se a mãe ficou sabendo da
minha alegria.
A tia
Vanda, mais nova das filhas, tinha um nome mais cumprido, Vandaluzia, que ela
abreviou, sempre gostou de beber, fumar e dançar. Não teve filho, sempre tirou,
não quis dar pra avó criar. Carregava o apelido de Tanajura. Um doce de pessoa,
mas ninguém lhe podia contrariar. Trabalhava feita escrava na faxina, de
segunda à sexta, o sábado era pra ela. Acordava no almoço. À tarde, passava
retocando as pinturas, arrancando os pelos daqui e de lá. O banho, o
desodorante, a roupa, o cabelo, e pronto, deixava dito que voltava no domingo,
caso nada desse certo, do seu jeito. No dia do meu sucesso, chegou contrariada
com a patroa, professora de um dos primos. Entrou de cara feia, foi direto pra
cama. Escutei ela de reclamação com a outra tia, ‘Aguentei calada o palavrório
da cobra, não queria atrasar o guri.’
A tia Ana,
mais velha das tias, nunca quis tirar, nem deixar pra avó criar, teve todos:
oito filhos. Quando bebia um pouco além do costume, reclamava que era o
espírito aprisionado da nêga Laetitia. Fez o que a outra não pode. Cada filho
um pai. Foi a única que me deu um sorriso de elogio enquanto aleitava o mais
recente. Sempre soube que podia esperar dela o colo, aquele espaço de manobras
que sustentava oito ajudou a proteger nove. O Tigão puxou o espírito do pai,
mas podia ter sido o décimo, era só deixar de orgulho e deitar a cabeça. Aconselhava,
ele retrucava que não baixava cabeça pra ninguém. Acabou por morder o pó dos
pés do pulícia. A tia Ana foi quem mais sofreu com a situação do Tigão, não se
conformava em perder nenhum filho, fosse de quem fosse.
No dia do
meu sucesso, foi do Tigão que mais lembrei. Não conseguiu sair da cilada, foi
mais uma abstinência divina causal, mais dia ou menos dia, uma morte
inevitável, que só teve sentido pro pulícia. A avó fez luto de silêncio, não se
falava mais do Tigão. Todos temos tragédias pra lembrar. Algumas comovem o
contemplador da televisão, mais do que outras, depende da conversibilidade. No
caso do Tigão, foi a teoria da fatalidade: mais dia ou menos dia. Ou melhor, a
imaginária presunção: menos um! E claro, ouvimos a teoria da solidariedade: tá
com pena? convida pra jantar!
Eu lembrava
as brincadeiras na volta do casarão, os esconderijos da senzala, ele sempre foi
o pulícia que me protegeu da desarmonia na escola: ‘Rabanete preto! Bolinho de
chuva queimado!’, eu chorava de raiva e não queria ir pra escola, ele repetia
pros meus ouvidos que isso era desinteligência, precisava continuar por ele,
por mim, por todos os pretos, e isso de criança desprezar outras crianças, seja
pelo que fosse, se aprende em casa, ‘Mas tudo tem um jeito...’, fui o primeiro
rabanete preto com guarda-costas. Virei intocável. Tinham respeito por mim, e
medo do Tigão, ‘Nunca se contente em ser apenas o que os outros lhe dizem pra
ser.’ Foi o jeito que deu.
Eu mesmo,
por aqueles dias, não acreditava que ia dar alguma coisa certa, que alguma
coisa de valor pudesse me acontecer. Fui o primeiro do casarão, onde a Laetitia
continuava escondida, que terminou os estudos da leitura, caligrafia e as
contas dos números. Os primos, na idade certa, largaram o colo da tia Ana e
entraram naquela escola de brancos, se encheram de vontade com meu exemplo. Eu
fiquei apinhado de responsabilidade. Não queria não dar confiança
— Neinho, vá comprá o fumo dessa avó!
A avó
procurava nas frestas e cantos, pisava nervosa nas tábuas do assoalho, a poeira
dos cupins me assentava por cima, as formigas iam e vinham em trilhas, atravessavam
as fendas do barro nas pedras. A mulher velha conservava a tradição do fumo de
corda, gostava de mascar fumo e fumaçar. Desbastava o fumo em pedaços finos,
enrolava na folha amarelada do milho, depois era só queimar
— Fumaça! Eita neinho escorregadio!
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Leia também:
Ensaio 25 - Fumaça! Eita, neinho de ouvido abafado!
Ensaio 27 - Neinho, mal-criado... fez a avó esperá
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