terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Fumaça! Eita, neinho... onde tu anda, desaparecido?


Ensaio 26
baitasar
As tragédias têm a força de nos imobilizar dentro do sofrimento os outros. Quanto mais somos parecidos com os outros, um tanto a mais nos identificamos, e pronto, aplicamos a teoria da conversibilidade: poderia ter sido comigo. Isso nos impede de sair da tragédia e olhar pra fora, além do espectador imantado pelo mimetismo. Alguém grita: ‘Mandrake!’, e ficamos parados à frente da televisão, ao lado do rádio, debruçados no jornal, magnetizados, consumidores do calvário. Mas, antes o outro do que eu, conseguimos orar. Ficamos solidários como se a solidariedade nos protegesse dessas decisões casuísticas que parecem nos colocar numa cilada

—        Todos têm tragédias para lembrar.

É isso, rapaz, quanto mais associados ao sofredor da cilada, maior é a vida comunal da morte que renasce das nossas cinzas. A dor não se dilui entre tantos padecentes, apenas aumenta a fila dos curiosos, que não são parecidos com aqueles que caíram na cilada, apenas precisam estar atualizados com as conversas e opinar de tanto escutar, o único conforto que resta ao fascínio da bisbilhotice.

Algumas mortes, muitas mortes, enxergamos como sofrimento do nosso espírito gregário, essas são quase insuportáveis, levamos tempo pra reagir sem indagações, tantas palavras pra ouvir, muitos sorrisos, diversas lágrimas, amores, ciúmes, abraços, tudo isso jogado num abismo de frustrações por um tartufo; outras mortes, tantas mortes, olhamos como um espetáculo triste, mas distante, uma abstinência divina casual, iria acontecer a morte inevitável, mais dia ou menos dia. São fáceis de esquecer os mais distantes, os renegados, as camadas da dor não estão dispostas em substratos homogêneos, não existe horizontalidade no cacho

—        Fumaça! Eita, neinho... onde tu anda, desaparecido!

Fui o primeiro e o único da nossa árvore, até agora, que chegou aos estudos de jornalista, a sabedoria dos livros entrou na senzala com o rabanete preto. Parece pouco, mas é muito pra quem carrega na memória a nêga Laetitia, ainda escondida no poço, esperando o seu Capitão. Entrou na academia o menos provável: eu, o anão preto.

Nem houve festejo de alegria, alguns pretos desconfiavam de algum erro na notícia, outros apostavam que no final do dia, a pulícia batia e levava encarcerado o pequeno perfuntório, como já tinha carregado o Tigão, meu irmão de mais idade, adotado pela avó, que se perdeu com a pulícia. Celebridade na família não era costume, a não ser do jeito do Tigão.

Os tiuzin faziam o que sabiam, foi ensinado e deixavam os tiuzin fazer.

O tio Manoel tava nos afazeres de alfaite dos soldados do exército. Homem dos mais bons, mas gostava das brancas mais que das pretas, não tinha dinheiro que chegava. Ficou sabendo da notícia diferente, só depois do quartel e da noitada com as branca, não posso dizer que ele sabia o que escutava. Acho que o Tigão foi a casuística do tio Manoel, que provocou a solidariedade da avó.

O tio Jorge já tinha ido pro bar 44. O tio era garçom dos bons, saia no meio da tarde e a volta só no amanhecido do outro dia. Quando a noite tava calma, sentava no lugar da jogatina, perdia os ganhos da noite e das outras que tavam por chegar. Tinha o apelido de Detefon. Demorei pra descobrir do tio Manoel explicação pro nome fantasia, ‘O tio tonteia, mas não mata...’ Quando chegava era motivo de muitas pancadas nas molas, a avó ficava sem a calma dos velhos, repetia que era de nascença essa mania de jogatina, vinha do pai do tio, meu avô, mas que lhe tirava a mania de qualquer jeito.

O tio João tinha carroça de ferro-velho e vidro quebrado, que ele mesmo puxava, ‘Assim, não desaproveito a comida do animal.’ Nunca ganhou muito, não sabia de negócio, nem de encurtar a viagem. Os disputantes da carreira não queriam o carregamento do ferro-velho, nem de osso ou vidro quebrado, preferiam acertar um carregamento por vez, quando tinham o carregamento no carrocim e o dinheiro combinado nas mãos, tocavam de puxar com passo de lebre, desviavam uma, duas, três ruas e, na primeira terra favorável, despejavam tudo. Limpavam daqui, sujavam de lá. O tio tinha saído na manhã com os arreios, só voltava no fim do dia, já escurecendo. Não tinha como saber da minha notícia de sucesso.

O mais novo dos tios, do lado dos homens, era o tio Batata, corria atrás do caminhão do lixo, era fininho de tanto suar. Sempre que falava lembrava uma batata quente na boca. A avó repetia que ele parecia um jogador de futebol, fardado com tênis, meias até os joelhos, calção e colete amarelo. Seleção canarinho. O tiuzin jogava bem. Sempre chegava tarde, depois da correria nas ruas, ficava metido na associação, conhecida como DASLU, Associação dos Servidores da Limpeza Urbana. Vez que outra o futebol. Fazia muitas amizades e conhecimentos no futebol. Virou estrela do time. A avó repetia que isso era perda de tempo, os brancos fazem o que querem até o dia que não querem mais. O tio rebatia que era preciso lutar. Ninguém na família dava atenção pro tio Batata. Eu achava errado tanto desinteresse, mas a dor havia de ensinar o melhor jeito de gemer, ou não, conheci gente que morreu sem um gemido, acho até que foi porque não sabia que morria. Esse também chegou na madrugada, depois de outra reunião no sindicato.

Esses tiuzin sabiam o que faziam, foi ensinado e deixavam os tiuzin fazer.

A mãe sumiu depois que se desfez de me dar o peito. E também, tinha o caso do meu pai que nem ela sabia afirmar o nome ou apontar o aproveitador. Desconfiava de dois, mas podiam ser mais. As ideias da mãe não obedeciam nenhuma lógica consagrada do formal, típico, senso comum, até na hora de sair a furo da barriga da avó, fez jeito de indecisão. Foi arrancada com a força das mãos. Terminou caída no chão. Não se recuperou do susto daquele seu nascimento. Era a mais parecida com a Laetitia das histórias. Eu tenho pra mim que a mãe se dissipou quando ficou certo que eu não ia ficar maior. Nunca mais voltou. A avó nunca lhe esqueceu. No começo do sumiço chorava escondida, depois chorava nos cantos, até que o humor foi trocando da esperança pra tristeza. Não sei se a mãe ficou sabendo da minha alegria.

A tia Vanda, mais nova das filhas, tinha um nome mais cumprido, Vandaluzia, que ela abreviou, sempre gostou de beber, fumar e dançar. Não teve filho, sempre tirou, não quis dar pra avó criar. Carregava o apelido de Tanajura. Um doce de pessoa, mas ninguém lhe podia contrariar. Trabalhava feita escrava na faxina, de segunda à sexta, o sábado era pra ela. Acordava no almoço. À tarde, passava retocando as pinturas, arrancando os pelos daqui e de lá. O banho, o desodorante, a roupa, o cabelo, e pronto, deixava dito que voltava no domingo, caso nada desse certo, do seu jeito. No dia do meu sucesso, chegou contrariada com a patroa, professora de um dos primos. Entrou de cara feia, foi direto pra cama. Escutei ela de reclamação com a outra tia, ‘Aguentei calada o palavrório da cobra, não queria atrasar o guri.’

A tia Ana, mais velha das tias, nunca quis tirar, nem deixar pra avó criar, teve todos: oito filhos. Quando bebia um pouco além do costume, reclamava que era o espírito aprisionado da nêga Laetitia. Fez o que a outra não pode. Cada filho um pai. Foi a única que me deu um sorriso de elogio enquanto aleitava o mais recente. Sempre soube que podia esperar dela o colo, aquele espaço de manobras que sustentava oito ajudou a proteger nove. O Tigão puxou o espírito do pai, mas podia ter sido o décimo, era só deixar de orgulho e deitar a cabeça. Aconselhava, ele retrucava que não baixava cabeça pra ninguém. Acabou por morder o pó dos pés do pulícia. A tia Ana foi quem mais sofreu com a situação do Tigão, não se conformava em perder nenhum filho, fosse de quem fosse.

No dia do meu sucesso, foi do Tigão que mais lembrei. Não conseguiu sair da cilada, foi mais uma abstinência divina causal, mais dia ou menos dia, uma morte inevitável, que só teve sentido pro pulícia. A avó fez luto de silêncio, não se falava mais do Tigão. Todos temos tragédias pra lembrar. Algumas comovem o contemplador da televisão, mais do que outras, depende da conversibilidade. No caso do Tigão, foi a teoria da fatalidade: mais dia ou menos dia. Ou melhor, a imaginária presunção: menos um! E claro, ouvimos a teoria da solidariedade: tá com pena? convida pra jantar!

Eu lembrava as brincadeiras na volta do casarão, os esconderijos da senzala, ele sempre foi o pulícia que me protegeu da desarmonia na escola: ‘Rabanete preto! Bolinho de chuva queimado!’, eu chorava de raiva e não queria ir pra escola, ele repetia pros meus ouvidos que isso era desinteligência, precisava continuar por ele, por mim, por todos os pretos, e isso de criança desprezar outras crianças, seja pelo que fosse, se aprende em casa, ‘Mas tudo tem um jeito...’, fui o primeiro rabanete preto com guarda-costas. Virei intocável. Tinham respeito por mim, e medo do Tigão, ‘Nunca se contente em ser apenas o que os outros lhe dizem pra ser.’ Foi o jeito que deu.

Eu mesmo, por aqueles dias, não acreditava que ia dar alguma coisa certa, que alguma coisa de valor pudesse me acontecer. Fui o primeiro do casarão, onde a Laetitia continuava escondida, que terminou os estudos da leitura, caligrafia e as contas dos números. Os primos, na idade certa, largaram o colo da tia Ana e entraram naquela escola de brancos, se encheram de vontade com meu exemplo. Eu fiquei apinhado de responsabilidade. Não queria não dar confiança

—        Neinho, vá comprá o fumo dessa avó!

A avó procurava nas frestas e cantos, pisava nervosa nas tábuas do assoalho, a poeira dos cupins me assentava por cima, as formigas iam e vinham em trilhas, atravessavam as fendas do barro nas pedras. A mulher velha conservava a tradição do fumo de corda, gostava de mascar fumo e fumaçar. Desbastava o fumo em pedaços finos, enrolava na folha amarelada do milho, depois era só queimar

—        Fumaça! Eita neinho escorregadio!

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Leia também: 
Ensaio 25 - Fumaça! Eita, neinho de ouvido abafado!
Ensaio 27 - Neinho, mal-criado... fez a avó esperá


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