sábado, 12 de outubro de 2013

Auto-ajuda: O desassossego de viver e não saber ter vida

Fernando Pessoa


Uns governam o mundo, outros são o mundo.







Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido - sem saber porquê.


Haja ou não deuses, deles somos servos.


Dormimos a vida.







Tinha-me levantado cedo e tardava em preparar-me para existir.





O coração, se pudesse pensar, pararia.

A quem vivendo não sabe ter vida.

Tenho que escolher o que detesto - ou o sonho, que a minha inteligência odeia, ou a acção, que a minha sensibilidade repugna; ou a acção, para que não nasci, ou o sonho, para que ninguém nasceu.

... e o meu sossego é feito de resignação.

... uma alma mais cansada do que os olhos.

Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou.

Nós nunca nos realizamos.
Somos dois abismos - um poço fitando o céu.

Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida.

Reconheço, não sei se com tristeza, a secura humana do meu coração.

Mas às vezes sou diferente, e tenho lágrimas, lágrimas das quentes dos que não têm nem tiveram mãe; e meus olhos que ardem dessas lágrimas mortas ardem dentro do meu coração.

O criador do espelho envenenou a alma humana.

À força de viver de imaginar, gasta-se o poder de imaginar, sobretudo o de imaginar o real. Vivendo mentalmente do que não há nem pode haver, acabamos por não poder cismar o que pode haver.

Sofro de não sofrer. Vivo ou finjo que vivo? Durmo ou estou desperto? Uma vaga aragem que sai fresca do calor do dia, faz-me esquecer tudo. Pesam-me as pálpebras agradavelmente....

Toda a paisagem não está em nenhuma parte.

Entrei no barbeiro no modo do costume, com o prazer de me ser fácil entrar sem constrangimento nas casas conhecidas. A minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho calma só onde já tenho estado.

Será Deus uma criança muito grande? O universo inteiro não parece uma brincadeira, uma partida de criança travessa?

Acordo para saber que existo...

As misérias de um homem que sente o tédio da vida do terraço da sua vila rica são uma coisa; são outra coisa as misérias de quem, como eu, tem que contemplar a paisagem do meu quarto num 4º andar da Baixa, e sem poder esquecer que é ajudante de guarda-livros.

Tive sempre uma repugnância quase física pelas coisas secretas - intrigas, diplomacia, sociedades secretas, ocultismo. Sobretudo me incomodaram sempre estas duas últimas coisas - a pretensão que têm certos homens, de que, por entendimento com Deuses ou Mestres ou Demiurgos, sabem - lá entre eles, exclusos todos nós outros - os grandes segredos que são os caboucos do mundo.

Ofende-me o entendimento que um homem seja capaz de dominar o diabo e não seja capaz de dominar a língua portuguesa. Por que há o comércio com os demônios de ser mais fácil que o comércio com a gramática?

Como todos os apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente.

Só uma vez fui verdadeiramente amado. Simpatias, tive-as sempre, e de todos. Nem ao mais casual tem sido fácil ser grosseiro, ou ser brusco, ou ser até frio para comigo. Algumas simpatias tive que, com auxílio meu, poderia - pelo menos talvez - ter convertido em amor ou afecto. Nunca tive paciência ou atenção do espírito para sequer desejar empregar esse esforço.









Este livro é a biografia de alguém que nunca teve vida...







Não vejo, sem pensar.

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