quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

A reunião vai começar

Teatro Pedagógico 05
baitasar
Por onde começar e ficar longe desse canibalismo em nome do amor? O que é uma escola saudável? Queria lembrar a boniteza do início, o encantamento misturado à arrogância reformadora da juventude, inconformada de morrer antes do dia. Enfrentando a miudeza dos dias se repetindo embaciados e invisíveis, a mistura das teses, as rendas bordadas com os miseráveis. Outro mundo impossível.
Exagero nas contas das pontas de cigarro. Queria terminar mais um com uma boa tragada e um suspiro profundo. As fumaças me ocultam.
Nada de chamarem para a reunião.
Um dia destes, que não recordo com clareza, conheci um homem muito humilde que gostava de martelar coisas na madeira. Usava pregos enferrujados, entortados, recuperados. Comprei algumas gramas de pregos e dei para o homem humilde. Aquelas poucas gramas de pregos fizeram um homem muito feliz. Vi no seu rosto um sorriso incontrolável, largo e completo. Quantas vezes vi esse mesmo sorriso? Algumas gramas de prego e a felicidade. Algum dia, talvez eu precise me contentar com alguns pequeninos goles de ar
—        Ano que vem quero o mesmo ano-ciclo... — essa é Fernanda Maura, as escolas sempre têm pelo menos uma Fernanda Maura, conhecida pelo esforço que faz para manter a circunstância de mais antiga, garantia para fazer suas escolhas
—        Maura, você não cansa de se repetir?
—        Samuel , os anos de experiências me ensinaram que cada turma é diferente da outra, mas podem ter os mesmos conteúdos. — respondeu com um olhar de terna dor por seu colega, ele ainda não chegou onde ela já esteve, mas conseguiu sair.
O meu olhar atento passeia no seu entorno. É preciso alguma prática para ouvir com os olhos
—        Já chegou o formulário do remanejo?
—        Pensando em sair, Eduardo?
Estou sentada tentando ler meus e-mails, quase desisto, não consigo me concentrar, eu sei que esse é um problema meu, mas
—        Vai depender da biometria da Ághata? — respondeu lacônico e cansado.
Eu não sabia dessa biometria.
O remanejo abre um conjunto de novas oportunidades, solicitar a transferência de escola, mudar, pôr-se em outro lugar, novos ares, maneiras diferentes de perguntar e responder, outro aluno, outra rotina, outras formigas, outras cigarras
—        Gurias, hoje, se houver reunião, vou sugerir a leitura da parábola: “A xícara transbordante”. Vocês conhecem?
—        Eu não conheço, Jacobina.
—        Nem eu.
Eu também não conhecia, mas fiquei calada, queria ler meus e-mails
—        Querem ouvir?
—        Claro, Jacobina. Mas não seria melhor na reunião?
—        Agora, gurias... é só um minutinho, vou resumir. Lá, na minha outra escola, é diferente. Conversávamos mais sobre as coisas práticas para desmanchar alguns nós do dia-a-dia. Todas nós sabemos que é na prática que as coisas se resolvem. — esta é a Jacobina, em estágio probatório na matrícula mais nova, poderia se queixar das dores nas pernas, escadas demais para subir ou descer, mas se mantém disposta e coerente
—        Estamos ouvindo.
—        Obrigada, Acemira. O título desta parábola oriental é: “A xícara transbordante”. Certa vez, um mestre oriental recebeu uma visita que queria saber algo sobre o conhecimento. Mas, em vez de ouvir, o visitante só falava sobre as suas ideias. Falava falava e falava, enquanto ouvia o mestre resolveu servir um chá, encheu a xícara do visitante até transbordar e continuou a derramar o chá, finalmente, o visitante não se conteve e exclamou, Não vês que a xícara está cheia, Sim, respondeu o mestre parando de derramar, És como está xícara, estás cheio de tuas próprias ideias, e terminou perguntando, Como queres que te mostre o conhecimento, se não me trazes uma xícara vazia? — ficamos em silêncio
Continuo em silêncio, ensino aprendendo, mostro caminhos caminhando, mas não caminho só, o caminho é andante, outras histórias, disfarces, não posso ficar alheia aos inúmeros processos e mudanças sociais do cotidiano, minhas e deles, câmbios nossos. A consciência política do cotidiano para perceber e reconhecer as profusas teorias pedagógicas assentadas em realidades diversas do universo do nosso aluno e responder se manteremos o já criado ou questionamos o que está posto, desvelar o não explicitamente exposto: uma fila de cordeiros
—        Você os vê como xícaras vazias, na espera, aguardando o depósito bancário do conhecimento. Como será que eles a veem, Jacobina? Como uma chaleira ou um bule de porcelana? Uma antiguidade sem utilidade que podem jogar no chão e quebrar? — o Samuel não parece brincar. Ninguém parece se importar, os disfarces se multiplicam na medida das pessoas caladas. A colega faz um gesto de inconformidade e parece querer responder ao Samuel, mas se cala, obedecendo ao sinal da Acemira
—        Alguém viu a minha bolsa? A reunião já começou?
—        Nãoooooo!
A fenda pedagógica é tamanha que parece não ter fundo, talvez a pedagogia seja uma traição inevitável e absolutamente necessária à educação popular na fabricação de eunucos. Histórias tristes e de lembrança dolorosa não são instrutivas apenas para acalmar a dor das senhoras e senhores armados de giz, talvez devamos aprender com a nossa história. Não podemos esquecer que o poder cria o seu próprio poder, a fraude pedagógica – consciente ou inconsciente – com as classes populares volta a me atormentar. Os invisíveis.
Estranho isso de apontar aparência para gente invisível que desaparece sem brilho sob o cobertor de terra. Catacumbas. Nomes desconhecidos. Uma guerra de mortos e sobreviventes feridos de morte. Os gritos rolam uns sobre os outros, perdem lascas. A partida da vida não tem volta, mas tem gosto de dor repetida. A árvore está muito envelhecida e continua agarrada a vida por suas raízes imensas, tentáculos de astúcia.
Pelo movimento, parece que a reunião vai começar
—        Colegas, queria me desculpar pelo atraso, mas estou chegando do velório de um colega que faleceu nesta madrugada.
O silêncio é instantâneo.
Este é o Aguinaldo, diretor da escola.
—        Fiquei sem meu celular, enfim... vamos começar.
—        Meu Deus, quem foi, Aguinaldo?
—        O Mauro.
Nos olhamos mudas, não conheço, Eu também não conheci, Não lembro
—        Ele trabalhou há muitos anos, aqui na escola. Estava bem velhinho, mas dizem que muito lúcido, até quando evocava Makarenko e Paulo Freire para suas conversas teóricas e debates pós-modernos.
—        Conheci, diz Jacobina, um dinossauro.
Ficamos chocadas. Alguns lembram outras não recordam nada, não conheceram, mas ficou no ar a promessa que cedo ou tarde alcança todos. Ninguém é esquecido, a escolha é simples: viver junto ou viver só. Não tenho medo, mas parece que, num breve instante, a solidão desabou sobre o abrigo, acabávamos juntos. Um breve coletivo. Uma mesma espécie. Ninguém sabe quando será para valer. Rostos mortais, mascarados, iludidos com o teatro, disfarçados com a soberba, uma espécie de deus desconhecido. É desconcertante a indulgência da perfeição sem sabedoria, o apego da esperança à vida sem vida, Um mal não é um mal para quem não o sente
—        O que foi Anita?
—        Nada, Marko. Os pensamentos escapando pela boca. Recitando o que já foi dito há muito tempo.
O Aguinaldo continuava parado, esperando os murmúrios silenciarem. É preciso ter paciência e, por vezes, elevar a voz acima das vozes murmurantes

—        Colegas, a reunião já vai começar... sala 14!
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Leia também:
TP 04 - Maldito ou bendito, eu não sei

TP 06 - As regras do mais forte

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