quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Maldito ou bendito, eu não sei

Teatro Pedagógico 04
baitasar

Está faltando humildade para admitir que frustrei meus sonhos em uma humanidade amorosa, solidária com o sofrimento, indignada com as injustiças. No máximo consigo ficar indignada com as injustiças que sofro na própria pele. Convivemos moldados por televisões, acostumados por rádios, desenhados por jornais, esculpidos por revistas com caras e bocas, imbecilizados em homens e mulheres egoístas hábeis ávidos, no uso das palavras asseadas depuradas, sem amorosidade. Cuidamos muito pouco uns dos outros, de maneira desinteressada afeiçoada cuidadosa, estamos descuidadas desapaixonadas indiferentes. Queremos reconhecimento, o segundo da fama
—        Marko, na faculdade, nem faz tanto tempo assim, precisei ler Paulo Freire, é verdade, li porque necessitava, foi um dos pensadores da educação que precisei ler, e lembro minha professora questionando, Quem consegue evocar as necessárias qualidades do bom professor, recordo que amorosidade me pegou de jeito. Todos na turma relacionavam o amor ao romance, rosas vermelhas, mãos dadas, comportamento, responsabilidade, caras bonitas e dessujadas, inteligentes, e me ocorreu, quando falamos do amor, dificilmente, pensamos em caras sujas, deficiências, dificuldades, molecagens, rebeldias, gritos berros empurrões...
Outro silêncio no abrigo, Eliza não fez discurso, não faz discursos, mas é nela que as crianças penduram seus afetos como argolas nas orelhas, se enfeitam com beijos babados, abraços suados, beliscam apenas para saber se é de verdade
—        Mas Eliza, é difícil olhar com amor para um nariz com ranho, a boca desdentada, birrenta gritona mimada, tapas, os cabelos dos piolhos, crianças jogadas no chão, os chutes, e o banho Eliza é uma questão de higiene, cria o estado de bem-estar, têm dias que a sala de aula cheira...
—        Layla, esses são nossos desafios, muitos são previsíveis, mas existem os acidentais inesperados repentinos, mas como eu posso ser amorosa se já esqueci ou não entendi o que é ser criança?
—        Isso é Rubem Alves! — pronto, falei. É um autor que gostamos de ler, pelo menos algumas frases, nada muito comprido. Sinto os olhares, resolvo continuar — Por que não enterramos o pé na poça d’água? Não era bom? Por que sufocamos a nossa própria criança? Estamos velhas demais?
—        O problema é a dor nas costas!
Todas sorriem da observação da Cabayba, eu também tenho dias insuportáveis com meus cigarros
—        Bobagem, a alma não sente dor nas costas. Ela até pode estar ferida dolorida desencantada desvalorizada, mas não são dores nas costas... são espasmos de decepção, lamentos e formigamentos por que deixamos de fazer travessuras? Como posso deixar pular se não pulo mais? Como permitir levantarem da cadeira se não levanto mais? Adoro o silêncio. Ah, minhas dores de cabeça. — meus olhos fecham, um corpo sente amolecendo minhas partes. Não sinto que tenho corpo. Falei demais: boca fechada não come mosca. Procuro experimentar os pés contraindo os dedos, já não os encontro, deve estar caminhando por aí, perdidos de mim, desistidos da minha humanidade.
O abrigo silencioso parece esperar um desfecho dramático para os discursos. Eu, da minha parte, queria estar encantada, por dentro, esperando uma filha, brotando e florescendo afluída em mim, no balanço da maré, com novos sabores, refletindo luz liberdade, esclarecendo a ignorância, fazendo desaparecer a opressão e escravidão humana. Fico parada com a garrafa térmica nas mãos
Por que me dei esta vida?
Sou uma mulher frágil, oculta pela altura das árvores que eu mesma plantei. Não consigo mais cegar, fazer de conta que não vi. O meu anda que anda pelo desamparo largado, caminhos de sorveteiros virados sorvetes, quem sabe à morte chegue, na será a primeira vez
—        A reunião não vai começar?
—        Cala a boca...
—        Quanto antes começa mais antes termina...
Desapareci.
Encontrei o chimarrão no banco, na sombra da aroeira, esperando a água da térmica. OProfessor retirou-se. Larguei o vasilhame térmico ao lado do chimarrão. Sentei aliviada. Pensei na vontade que sentia de fumar. Não lembro o meu primeiro fumo enrolado em folha de seda, mas vou lembrar do último. Acho que vou acabar roendo todas as minhas unhas. Não quero engordar. Dizem que quem para de fumar engorda.
A Lia está sentada em outro banco à sombra daquela imensa aroeira, estamos imersas naquela sombra refrescante. A Lia faz algum comentário que respondo, não lembro nem um ou outro, submergi.
Aproximam-se a Lélia e a Layla, sentam no banco que apoia as pernas da Lia. Escuto o que não quero ouvir — A Ághata já voltou da biometria? — a Lélia come um bolinho de batata recheado com carne, olho o bolinho, me parece uma delícia. Lembro os bolinhos de batata recheados com pequeninos camarões que mamãe cozinhava na Sexta-feira Santa. E o molho refogado com azeite, vinagre, pimenta, cebola, louro, tomate, coentro, que o papai usava para temperar a traíra. Adorava o molho. Ficava atraída pelo peixe, mas tinha que ouvir tantas recomendações avisos alertas, que o prazer era substituído pelo medo, Mastiga bem, tem muitas espinhas, O seu avô quase se foi por causa de uma traíra, se salvou com miolo de pão, alguns tapas nas costas, e vinho, muito vinho.
Foi uma delícia ser criança.
Acendo o fogo de mais um cigarro.
Fritura gordura doçura nicotina alcatrão, uns asfixiados, outras fritas ou açucaradas, O que nos leva para esses vícios de morrer pela boca com artérias obstruídas, pulmões sufocados, não sei responder. Olho o rastro de fumaça que sobe monta goza desaparece. Desejo e necessidade. Volto ao meu silêncio. O cigarro não me anima, abrevia alguma coisa
—        Acho que não.
A Lia está colorida, suas roupas são alegres, ela é o próprio contentamento e satisfação. Faz questão de mostrar que não se perdeu da sua menina. Caminha com prazer, sobe e desce sorrindo
—        O que aconteceu com a Ághata?
—        Não foi com ela... os gêmeos: um com catapora, outro com caxumba.
A última mordida no bolinho, outra observação de preocupação
—        Meu Deus! Essa biometria promete...
—        E o que não me venham com as turmas da Ághata, sempre os mesmos tapando os furos! — não vi que o Eduardo estava em pé, afundado na sombra. O rosto avermelhado, as sardas, o nariz, um pimentão maduro. Um bufão com o nariz vegetal
—        E as férias?
—        Mas que férias, Eduardo?
—        Comecei a contagem regressiva.
Ficamos pasmas, boquiabertas
—        Mas, Eduardo... estamos em agosto! — ele não se intimida com nossa incredulidade, naquele veranico de agosto
—        Eu sei, eu sei, eu sei, mas depois que o agosto passa parece que o tempo voa.
Não me afogo na fumaça graças aos anos de prática com o cigarro. Lembro minha vó Bem-vinda, Minha neta, esqueça o tempo, tem coisa que você não vai entender, viva da vida o que puder vivê, o tempo não existe, o que existe é a vida que você tem
—        Quando escuto o sinal da sirene, avisando aos gritos mais um começo de tarde, sinto um desânimo, uma vontade de não ir para o pátio, encontrar os alunos para mais um tarde de gritos e ofensas, mal-entendidos, súplicas ignoradas, ameaças. Engolindo engolindo, enganado, sendo engolido. Envenenando-se aos poucos.
A Layla adere com entusiasmo de uma náufraga nas profundezas geladas do Eduardo. Precisa dizer e diz, enquanto prende os cabelos na sua piranha plástica, um rabo de cavalo
—        Eu descobri que sou alérgica com as crianças...
—        Engraçado, eu também.
—        ... fico toda empipocada só de ouvir o zunido das vozinhas afiadas, alastradas nas paredes, no chão.
Não quero deixar o chimarrão e a térmica sozinhas, espero OProfessor, mas quero outro cigarro... não, eu não preciso, tenho que terminar esse
—        Eu adoro abelhas, mas odeio as formigas. Ontem tive um crise de pânico. No recreio sai para o pátio. Elas estavam lá, correndo pelo chão, subindo minhas pernas, agarrando meus braços, invadindo meu corpo, olhos, ouvidos e boca, meu cérebro... suas anteninhas, as mãos inúteis, não existem fugas para os peixes fora do aquário ou final feliz, uma batalha perdida.
—        Professora: quero fazer xixi, quero fazer cocô, eu to com sede, ele me bateu, professora ele me mostrou o dedo do meio.
Olho para os lados, não tenho por onde escapar silenciosa. Fico sentada. Encurralada pelas próprias escolhas, me negando cegar aos pouquinhos, uma sujeita normal num caminho que parece não ter onde ir, até que as pedras se movem umas sobre as outras.

Hoje, já são doze anos, daquele primeiro beijo. Maldito ou bendito, não sei. Mas continuo enfeitiçada. Adoro teus beijos, às vezes, os evito para conseguir aguentar tantas despedidas. Sempre os quero. Perdão ficar atrapalhando tua vida. Queria tanto te escutar. Tenho uma saudade súbita, incontrolável vontade de te ver, resmungar bem baixinho, como se estivesse provocando, confessando, Só há um modo de sairmos de nós: é amando alguém. A lua estará linda, cheia tanto quanto o meu coração de amor. A saudade é como uma estrada longa, enquanto salvamos o mundo não vemos o que se passa ao nosso lado, quando nos viramos tudo já aconteceu.

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Leia mais:
TP 03 - O livro que quero ler na eternidade?
TP 05 - A reunião vai começar

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