sexta-feira, 25 de abril de 2014

histórias davóinha: ôneinho, rezá é bão - dá conforto e esperança 08cp

casarão canela preta


ôneinho, rezá é bão - dá conforto e esperança
Ensaio 08cp – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar




acordei na metade da noite, atirado na cama. vestido com as vestimentas do dia. dormir com os olhos abertos é o mesmo que não tirar do sono os pensamentos do dia. as lembranças continuam latejando. não é descanso o abatimento na cama com os pés latejando dentro das botinas. lembrei um palavrão grande e imoral, levantei para desvestir a indumentária do cobrador de passagens. quando arranquei as botinas descobri que não tinha feito nenhum descanso. senti os pés prisioneiros da minha própria prisão. larguei as preocupações com o tiuzin Manoel junto com as vestimentas suadas e fedidas, ao lado da cama, no chão. tomei meu banho do descarrego do dia morto e continuei os preparativos de dormir. até que enfiei o sono embaixo das cobertas. deitei nu de mim mesmo, Neinho, ocê sabe qual o costume qui uspretu, branco, pobre e rico tem igualzinho?

Agora não, avóinha... preciso desse cochilo de poucas horas.

É só respondê qui avéia toma chá de sumiço.

quase sentei na cama, frente a frente. mas olhei com as vistas quase fechando os cabelos brancos cheios das miçangas coloridas, a pele lisinha, os olhos bem abertos. avóinha tava cada vez mais reparada, eu cada vez mais quase desadormecido, Não sei, avóinha.

E mifiuneto qué sabê?

esfreguei as vistas da visão, depois lhe mostrei meu riso de saudade misturado com minha resposta de atrevimento. ela parecia não ter vontade de fechar os olhos, eu não queria abrir, Por que avóinha pergunta? Avóinha vai dizer de um jeito ou de outro...

ela continuava sentada na cama, as duas mãos apoiadas no colo. depois que as vistas entraram na minha cabeça eu subi no colo da avóinha, mas parecia que era davó que tava no meu colo, cansada da lonjura de ficar de uma cidade até a outra. da cidade dos vivos pra cidade dos mortos e de lá pra cá, Ocê prestenção no jeito de escutá.

fechei as vistas e deixei aquela visão encher o meu quarto até me abraçar, Estou escutando, avóinha.

a aparição colocou a mão em meu queixo e me fez erguer mais as vistas até não avistar mais nada, tava olhando pelos ouvidos. a cabeça parecia virada pra cima e as vistas reviradas pra trás até ficar na posição de abano das orelhas, A estupidez, miúdo davó.

Será, avóinha?

ela balançou a cabeça e fez um ruído com a boca que mais se parecia com uns estalos da língua, Sandice e burrice é coisa quisó os humano tem, bicho não tem.

fechei os olhos e pedi que ela se fosse, queria ser recebido com sossego pelo adormecimento. Avóinha não parecia querer me obedecer, sua voz chegava de longe até mais perto. o bafo do desassossego entrava como sussurro arrastado. a cantoria virava ensinamento, No começo, a estupidez chega com modo educado, cheia de gentileza. Depois, ocê querendo ou não, ela fica forte e durativa. É quando o inhenho começa perdê a vigilância sobre o amontoado da tontice qui engoliu. Num sabe, mais tá desarranjado. A cabeça se perdeu do curação, o curação si perdeu do corpo e o corpo si perdeu da cabeça. O curação, o corpo e a cabeça fica separado, dei um sorriso e fiz sinal com o dedo na boca pra ficar quietinha. larguei meu corpo de volta na cama, precisava dormir, mas tinha medo de encerrar a conversa com avóinha do jeito errado. queria que ela voltasse

Eu rezo para não perder o mando do meu pensamento.

Rezá é bão, dá conforto e esperança, mais é preciso praticá entendimento, enfrentá a burrice. Praticá amô na casa e lá fora... mostrá amô de vivê com amô.

concordei, sempre concordo. repeti que precisava dormir e revirei-me na cama. ela foi mais um tempinho conversando, parecia contando alguma história de dormir. eu continuava deitado no colo da avóinha, ela enfiava os dedos nos meus cabelos até me adormecer. o sono chegava rápido. rezava e cantava. tinha histórias de contar lindas que mais se pareciam com rezas e cantorias. terminou bem na hora marcada de levantar, Acorda, moleque... é hora de desaninhá!

o mais difícil de fazer era sair dos abraços da cama. tirar o meu corpo entorpecido do ninho quentinho. abrir os olhos para os assuntos do tiuzin Batata. na hora de levantar, as vistas estavam grudadas e dormentes, inchadas com a vontade de dormir. o sono tem um apetite que precisa ser saciado. não gosto de ficar esfomeado de sono, Fumaça!

pulei da cama. esse grito não foi do tiuzin Batata, mas da tiazin Vanda que não tinha o costume de deixar os assuntos do seu interesse sem resposta. pelo tamanho do chamamento, tava claro que continuava sem motivo de alegria com a minha desobediência. não aceitava o tamanho da importância e atenção que eu dava à Viação Anônima e nenhuma para a escola, Não esquece a escovação dos dentes, precisa fazer brilhá, resmunguei qualquer coisa e revirei para o outro lado, tava todo encolhido

— Fumaça!

esse é o tiuzin com o seu toque de corneteiro no quartel. convocação no volume mais alto. não tinha jeito de não escutar e obedecer. o susto levantou primeiro, bem depois foi a vez do fantasminha do corpo. o último que se desafiou sair das cobertas foi o hálito do meu espírito. chegamos juntos no tempo de reunião no quarto higiênico. um anão sonâmbulo. água fria. café preto, forte e amargo. o gorro. calça de brim. botina militar. casaco de lona por cima de tudo, Estou pronto, tiuzin, no bolso da camisa azul guardava a guia da roleta do 69, a outra levava no pescoço. jamais tirei.

saímos.

eu galopava ao lado do tiuzin, dois passos meus e um dele, enquanto a madrugada amanhecia desembestada. até que ele reduziu a fome e o feitio de comer o caminho das ruas. cada caminhada se parecia com a mordida no pão, uma necessidade da vida chegar ao seu destino. parou o chão da estrada, Por que parou, tiuzin? Estamos perto...

Fumaça, antes de cada um ir pro seu canto, quero avisá que vô puxá o corujão, a estrada embaixo da botina continuava parada. o corujão é o último horário da madrugada. o horário que recolhe todos e depois se recolhe

Por que, tiuzin?

ele virou o nariz de batata e me ficou de frente. os olhos de um nas vistas do outro. vi que o tiuzin experimentou o gosto do dinheiro e não tinha intenção de queimar aquela esperança de ganhar uma lasquinha a mais, Mais hora, mais dinheiro...

a assombração do dinheiro come tudo e todos, tem uma fome descontrolada. come a vida, depois lambe os beiços. o apetite não diminui, então com os dedos lambuzados de sangue e carne, chupa os ossos da carcaça, um a um, até não restar mais nada que comer os próprios dedos, já sem gosto de ossos, sem sabor de carnes. é quando o apetite da cobiça descobre que comer a vida não lhe dá vida, dá de ombros e segue se lambuzando

olhei para o lado, avóinha não desgrudava os olhos do tiuzin, tinha o olhar mais doce e triste que jamais fez. o filho mais novo, o último descuido do estertor da paixão sendo comido pelo dinheiro do patrão, É bem assim, neinho. Ocê nunca tem o dinheiro, ele é qui tem ocê, olhei avóinha com olhar de reprovação

Vavó faz parecer que viver é uma ilusão.

ela desgrudou os olhos do tiuzin e me fez o mesmo olhar, olhar de remédio amargo, Quem num tem modo de suportá o ilusório qui é a vida... — fez pausa de suspense e seriedade — ... esconde a vida no dinheiro.

fechei os olhos e pedi que a assombração da avóinha pudesse desaparecer dali, não era uma boa hora, queria colocar minha atenção no tiuzin, Bobagem, ocê esperá pela hora certa, assim nunca faz nada. Fica sempre esperando a hora certa.

Falar é mais fácil que fazer. A sabedoria da avóinha esperou avóinha morrer pra aparecer, pensei que tinha ultrapassado algum limite do que se deve dizer ou não deve deixar sair da boca, no caso de manter conversa de vivo com aparição do espírito. e se não tem espírito? eu fiquei louco? anão, preto e louco

Ocê sabe?

fiquei em silêncio, não quero endoidecer de vez, nada de respostas ou perguntas com gente que não é mais gente, não é mais deste mundo. não respondi. ela voltou a perguntar. insisti no silêncio. não vou responder, Siocê num responde, num sabe.

lá tava a avóinha com o palheiro nos dedos. não vi ela preparar o fumo nem acender a palha. puxava o fumo e me assoprava, O que eu não sei, avóinha?

resolvi perguntar antes de me afogar naquela assopração de fumaça

Ocê sabe quem acerta a hora certa do zanzo da vida?

não sabia. queria poder dizer que o relojoeiro do mundo é Deus, não acredito num único relojoeiro, mas posso aceitar que existem muitos relojoeiros, Sabia qui ocê num sabia.

— E avóinha sabe?

ela continuou com os joelhos dobrados, agachada ali, entre o filho e o neto, jogando a tragada do fumo naquela bruma que me envolvia num abraço de mistério e intenções, O neinho diz qui num é hora da assombração aparecê, pode sê ou pode num sê, então... pode sê, essa conversa continua na hora mais certa.



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