domingo, 21 de junho de 2015

Histórias de avoinha: Yao ê auê Onilé é dona de tudo ie aô, a Mãe Terra, Aiyê

Ensaio 54B – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar


Tempos depois de chegá no casarão com o fiô piquinino nas mão, o saco dos pano na cacunda, foi qui ficô sabendo: o siô da Hora tava lhe dando aviso de confinamento dentro da prisão do cativêro, ê chora chora chora preta bunita, num purugunta pur qui tanta dô, yao ê auê, Onilé é tudo yao ê auê, a Mãe da Terra yao ê auê vestida de terra auê a a, é pura terra é pura céu andando sempre ao meu lado, yao ê auê, não vou mais usar os seus serviços de cama, pelo menos, por enquanto, estou melhor servido, mas fique a negrinha sabendo que se não for eu... ninguém mais vai lhe usar, criolo ou branco, entendido?

Yao ê auê Onilé é dona de tudo ie aô, a Mãe Terra, Aiyê, pur qui tanto dô ie aô, pur qui tanto noite sem lua ie aô, pur qui tanto escuridão sem estrela, pur qui tanto dô

A mocinha precisa ajutório?

Num é preciso, respondeu Milagres, ocê já fez bastante da minha parte, apontô as vista pra fervura das água, isso é assunto meu. As duas muié se oiô, num era preciso concordá nem disputá bobice, a dú pé, disse Rita, eu qui agradeço, respondeu Milagres, o galo já se recoiêu e o dia foi durumi, vosmecê ajunte o cansaço e deixe aqui a  dô, vá pra sua choça durumi u qui dé pra durumi. O pouco qui fô já vai dá ajuda pra continuá, pode inté acontecê de tê sonho de passeá no céu, visitá nosso siô.

O Cristo nasceu, mais num levantô pra eu, Milagres.

Cuidado, essas coisa de pensá num é bão, a desesperança num ensina coisa boa, ela acomoda a quentura da vida, esfria as mão, congela os pé, afraca os assopro qui avisa e chama pra dançá. Num deixa as coisa ruim ficá maió qui a vida, num perde a voação dos sonho, ocê murcha inté sê guardada num buraco escuro, sem nada, num vai voltá assombração. Mais se voltá, num esquece qui assombração num tem os pé na terra.

Mais pode incomodá...

É isso qui ocê qué, incomodá, nenhuma das muié tinha urgência de sofrê mais nem gosto de vê a otra perdida. Um abafamento de agitação pra num acordá antes do tempo de fugí, querê fugí era tê vida na urgência de se soltá mundo afora, com liceça do dono de terra, com liceça da siá moça, ocê purugunta aonde vô, iô vô navegá, iô vô passeá, levo junto Onilé qui é dona de tudo. Um passeio de barco no Gravataí, iô vô vê o entardecê do sol avermeiado, num precisa abrí o berrêro vô voltá depois de sentí a doçura dos remo na água, sorrindo, desembaraçando a voz murcha, envergonhada de tão desacostumada de saí da garganta, engravidada da vida qui num é intriga, solta à deriva nas água. Iô vô tê os remo das asa borboleta, iô vô sorrí colorida e nervosa, as asa colorida remando o podê terrestre das água, sem tirano sem injustiça sem pulícia sem dono de tudo, ninguém qui me mande. Um anoitecê pra num recoiê os remo, ficá na estrada das água, cantá alegria tristeza, como deve sê a vida, milagrosa, espaiada da juventude inté a caduquice, agitando os dia qui vai e num volta. Num adianta querê as coisa qui foi, num tem volta, é bão deixá o qui passô debaixo do oiá quente dos espritu mais antigo... ficá vagueando no otro mundo desse mundo pode esperá

Vô me recoiê, e ocê, Milagres... faça da noite uma coisa boa.

Boa noite, Rita, qui o pai ofereça cavalaria de escolta contra os brabo e violento, a mãinha do capitão-do-mato oiô nas suas vista e viu o qui já tinha sido no sangue. Era antigo o tempo qui tinha valentia, sem medo de ganhá barriga nem de tirá. Naquela noite, o sorriso num tinha só desamparo e desconsolo, ia durumi de camisola sem lua pra iluminá o terrêro. Virô as costa pra Milagres e saiu arrastando os pé, resmungando, a vida pode sê dura, otras veiz pode num sê, mais pra muié preta a dô nasce junto e acompanha inté nos canto, yao ê, Ererê ai ogum bê, num purugunta aonde vô, se vô num vô voltá, ê num chora chora piquinina ê num chora chora, levo na cacunda a cambada da Mãe África, a cavalaria na caravela vai saí pra fazê o caminho de voltá

Num tinha mais nem a gingação da tristeza, era só quebranto, tava sem reza sem santo sem guerrêro, tanto cansaço, sem céu, só tinha terra pra pisá, vestimenta de terra cama de terra, era toda terra. Perdeu o encantamento, sobrô a sina de vivê qui arrastava a carcaça. Resmungô de novo, quando eu morrê me enterre sem vestimenta de pano, me chega a cobertura da terra, num ganhei nada num quero nada num levo nada.

Cruz e credo, Rita! É de muita tristeza as despedida do dia.

Eu qui sei, mocinha, a dô qui tem vivê sem nenhuma das coisa boa da escuridão se oferecendo, peço desculpa dessa minha saída, mais num vô amamentá a nascença do dia. Ocê qui se cuide. Obrigado Olorum, sua bondade de criá tudo e oferecê seus fiô pra povoá o mundo qui existe. Como o siô já tava sabendo mais qui tudo, cada um tomô o rumo do seu destino. E vô tomá o meu caminho. Espero qui Olorum esteja satisfeito, mais num acho qui tá. O mundo num para de sê criado, ela pariu ali, na saída, já de costas pra Milagres, as água das vista mais dolorida qui nunca antes tinha derramado. Todo o sangue africano lhe descia, banhava os pé. Entrô no chão tabuado todo seu desespero. A tormenta nunca passava, a sua valentia perdeu o veneno. Saiu

Qui o santo vigia lhe cuide dos passo.

Santo Jorge me guia, Milagres, foi sumindo inté num tá mais lá.

A escrava se fez anunciá com duas batida piquinina na porta do quarto de siá, entre, tava anunciada e com liceça de aparecê. Empurrô a porta com cuidado, antes de entrá toda. Enfiô o oiá com feitio cuidadoso. A siá tava sentada com sua frente no espêio, escavava a cabelêra na claridade amarelada das lamparina. A escova descia da coroa da cabeça inté as ponta, parecia acariciá cada linha da terra com os dedo do arado

Com liceça, siá. A Rita avisô da sua vontade... a dona de quase tudo lhe parô a voz humilde e resignada, num tirô as vista do espêio nem parô de cariciá os fio, continuava puxando a escova de cima inté embaixo

O que foi que a Rita lhe disse?

A muié preta largô a porta, deu otro passo piquinino quarto adentro, os pé nu fincava Milagres no tabuado. As vista largada no chão, os braço pendurado ao lado do corpo, abriu a boca pra soltá as palavra qui conta as história do seu povo desde a Mãe África inté naquele lugá de dô e corrente. Calô. Achô qui as conversa guardada no seu silêncio num tinha serventia nem curiosidade nem importância pra siá, achô meió calá pra modo de precaução, só soltá as palavra qui atendê as purugunta feita, a Rita avisô qui siá qué tomá seu banho.

A dona da casa e de quase tudo largô a escova na mesa do espêio, levantô e virô toda pra mucama, num disse nada, mais deu pra oiá qui ela sentiu vontade de fazê revelação de muié. Falá do medo de num sabê fazê o fiô do marido, o dono de tudo. O desalento de num sê mãe era um peso muito grande, isso desafiava as coisa qui num mexia na barriga, o seu saco de criação. Parecia caminhá como Oxalá, sem nunca chegá no lugá da criação das lebre, dos pássaro, das galinha, e dos hôme, num queria pensá tristeza, sabia qui se continuava com esse feitio de cismá acabava numa cabana decadente, durumindo na beirada da estrada. Deu um passo, pareceu decidida contá tudo duma veiz. O desabafo de um só fôlego, sem chance de arrependimento. As mão ajuntava apertando os dedo da otra mão, ficava enlaçando uma na otra. Parô. Num deu o otro passo nem voltô atrás, ficô aonde já tava, indecisa e perigosa, inté qui confirmô as palavra da Rita, pois lhe disse certo, é isso mesmo.

As duas deu o mesmo passo atrás, a preta em carne viva retrucô, então, vô fechá as janela e trancá o vento da friagem lá fora. Já foi saindo de costas, curvada na frente, as vista no tabuado. Um pé depois dotro. Os dedo dos pé esborrachando, o tabuado resistindo qui nem respirá se atrevia. A otra muié parecia poema sem verso, boniteza sem encantamento. Os cabelo alongado, os fio solto. A brancura corrediça e opaca parecia querê se escondê da preta cristalina com os rastro de matagal, quero meu banho com os cheiros do mato, Milagres. Gosto da suavidade do cheiro das ervas e plantas. Acredito que as ervas podem curar.

Carrego um saquinho de mato agarrado na cintura.

Pois leve o mato para o meu banho.

Já apronto as água e os chêro, com a liceça da siá dona da casa, fechô a porta. Correu inté a cozinha. Encontrô o fogo azulando a chapa, as água borbuiando brotava do calô das lenha queimando. Cantarolava bem baixinho, eita fogo fogaréu, fogo fogo fogo, fogo lá do céu, eita fogo fogaréu, fogo fogo fogo, fogo lá do céu, as duas língua dançando, coziando água derretendo frio, tava no ponto de carregá inté o quarto de banho. Carregô uma tina e derramô toda água vaporosa na louça da lavação. A quentura da água derretida espaiô no quarto, queimava só de oiá. Mais uma tina foi derramada. Milagres esperô o vapô sê desventado pra vê o tamaiô da cambada de água. Saiu na porta do corredô com a tina vazia, fez mais duas ida e volta, uma caminhada sem chorá, otra caminhada sem alegrá, água da quentura germinando. O último estirão fez com água fria. Despencô de uma veiz a tina com a fria, depois foi derramando com parcimonia a tina reserva com quentura, sempre guardava no alcance da mão alguma fervura. Experimentando e derramando otro tanto da fervida, fez assim inté chegá no ponto de alívio e aconchego. Abriu um pequeno saco de pano qui carregava amarrado na cintura, retirô os chêro do mato: um punhado das fôia moída do alecrim-de-jardim, alfavaca, eucalipto, hortelã-pimenta, as semente de sete-sangria. Jogô tudo nas água do banho. Esperô o aroma soltá do lago e subí o mato. Num ficô satisfeita, enfiô a mão otra veiz na sacola, apanhô as pétala das violeta e largô no banho da siá. Num esqueceu de deixá uma qui otra no chão tabuado. Respirô. Ainda num tinha terminado, agarrô um pouco de raiz de guaxuma, já tava toda picada. Misturô. Sorriu. A peça de louça pro banho da siá Casta tinha os chêro forte e delicado do mato. Separô as tôaia pra desempapá a moça das água lavada. Oiô na volta, as duas lamparina e o nevoêro do respiramento qui subia da louça retirô da claridade a brilhatura, amarelô o lugá desalumiado qui se mostrava sem deixá vê, tá perfeito, consegui misturá na água do banho a bruma do mato, sorriu e pendurô o saquinho na cinta de corda. O quarto do banho tava mudado. A preta se comoveu inté qui lembrô: aquilo num era pra ela nem pra lavá as mão. Fechô a portaria do corredô, oiô na sua volta mais otra veiz, continuava satisfeita. Atravessô o quarto do banho e bateu na porta de siá, tava na hora de avisá

Entra, Milagres.

Entrô, o banho tá pronto, siá Casta.

A dona de quase tudo levantô, parecia querê puruguntá, aparentava querê pedí, mais num era coisa fácil de contecê, ajude-me com as roupas, num foi pedido, num foi purugunta, a preta obedeceu e chegô nas vizinhança da siá. Assistiu na soltura das camada com muito cuidado. A dona da casa usava dois forro pra protegê a reputação das entranha qui precisava ficá escondida. Uma brancura mais branca começô aparecê, as vontade da carne se aprontando pra descarregá usando as vestimenta de muié. Abandonô no chão tabuado a rouparia de patroa. A brancura anunciava uma louçaria escura e abundante nas virilha

A siá qué qui faça o serviço de reparo e corte, a purugunta desarranjô a dona da casa, a patroa queria dizê qui num qué, a muié queria aceitá qui sim, a preta se aproximô

Não... é melhor que fique assim, os bico rosado num parecia envergonhado das vista da otra muié, as vista da siá tava no chão tabuado, queria escondê as água batendo nas rocha, mais num tem vontade decidida qui num possa sê esquecida. A quentura lhe deixô rosada, tesa e tolerante. A fartura das água alagava, a bruma escondia o ímpeto das onda. Num tinha hôme qui sabia dominá as água revolta. As muié aprende fazê assim desde o saco da criação, se afogá nas próprias água. Num soltá o amontoado do dilúvio qui sobe das profundeza e descontrola tudo qui respira, termina e faz nascê o mundo. Uma fortuna de pecado e perdão.

A siá lhe virô as costa e caminhô inté as água. Milagres subiu as vista, tava decidido, ela qué, eu quero, vô dá banho na muié branca.

Ela entrô na banhêra de louça e afundô, merguiô toda na água do mato. Voltô do fundo e encontrô o oiá da otra muié toda preta. As duas brilhava de vontade, deu a mão pra otra. As água juntô as duas vontade cantando, dançando, provocando as subida e descida num abismo sem fundura, o balanço do navio negrêro rasgava a estrada das água, nada fazia ele pará. No porão escuro, apertado e perverso, os negro nu e acorrentado afrôxava a dô com as lágrima. A saudade estreitava as corrente. O peso de vivê insuportável. Os branco nunca quis entendê a dô das corrente balançando no meio do nada, pra lugá nenhum, num importava o lugá de chegá. Num tinha branco indignado com a indecência das corrente nem do pelourinho ou dos abuso com as muriquinha piquinina. Eles só julga as indecência qui eles diz qui é perdição, acusa de intolerante e bruxaria os acorrentado qui ele acorrentô e obriga trabaiá, metade hôme, metade bicho. Compra seus braço, suas perna, mais num compra o coração. Então, esmaga tudo e se rejubila ao vê os negro nas suas ocupação de escravo. Ah, qui lindo escândalo seria essa Milagres se movendo tranquila adentro do céu, incendiando com a sua terra, requebrando inté amanhecê, sacudindo o vento da respiração e a constelação dos gemido imprudente. Ah, qui lindo escândalo vai sê quando o castigo nunca chegá!



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