quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Teatro Pedagógico: currículo maluco

Parábolas de uma Professora



currículo maluco

baitasar e paulo e marko



terminei este outro cigarro, desisti de contá-los, dane-se a matemática dos cigarros. retorno para a reunião com uma vontade de nunca chegar. não sei por quanto tempo vão suportar esse meu entra e sai, talvez nem me cheguem a ver, sou translúcida, a luz me atravessa. não deixo meus pensamentos serem percebidos com nitidez, sou diáfana

Colegas! Nossa pauta sofreu um desvio natural, talvez necessário frente à demanda do nosso dia-a-dia, mas precisamos dar prosseguimento a pauta da reunião.

nosso diretor tenta recomeçar sua pauta, os seus assuntos administrativos, burocráticos ou pedagógicos, tanto faz como não faz, estou pronta para parar de fumar de qualquer jeito. apenas, espero o momento mais conveniente, os gestos já estão treinados, as lágrimas prontas

Pensei que já havíamos terminado!

exclama uma cabayba raivosa, atrás da máscara, cicatrizes do desamor? não sei,

É importante que façamos a discussão sobre os nossos conselhos de classe.

o professor aguinaldo não se intimida, nem mesmo lhe dirige o olhar, sabe os perigos que corre. não desconhece os cuidados que deve ter no lodo venenoso em que se move

O que temos para falar sobre os conselhos de classe?

Precisamos definir a participação dos alunos e como se dará. Iremos comunicar ou discutiremos com os alunos o fazer de todos na escola? Preciso desta decisão para preparar os meus alunos.

simeão, nosso orientador educaional, o soe, lembram? ele já está no picadeiro, quer saber se teremos um conselho de classe participativo ou apenas um programa de auditório

Conselho de classe participativo entre alunos e professores? Mais um campo de batalha, mais uma luta inútil...

layla não deixa qualquer dúvida sobre a sua posição neste debate de fazer conselhos participativos, não acredita neles e os acusa de serem responsáveis por discussões vazias, e muitas vezes ásperas, entre alunos e professores

A dignidade dos homens e mulheres é condição essencial, para todos que se pensam educadores populares e se dizem oradores de uma práxis libertadora, no estabelecer de uma condição de luta. Levar e se deixar levar, amar e se deixar amar, ensinar e se deixar aprender, num mundo que existe e precisa acordar, inclusive esta vida que eu quis e invento como se uma outra não fosse possível até esta acabar. Eu mesmo, educador, tenho que lutar e me libertar da opressão a que me submetem para continuar rezando e agradecendo por ser professor, para ir em frente sem muito pensar e dar conta da tarefa de transmitir meus conhecimentos, que não são apenas os conteúdos de um currículo já estabelecido e com tempo determinado para avançar.

Professor Paulo, eu é que me encontro destruído por estes pequenos bárbaros!

outra vez o botto, não quero resmungar ou parecer inacessível às suas dores e neuroses, quem não as tem? mas sua demência precoce de antenas e patas nervosas

Não preciso avaliar para reprovar, mas preciso avaliar para identificar meus equívocos de ensinador.

Quem deveria aprender com os erros de quem ensina sem olhar para baixo e para os lados?

Não quero pensar além da minha própria destruição!

Nossa, Botto! Não esqueça de nos incluir nesta pendência. Tudo é nossa culpa!

grita a layla, dedo erguido, olhar atrevido, boca entreaberta, pronta para o bote, clássica serpente que rasteja em terra firme até subir às árvores e se jogar em abraço mortal

Ninguém disse isso.

E se o currículo fosse repleto de amorosidade eu conseguiria ser aprovado ou teria que repetir anos e anos até me evadir?

Gurias, me perdoem, mas não me sinto destruída. Tudo bem que cansamos, vez que outra, mas me sinto em pleno vigor.

e que vigor. a professora acemira se mantém exuberante, dentro de uma massa corporal sólida, sua manta de beleza superficial. um desenho artístico de traço firme e rara perfeição, tudo isso envolvido por uma voz apaixonada, colorida, mas sem nenhum conteúdo da alma, apenas o egoísmo do belo, sem função outra que se exibir e levar as vantagens de pequenos delitos. seu alfabeto não é o da alegria, mas do servilismo e bajulação. ótima professora que optou pelo faz de conta. desistiu

Qual a dificuldade de nos reunirmos com os alunos e falarmos sobre o que achamos importante para as aulas e ouvirmos o que eles acham importante?

pergunta a guerreira lia, enquanto o paulo se recomeça

O provão final deste currículo novo teria como questões expositivas abraçar a todos e escolher alguém para dar um fraternal beijo. Explicitar a todos as razões de cada escolha, talvez nos colocasse em recuperação nesta questão do abraço ou do beijo. Não temos nos saído muito bem nestes conceitos de amorosidade, mas poderíamos ter outras chances na prova final, com outras questões além destas de apertar com os braços e inclinar-se a beijar. Olhar nos olhos uns dos outros, lendo a compreensão do distante e do imediato, oferecendo nossa alma. Questões afetivas importantes, como passear no recreio de mãos dadas, seriam levadas em consideração com um peso maior quando da avaliação específica de cada disciplina nas áreas humanas e exatas.

Escola estranha essa que valoriza o abraço, o beijo, o olhar e o caminhar de mãos dadas, em detrimento da matemática, gramática, bússolas e mapas. E os conteúdos?

As provas não seriam mais escritas, mas descritivas e expositivas, vivênciais. Qual a apertura?

Nenhuma! Apenas, perda de tempo. As aulas são nossa responsabilidade, nossa propriedade, somos a matriz da educação.

responde a inconformada cabayba

Como decorar um beijo ou colar um abraço? Faremos do mesmo modo provas e disputas com contadores e contadoras de histórias? Não poderemos esquecer de avaliar os contadores e as contadoras de piadas, os desenhistas e as desenhistas, aqueles e aquelas que gostam de dançar, jogar capoeira, encenar teatro como atores, atrizes, diretores e diretoras!

Não sei, toda vez que ouço esta expressão ‘matriz’, lembro imediatamente do rebanho de gado e as suas matrizes de reprodução, eleitos pela sua aparência, imponência e genética de proporcionar melhoria na raça, para o fim de atender melhor as exigências do mercado consumidor de carnes. Prefiro não ser rotulado. Não quero bretes!

eis o guerreiro samuel e a sua oratória, não se permite calar

Onde encontrar a professora nova e a professor novo capacitado para este currículo maluco? Como descobrir estes professores e estas professoras formadoras destes excêntricos, que na prática professarão nosso currículo doido e absurdo? Um currículo despertando devagarinho em uma outra consciência, mais elevada, dirigida para cima, procurando em um plano superior o próprio coração voador, amante das suas estrelas de dentro que nos banham também.

A falação descontrolada das formigas não é confiável, é medida pela capacidade de machucar e magoar as pessoas.

insiste o formicídeo botto, ficara tão estranho sem suas antenas, perdera a finura de sua cintura para uma obscena barriga, definitivamente não era mais o mesmo, piorava, agonizava

Estão sendo construídos por nós com estas qualidades, por nossos defeitos, frutos do nosso medo e intolerância e ignorância. São colocados como ouvintes permanentes do nosso discurso pedagógico, cheios de conteúdos mortos pela realidade avassaladora das tecnologias que não suportamos. Sugiro que façamos com eles a discussão sobre a morte. Aproveitando os conteúdos escolares que estão morrendo nos seus interesses e a nossa inaptidão de ressuscitá-los. Descobriremos a sua mortalidade. O nosso amor não se apresenta forte e suficiente para operar milagres.

lia continuava atenta e disposta, não recuava, gritava avançar ao som do clarim e se colocava à frente de todos, mostrava-se como exemplo, nossa lenda viva, mas eu não me animava. foram muitos anos de reuniões da dona catarse

Quanto discursos e quantas orações bem intencionadas se escutam no dia-a-dia das salas de aula, ditos sem nenhuma reflexão, exigindo a ação no mesmo sentido de alunos e alunas impedidas de qualquer reação? Calar a boca, fazer silêncio. Escutar o verbo e, fingindo-se reconhecido e reconhecida, dizer amém. Ouvir gritos e palavras de ordem de sentar, levantar, atentar, escrever, apagar, impossível rasurar, saúde, bom dia, boa tarde e boa noite. Quietos. Sentados, correndo, parados, pulando e saltando. Quietas. Brincando, bonecas, pular corda, casinha, docinho e beijinho. Professor maluco... vou esculhambar, sentar em cima, fazer explodir tua raiva, teu grito, um, dois, três, começa por mim, há, há, há, há, mais alto... há, há, há, há... Meu Deus! É um santo, nem se abalou. Começo de novo, até cair, e sento no chão meio sem graça, a velha é esperta e grita comigo, levo um susto, dois e mais um, descubro que avancei seus avisos de adversa. Nada fiz que valesse estar aqui até hoje, até ontem, minhas tentativas sempre foram cópias do que já havia sido instaurado.

Eu mesmo sou sua cópia carbono.

Não existo enquanto criatura se não penso o processo ligado essencialmente à ação, à consciência e à situação dos homens, e pelo qual se oculta ou se falsifica essa ligação. Continuo a existir como um corpo organizado que apresenta, em todas as suas partes ou em algumas delas, conformação de anormalidade. À tarde, aos poucos me cai nos ombros, me convida a prosseguir.

como sempre, a fala do professor paulo provocava um sentimento ambíguo nas pessoas que não o escutavam com o coração, rejeitar ou mudar, mas mudar para um mundo desconhecido era pedir muito. este homem ainda nos morre e nos deixa sem as respostas

Somos ocas e sem significado! Esta é nossa culpa!

Puxa, Lia... não somos tanto.

Somos menos...

A nossa culpa é permanecermos aquilo que nos tornamos por formação e negarmos a transformação do outro em nós, através deles que também somos e pertencemos. Somos nossos alunos que formamos a nossa imagem e semelhança, somos todos oprimidos e opressores da nossa existência, somos o castigo e a culpa e não acreditamos na salvação.

Querido Samuel, a ignorância está sempre acompanhando nossos alunos e alunas, eles e elas precisam acreditar mais em nós, seus educadores e suas educadoras, o conhecimento acumulado da humanidade é carregado em nossos neurônios privilegiados. Somos os seus sonhos, os fatos de seu tempo, o verbo da sua vida, o futuro que não para de chegar sem novidades, nossos alunos e nossas alunas fazem parte do nosso show pedagógico com direito de aplaudir no final. Suas buscas terminam aqui, no nosso entorno, bastam-lhes seguirem e acreditarem sem descrença que a escola e seus professores os levarão ao todo dia de cada pão nosso. Os dias nascem e terminam felizes. Não iremos falhar em prepará-los para a vida. A vida e a morte.

Você tem certeza, Acemira?

Para que procurarem na dor o conforto que não sentem quando estão perto?

Chamam minha oratória de cínica. Dizem a mim que o descaramento também é um pecado, não contemplado na tábua de Moisés, por certo, mas um dogma para os professores e professoras que teimam em se colocar como os missionários que irão movimentar em direção ao progresso dos alunos e das alunas os seus conhecimentos e sabedoria secular. Luta-se por uma ética cada vez menos corporativa. Sonho em vão.

Mas, Paulo, nós temos que saber mais que nossos alunos, o contrário seria, eles saberem mais e nós estarmos sentadas nos seus lugares, ouvindo e aprendendo do seu saber mais.

O teu saber mais em matemática ou português consegue levar os teus alunos ao prazer da descoberta dos números ou das relações possíveis dos tempos verbais... e tantas outras ainda não descobertas?

A matemática usa do raciocínio lógico, disciplina, absoluta concentração, seriedade, julgamentos lógicos e não sensitivos. Como desviar deste padrão lógico de ensinar e aprender?

Teu ensinamento lógico é parecido com o jeito de conhecer os lugares pelos cartões postais, não tem cheiro. Tem colorido, apenas o movimento das tuas mãos enquanto o seguras. Brilha sem jamais ofuscar. É uma fotografia. Bonita. Feia. Preto e branco. Colorida. Mas uma fotografia. Não tem movimento. Não tem voz. Só tem memória.

Uma arapuca de carne viva!

por que não falar com nossos alunos sobre os mistérios do amor, da dor, da alegria? qual a dificuldade de iniciar com poesia, Se ele, aquele homem do corredor, se confessasse por mim apaixonado, como voltaria à sala de aula? insisto nas dúvidas, mas certamente gostaria de cantar o amor e as paixões! grita minha alma, Por que os alunos e as alunas não têm o direito de falar sobre sentimentos? são bonecos de pau? não. agora, gostaria de interromper esta reunião e falar sobre este, que parece ser um vício em mim, um “vício condenável”, o amor... gostaria de deixar-me levar pela livre manifestação dos sentidos, pelo arrebatamento, pelos impulsos do corpo, pela indisciplina, pelo coração. deixar-me levar pelos mistérios do professor do corredor! levemo-nos todos pelo grito do coração e pela emoção do amor, falta-me a coragem das palavras dos poetas, a cuja palavra a escola não me ensinou e me fez calar. precisamos ser tolerantes para ultrapassarmos a sabedoria intelectual raivosa que nos impede de existir com ternura na nossa finitude incompleta. não possuímos os saberes inquestionáveis dos deuses astronautas e precisamos nos permitir conhecer as verdades das nossas crianças, dos nossos alunos, fazendo com que isto aconteça com coerência entre o nosso discurso e a prática cotidiana. necessitamos da energia espiritual que encaminha as soluções onde a ciência e a tecnologia não conseguiram ultrapassar os conceitos humanos de solidariedade

Comece por dialogar com seus alunos e propor atitudes diferentes frente a problemas iguais, que se repetem.



não estou muito bem, foi um dia triste e difícil de entender, a vida fica tão complicada de repente, ontem vibrava com as nossas possibilidades de aprender e ensinar, hoje choro a morte de mais um brasileirinho, meu sobrinho postiço. a gente ajudava a criar, não sabia e nem conhecia pai ou mãe. ninguém presta homenagem a todos os brasileirinhos e brasileirinhas que não conseguem chegar aos doze anos de vida e caem sob o peso de algum tipo de violência. hoje foi o Samuel, menino de onze anos, que havia trocado a sala de aula pelas ruas, pedia comida, ajuda e brincava. foi atropelado brincando de correr, zombava de morrer. a rua não é o lugar desses brasileirinhos e brasileirinhas, muito menos trabalhar para sobreviver aos onze anos. sei que pros bonitos de gravata o Samuel aparece como mais um número que mostra a nossa incapacidade de criar com alegria as nossas crianças, aparece como mais um número dos acidentes do trânsito, discutem se radar ou lombada. usam essa discussão para se elegerem na política, imagina querem meu voto, bom motorista, boa pessoa, não precisa de lombada ou radar, e se tiver não se incomoda, respeita. quem corre precisa ser multado, merece, e o outro Samuel que ainda sobrevive agradece, ele diz, Muito obrigado. tudo isso é uma merda, tento voltar para minha sala, minha turma, meus colegas, meus sonhos, acho que estou na contramão, tento lembrar de um poema que o professor abá leu e da história triste que carregava versos tão lindos. metida com as lembranças, que chegam de repente a se engraçar e não se vão sem antes o aconchego do silêncio, faço privação de falar, murmuro o poema, ‘Já é mais de uma hora você já deve estar na cama, Na noite corre a via-láctea como um rio de prata, Não me apresso com telegramas urgentes, Não mais tenho por que te acordar te atormentar, Como se diz o incidente está encerrado, A canoa do amor se quebrou na vida cotidiana, Nós estamos quites com você não há por que recordar, As dores as desgraças os erros recíprocos, Veja que silêncio existe sobre o universo, A noite cobriu o céu de tantas estrelas, Em horas como essa a gente se ergue a gente fala, Aos séculos à história ao universo...’ Queria gritar aos cantos do mundo a porcaria que tudo virou, Pessoal, hoje sugiro que escrevamos a palavra ‘acreditar’ no computador e também as coisas, os pensamentos, os sentimentos e as dúvidas que esta palavra provoca em todos nós. esse é homem de fé ingênua

faço um passeio pela sala e vou lendo meus colegas, querendo, bisbilhotando, vou decifrando, um a um. não estou com pressa de ir a qualquer lugar, o professor diz acreditar num mundo melhor, eu me contento com uma escola pelo menos mais reparada, melhorada, menos zangada, mais moleca. preciso acreditar que as pessoas olham e se importam, vou lendo meus amigos e colegas, Eu teio um a migo que mautrata das crianças dele quando a espoza dele sai pratrabalha acredito que ele não ama a crianças dele. acreditar que as palavras não se perdem no vento, acreditar no amor, Eu acrdito gue o natau é um avso de amor. acreditar na construção coletiva de ser eu e nós, Professor, tá bom assim, alguém pergunta, O que vocês acham, sentem-se com a tarefa cumprida, torna a perguntar. não ouço as respostas, estou olhando para minha tela do computador e sinto muita vontade de escrever e reescrever as frases dos meus colegas. vou tentando, acreditar, precisamos acima de tudo de pessoas olhadoras e, se envolvidas, confiar nas palavras que não se perdem ao vento, pois as promessas se tornam verdade. temos carecimento de sentir nos abraços que contemplam o momento, os sonhos que se tornam sem idade, fugir do silêncio sem angústia ou tormento de ansiedade. as palavras necessitam serenidade

somos a argila e a água dos tempos, embalsamados na orgia da vida, buscando encontros, façamos o brinde que nos aproxima, sejas bem-vinda, acreditamos no amor. nossos gestos recolhem e distribuem afetos, que se multiplicam e transformam o meu, o nosso mundo, precisamos continuar esta construção de todos e todas de ser e dizer com orgulho, Eu moro, trabalho, estudo aqui, os meus amores estão aqui, quero minha vida aqui, vamos construir junto o nosso jeito de ser gente com vida, acreditando. ufa, tudo dito e escrito num fôlego só, a viva força do grito, Na morte somos esperança, enquanto na vida nem lembrança, o que adiantam sonhos que não se alcançam, somos a carne que se desmancha, e no meio a dor, grito, sofrimento que não descansa...Adeus, Samuel



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