terça-feira, 21 de novembro de 2017

Gente Pobre - 21. A desgraça é uma doença contagiosa - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


21.




27 de julho


Meu querido Makar Alexeievitch:




A sua carta e os últimos acontecimentos inquietaram-me sobremaneira, tanto mais quanto é certo que, a princípio, não consegui compreender nada. Foi Fédora que me explicou do que se tratava. Porque se desespera tanto e se inquieta por tão pouca coisa, Makar Alexeievitch? As suas explicações só em parte me satisfizeram. Talvez eu não devesse insistir em aceitar aquele emprego tão vantajoso, lembrando-me do que a minha última experiência neste capitulo me proporcionou. 

Diz o senhor que o seu afeto por mim o levou a ocultar-me muitas coisas. Eu não ignorava os grandes sacrifícios que fazia por mim, apesar da sua insistente afirmação de que apenas gastava comigo o supérfluo, aquilo que, de outro modo, seria para pôr de lado. Mas agora que sei que o senhor não dispõe de quaisquer reservas de dinheiro; que foi só condoído pela minha triste situação que começou a gastar, em meu proveito, o seu ordenado, chegando mesmo a pedir adiantamentos; que durante a minha doença se sacrificou ao ponto de vender peças do seu vestuário… ao ter conhecimento de tudo isto, acho-me numa situação deveras crítica, sem saber como interpretar o sucedido, nem que pensar acerca dele. 

Ah, Makar Alexeievitch! O senhor, movido pela compaixão e pelo afeto de parente, devia ter-se limitado a auxiliar-me nas minhas mais prementes necessidades, nunca indo além das suas posses e não fazendo comigo essas despesas supérfluas que constituem um verdadeiro esbanjamento. Atraiçoou a nossa amizade, Makar Alexeievitch; abusou da minha confiança; e agora que me vejo obrigada a ouvir que o senhor gastou até ao último centavo nas ofertas de vestidos, doces e livros e em passeios e teatros que me proporcionou — pago bem caro tudo isso com as censuras que a consciência me dirige —, deploro amargamente a minha imperdoável despreocupação, pois aceitava tudo o que me oferecia sem querer saber da sua vida. Deste modo, tudo o que fez para me dar prazer, converteu-se num peso aniquilador, e o pesar que sinto enegrece a recordação do que noutros tempos foi agradável.

Já tinha notado que ultimamente dava mostras de certo abatimento; mas, embora eu própria, assaltada por pressentimentos, suspeitasse de qualquer coisa, não podia, de modo algum, prever a realidade. Nunca pensei que a sua cabeça regulasse tão mal, Makar Alexeievitch. Que dirão de si todos aqueles que o conhecem? Será possível que o senhor, a quem eu, como de resto toda a gente, estimava tanto pela sua honradez, simplicidade e dignidade, haja contraído um vício tão repugnante e em que, segundo parece, nunca caíra? Se soubesse o que pensei quando Fédora me contou que o haviam encontrado na rua embriagado e que a polícia se vira obrigada a acompanhá-lo a casa! Fiquei deveras surpreendida, se bem que já imaginasse qualquer coisa de extraordinário, em virtude de ter passado quatro dias sem aparecer. Já pensou, Makar Alexeievitch, no que dirão os seus superiores quando souberem do verdadeiro motivo da sua falta ao trabalho? Diz-se que toda a gente se ri à sua custa, que ninguém ignora as nossas relações e que os seus vizinhos me envolvem nos seus comentários trocistas! Não se preocupe com isso, Makar Alexeievitch, e por amor de Deus, tranquilize-se! 


Traz-me também bastante inquieta o incidente que teve com aquele oficial... Ainda não sei bem como as coisas se passaram, pois apenas surpreendi uns rumores acerca do caso. Peço-lhe que me explique no que aquilo veio a dar. 

Diz-me na sua carta que não me contou toda a verdade, com receio de perder o meu afeto; que durante a minha doença, desesperado, vendeu tudo para fazer face às despesas e evitar que me internassem no hospital; e que se viu mesmo obrigado a empenhar-se até mais não, o que lhe valeu ter todos os dias cenas desagradáveis com a patroa. Pois, devo dizer-lhe, o pior que fez foi ocultar-me essas coisas. Pretendia, com o seu silêncio, evitar-me o conhecimento das suas dificuldades, mas agora, pondo-me ao corrente de tudo, causa-me duplo sofrimento. Isto dá cabo de mim, Makar Alexeievitch. A desgraça é uma doença contagiosa, meu amigo! Os pobres e os desgraçados deviam viver longe uns dos outros, para que as suas misérias se não agravassem mutuamente. Reconheço que fui a causadora do seu infortúnio, e este facto aflige-me extraordinariamente e faz-me perder toda a coragem. 

Escreva-me, contando-me com franqueza tudo o que lhe aconteceu e como lhe foi possível deixar-se abater até tal ponto. Tranquilize-me, se puder. Não é por egoísmo que assim falo, mas pelo afeto e pela amizade que lhe tenho, sentimentos que nada será capaz de arrancar do meu coração. 

Adeus, Makar Alexeievitch. Espero com impaciência a sua resposta. Julgou-me mal, meu amigo. Ama-o sinceramente



Bárbara Dobroselof








28 de julho



Minha inestimável Bárbara Alexeievna:




Que lhe hei de dizer, agora que tudo acabou, que tudo, pouco a pouco, está a regressar à normalidade? Sim, agora posso ser sincero consigo. Diz a minha amiguinha que está inquieta com o que se pensa e se diz de mim. Apresso-me, por isso, a comunicar-lhe que na repartição me estimam ainda mais do que dantes. E depois de lhe contar todas as minhas calamidades e infortúnios, posso informá-la de que os meus superiores não tiveram ainda conhecimento de nada disso; continuam todos a ter de mim a mesma opinião favorável. A única coisa que receio são as mexeriquices. Cá em casa a patroa gritava; mas, como, graças aos dez rublos, já lhe paguei parte do meu débito, agora limita-se a rosnar baixinho. Quanto às restantes pessoas, também a coisa não piorou; contanto que não lhes peça dinheiro, todos mostram boa cara. Para terminar as minhas explicações, devo dizer-lhe, querida, que para mim a sua estima vale mais do que tudo o que há no mundo, e que o simples facto de a não ter perdido representa uma consolação no meio das minhas dificuldades presentes. Graças a Deus, o primeiro choque e os primeiros dissabores já lá vão; e a grande bondade da minha boa amiga permite-me acreditar que não fez de mim mau conceito e continua a ter-me na conta de um bom amigo, não me acusando de egoísmo pelo facto de tudo ter feito para a reter na nossa companhia. É que queria-lhe muito e não me sentia com coragem para me separar de si, meu anjo. Agarrei-me novamente, com todo o afinco, ao meu trabalho, esforçando-me por reparar o mal feito, com o cumprimento fiel dos meus deveres burocráticos. Evstafii não me disse nada quando ontem passei ao seu lado. 

Devo dizer-lhe que as minhas dívidas e o mau estado do meu fato me contrariam sobremaneira; mas tudo se há de arranjar e, entretanto, rogo-lhe que não se aflija com insignificâncias. 

Envia-me mais meio rublo, querida Bárbara, e esse meio rublo trespassou-me o coração. Aqui tem, pois, como as coisas são e ao que eu cheguei. Não sou eu, velho imbecil, que a ajudo a si, meu anjo, mas você, pobre órfã, que me auxilia a mim. Fédora é credora da minha gratidão por ter arranjado o dinheiro. Por mim, não sabia aonde recorrer, minha filha; mas tão depressa saiba de alguma possibilidade, lhe comunicarei o que houver. As mexeriquices e só as mexeriquices é que me inquietam! Adeus, meu amor. Beijo-lhe as mãos e peço-lhe encarecidamente que faça por se restabelecer. Por hoje não lhe escrevo mais, porque são horas de ir para o trabalho; quero, à força de zelo e de aplicação, reparar as minhas faltas e tranquilizar, pouco a pouco, a minha consciência. Deixo para logo à noite a descrição mais pormenorizada de tudo o que me tem sucedido, bem como o incidente com os oficiais. 

Seu respeitoso e sincero amigo,



Makar Dievuchkin








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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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