Simone de Beauvoir
16. Fatos e Mitos
: as categorias impotentes para encerrar uma mulher concreta
É claro, por exemplo, que a própria ideia de posse singular só tem sentido possível a partir da condição original do existente. Para que apareça é preciso que haja, primeiramente, no sujeito uma tendência a se afirmar na sua singularidade radical, uma afirmação de sua existência autônoma e separada. Compreende-se que essa pretensão tenha permanecido subjetiva, interior, sem verdade, enquanto o indivíduo não possuía os meios práticos de satisfazê-la objetivamente: sem ferramenta adequada, não percebia, a princípio, seu poder sobre o mundo, sentia-se perdido dentro da Natureza e da coletividade, passivo, ameaçado, joguete de forças obscuras; somente identificando-se com todo o clã é que ousava pensar-se: o totem, o mana, a terra eram realidades coletivas. O que a descoberta do bronze permitiu ao homem foi, mediante a prova de um trabalho duro e produtivo, descobrir-se como criador; dominando a Natureza, não mais a teme e, em face das resistências vencidas, tem a audácia de se encarar como atividade autônoma, de se realizar na sua singularidade (1). Mas essa realização nunca teria ocorrido se o homem não a tivesse originalmente desejado; a lição do trabalho não se inscreveu num sujeito passivo: o sujeito forjou-se a si próprio e se conquistou, forjando seus instrumentos e conquistando
a terra. Por outro lado, a afirmação do sujeito não basta para explicar a propriedade: no desafio, na luta, no duelo singular, cada consciência pode tentar alcançar a soberania. Para que o desafio tenha assumido a forma do potlatch, isto é, de uma rivalidade econômica, para que a partir daí o chefe, em primeiro lugar, e os membros do clã, em seguida, tenham reivindicado bens particulares, é preciso que se encontre no homem outra tendência original. Já dissemos, no capítulo precedente, que o existente só se apreende alienando-se; ele se procura através do mundo sob uma forma exterior e que faz sua. No totem, no mana, no território que ocupa é sua existência alienada que o clã encontra; quando o indivíduo se separa da comunidade, ele reclama uma encarnação singular: o mana individualiza-se no chefe e, em seguida, em cada indivíduo e, ao mesmo tempo, cada um tenta apropriar-se de um pedaço de terra, de instrumentos de trabalho, de colheitas. Nessas riquezas que são suas, é ele próprio que o homem reencontra porque nelas se perdeu; compreende-se, então, que possa atribuir-lhes uma importância tão fundamental quanto à sua própria vida. Então o interesse do homem pela sua propriedade torna-se uma relação inteligível. Mas vê-se bem que não é possível explicá-la unicamente pela ferramenta: é preciso captar toda a atitude do homem armado com a ferramenta, atitude que implica uma infra-estrutura ontológica.
De igual modo é impossível deduzir a opressão da mulher da propriedade privada. Ainda aqui a insuficiência do ponto de vista de Engels é manifesta. Ele compreendeu muito bem que a fraqueza muscular da mulher só se tornou uma inferioridade concreta na sua relação com a ferramenta de bronze e de ferro, mas não viu que os limites de sua capacidade de trabalho não constituíam em si mesmos uma desvantagem concreta senão dentro de dada perspectiva. É porque o homem é transcendência e ambição que projeta novas exigências através de toda nova ferramenta. Quando inventou os instrumentos de bronze não se contentou mais com explorar os jardins; quis arrotear e cultivar vastos campos; não foi do bronze em si que jorrou essa vontade. A incapacidade da mulher acarretou-lhe a ruína porque o homem apreendeu-a através de um projeto de enriquecimento e expansão. E esse projeto não basta ainda para explicar por que ela foi oprimida: a divisão do trabalho por sexo poderia ter sido uma associação amigável. Se a relação original do homem com seus semelhantes fosse exclusivamente uma relação de amizade, não se explicaria nenhum tipo de escravização: esse fenômeno é conseqüência do imperialismo da consciência humana que procura realizar objetivamente sua soberania. Se não houvesse nela a categoria original do Outro, e uma pretensão original ao domínio sobre o Outro, a descoberta da ferramenta de bronze não poderia ter acarretado a opressão da mulher. Engels não explica tampouco o caráter singular dessa opressão. Tentou reduzir a oposição dos sexos a um conflito de classes: fê-lo, aliás, sem grande convicção; a tese não é sustentável. É verdade que a divisão do trabalho por sexo e a opressão que dela resulta evocam, em certos pontos, a divisão por classes, mas não seria possível confundi-las. Não há na cisão entre as classes nenhuma base biológica. No trabalho, o escravo toma consciência de si próprio contra o senhor, o proletariado sempre sentiu sua condição na revolta, voltando dessa maneira ao essencial, constituindo uma ameaça para seus exploradores; e o que ele visa é o desaparecimento como classe. Dissemos, na introdução, quanto a situação da mulher é diferente, em particular por causa da comunidade de vida e interesses que a torna solidária do homem, e por causa da cumplicidade que ele encontra nela. Nenhum desejo de devolução a habita, nem ela poderia suprimir-se enquanto sexo: ela pede somente que certas consequências da especificação sexual sejam abolidas. O que é mais grave ainda é que não se poderia sem má-fé considerar a mulher unicamente uma trabalhadora; tanto quanto sua capacidade produtora, sua função de reprodutora é importante na economia social como na vida individual; há épocas em que ela é mais útil fazendo filhos do que empurrando a charrua. Engels escamoteou o problema; limitou-se a declarar que a comunidade socialista abolirá a família; é uma solução assaz abstrata; sabe-se como a U.R.S.S. teve de mudar frequente e radicalmente sua política familial segundo se equilibravam diferentemente as necessidades imediatas da produção e da repopulação; de resto, suprimir a família não é necessariamente libertar a mulher: o exemplo de Esparta e o do regime nazista provam que, embora diretamente ligada ao Estado, ela pode ser oprimida pelos machos.
16. Fatos e Mitos
Primeira Parte
Destino
CAPITULO III
O PONTO DE VISTA DO MATERIALISMO HISTÓRICO
O PONTO DE VISTA DO MATERIALISMO HISTÓRICO
: as categorias impotentes para encerrar uma mulher concreta
(1) Gaston Buchelard em La terre et les rêveries de la volonté realiza estudo sugestivo do trabalho do ferreiro. Mostra como, pelo malho e a bigorna, o homem afirma-se e separa-se. "O instante do ferreiro é um instante concomitantemente isolado e ampliado; promove o trabalhador ao domínio do tempo pela violência de um instante", pág. 142, e mais adiante: "O ser forjando aceita o desafio do universo erguido contra ele".
a terra. Por outro lado, a afirmação do sujeito não basta para explicar a propriedade: no desafio, na luta, no duelo singular, cada consciência pode tentar alcançar a soberania. Para que o desafio tenha assumido a forma do potlatch, isto é, de uma rivalidade econômica, para que a partir daí o chefe, em primeiro lugar, e os membros do clã, em seguida, tenham reivindicado bens particulares, é preciso que se encontre no homem outra tendência original. Já dissemos, no capítulo precedente, que o existente só se apreende alienando-se; ele se procura através do mundo sob uma forma exterior e que faz sua. No totem, no mana, no território que ocupa é sua existência alienada que o clã encontra; quando o indivíduo se separa da comunidade, ele reclama uma encarnação singular: o mana individualiza-se no chefe e, em seguida, em cada indivíduo e, ao mesmo tempo, cada um tenta apropriar-se de um pedaço de terra, de instrumentos de trabalho, de colheitas. Nessas riquezas que são suas, é ele próprio que o homem reencontra porque nelas se perdeu; compreende-se, então, que possa atribuir-lhes uma importância tão fundamental quanto à sua própria vida. Então o interesse do homem pela sua propriedade torna-se uma relação inteligível. Mas vê-se bem que não é possível explicá-la unicamente pela ferramenta: é preciso captar toda a atitude do homem armado com a ferramenta, atitude que implica uma infra-estrutura ontológica.
De igual modo é impossível deduzir a opressão da mulher da propriedade privada. Ainda aqui a insuficiência do ponto de vista de Engels é manifesta. Ele compreendeu muito bem que a fraqueza muscular da mulher só se tornou uma inferioridade concreta na sua relação com a ferramenta de bronze e de ferro, mas não viu que os limites de sua capacidade de trabalho não constituíam em si mesmos uma desvantagem concreta senão dentro de dada perspectiva. É porque o homem é transcendência e ambição que projeta novas exigências através de toda nova ferramenta. Quando inventou os instrumentos de bronze não se contentou mais com explorar os jardins; quis arrotear e cultivar vastos campos; não foi do bronze em si que jorrou essa vontade. A incapacidade da mulher acarretou-lhe a ruína porque o homem apreendeu-a através de um projeto de enriquecimento e expansão. E esse projeto não basta ainda para explicar por que ela foi oprimida: a divisão do trabalho por sexo poderia ter sido uma associação amigável. Se a relação original do homem com seus semelhantes fosse exclusivamente uma relação de amizade, não se explicaria nenhum tipo de escravização: esse fenômeno é conseqüência do imperialismo da consciência humana que procura realizar objetivamente sua soberania. Se não houvesse nela a categoria original do Outro, e uma pretensão original ao domínio sobre o Outro, a descoberta da ferramenta de bronze não poderia ter acarretado a opressão da mulher. Engels não explica tampouco o caráter singular dessa opressão. Tentou reduzir a oposição dos sexos a um conflito de classes: fê-lo, aliás, sem grande convicção; a tese não é sustentável. É verdade que a divisão do trabalho por sexo e a opressão que dela resulta evocam, em certos pontos, a divisão por classes, mas não seria possível confundi-las. Não há na cisão entre as classes nenhuma base biológica. No trabalho, o escravo toma consciência de si próprio contra o senhor, o proletariado sempre sentiu sua condição na revolta, voltando dessa maneira ao essencial, constituindo uma ameaça para seus exploradores; e o que ele visa é o desaparecimento como classe. Dissemos, na introdução, quanto a situação da mulher é diferente, em particular por causa da comunidade de vida e interesses que a torna solidária do homem, e por causa da cumplicidade que ele encontra nela. Nenhum desejo de devolução a habita, nem ela poderia suprimir-se enquanto sexo: ela pede somente que certas consequências da especificação sexual sejam abolidas. O que é mais grave ainda é que não se poderia sem má-fé considerar a mulher unicamente uma trabalhadora; tanto quanto sua capacidade produtora, sua função de reprodutora é importante na economia social como na vida individual; há épocas em que ela é mais útil fazendo filhos do que empurrando a charrua. Engels escamoteou o problema; limitou-se a declarar que a comunidade socialista abolirá a família; é uma solução assaz abstrata; sabe-se como a U.R.S.S. teve de mudar frequente e radicalmente sua política familial segundo se equilibravam diferentemente as necessidades imediatas da produção e da repopulação; de resto, suprimir a família não é necessariamente libertar a mulher: o exemplo de Esparta e o do regime nazista provam que, embora diretamente ligada ao Estado, ela pode ser oprimida pelos machos.
Uma ética verdadeiramente socialista, que procure a justiça sem suprimir a liberdade, que imponha encargos aos indivíduos mas sem abolir a individualidade, ver-se-á muito embaraçada com os problemas que põe a condição da mulher. É impossível assimilar muito simplesmente a gestação a um trabalho ou a um serviço, como o serviço militar. Viola-se mais profundamente a vida de uma mulher, dela exigindo-se filhos, do que regulamentando as ocupações dos cidadãos: nenhum Estado ousa jamais instituir o coito obrigatório. No ato sexual, na maternidade, a mulher não empenha somente tempo e forças mas ainda valores essenciais. O materialismo racionalista pretende em vão menoscabar esse caráter dramático da sexualidade: não se pode regulamentar o instinto sexual; não é certo que não carregue em si uma recusa à sua satisfação, dizia Freud. O certo é que ele não se deixa integrar no social porque há no erotismo uma revolta do instante contra o tempo, do individual contra o universal. Pretendendo canalizá-lo e explorá-lo, arrisca-se a matá-lo porque não se pode dispor da espontaneidade viva como se dispõe da matéria inerte; e não se pode tampouco forçá-la como se força uma liberdade. Não seria possível obrigar diretamente uma mulher a parir: tudo o que se pode fazer é encerrá-la dentro de situações em que a maternidade é a única saída; a lei ou os costumes impõem-lhe o casamento, proíbem as medidas anticoncepcionais, o aborto e o divórcio. São exatamente essas velhas coações do patriarcado que a U.R.S.S. ressuscitou; reavivou as teorias paternalistas do casamento; e com isso foi levada a pedir novamente à mulher que se torne objeto erótico: um discurso recente convidava as cidadãs soviéticas a cuidarem dos vestidos, a usarem maquilagem, a se mostrarem faceiras para reter seus maridos e incentivar-lhes o desejo. É impossível, vê-se por esse exemplo, encarar a mulher unicamente como força produtora; ela é para o homem uma parceira sexual, uma reprodutora, um objeto erótico, um Outro através do qual ele se busca a si próprio.
Os regimes totalitários ou autoritários podem, de comum acordo, proibir a psicanálise e declarar que para os cidadãos lealmente integrados na coletividade os dramas individuais não existem: o erotismo é uma experiência em que a generalidade é sempre empolgada por uma individualidade. E para um socialismo democrático em que as classes seriam abolidas mas não os indivíduos, a questão do destino individual conservaria toda a sua importância: a diferenciação sexual igualmente. A relação sexual que une a mulher ao homem não é a mesma que ele mantém com ela; o laço que a prende ao filho é irredutível. Ela não foi criada unicamente pela ferramenta de bronze: a máquina não basta para a abolir. Reivindicar para ela todos os direitos, todas as possibilidades do ser humano em geral não significa que se deva deixar de enxergar sua situação singular. E para conhecê-la é preciso ir além do materialismo histórico que só vê no homem e na mulher entidades econômicas.
Assim recusamos pela mesma razão o monismo sexual de Freud e o monismo econômico de Engel. Um psicanalista interpretará todas as reivindicações sociais da mulher como um fenômeno de "protesto viril". Ao contrário, para o marxista, sua sexualidade não faz senão exprimir por desvios mais ou menos complexos sua situação econômica; mas as categorias "clitoridiana" ou "vaginal", tal qual as categorias "burguesa" ou "proletária", são igualmente impotentes para encerrar uma mulher concreta. Por baixo dos dramas individuais como da história econômica da humanidade, há uma infra-estrutura existencial que permite, somente ela, compreender em sua unidade essa forma singular que é uma vida. O valor do freudismo provém do fato de o existente ser um corpo. A maneira pela qual se sente como corpo diante de outros corpos traduz concretamente sua situação existencial. Do mesmo modo, o que é verdadeiro na tese marxista é que as pretensões ontológicas do existente assumem uma forma concreta segundo as possibilidades materiais que se lhe oferecem, e em particular as que lhes proporcionam as técnicas. Não integradas, porém, na totalidade da realidade humana, a sexualidade, a técnica não poderiam nada explicar. Eis por que em Freud as proibições impostas pelo superego e os impulsos do ego se apresentam como fatos contingentes. E na exposição de Engels sobre a história da família os acontecimentos mais importantes parecem surgir inopinadamente segundo os caprichos de um misterioso acaso. Para descobrir a mulher não recusaremos certas contribuições da biologia, da psicanálise, do materialismo histórico, mas consideraremos que o corpo, a vida sexual, as técnicas só existem concretamente para o homem na medida em que os apreende dentro da perspectiva global de sua existência. O valor da força muscular, do falo, da ferramenta só se poderia definir num mundo de valores: é comandado pelo projeto fundamental do existente transcendendo-se para o ser.
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O SEGUNDO SEXO
4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.
No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.
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Leia também:
O Segundo Sexo - 12. Fatos e Mitos: a mulher é uma fêmea na medida em que se sente fêmea
O Segundo Sexo - 13. Fatos e Mitos: quando a observação descobre tantas anomalias quantos casos normais
O Segundo Sexo - 14. Fatos e Mitos: o próprio Freud admite que o prestígio do pênis explica-se pela soberania do pai
O Segundo Sexo - 15. Fatos e Mitos: A humanidade não é uma espécie animal: é uma realidade histórica
O Segundo Sexo - 17. Fatos e Mitos: Temos aqui a chave de todo o mistério
O Segundo Sexo - 1 Fatos e Mitos: que é uma mulher?
Os regimes totalitários ou autoritários podem, de comum acordo, proibir a psicanálise e declarar que para os cidadãos lealmente integrados na coletividade os dramas individuais não existem: o erotismo é uma experiência em que a generalidade é sempre empolgada por uma individualidade. E para um socialismo democrático em que as classes seriam abolidas mas não os indivíduos, a questão do destino individual conservaria toda a sua importância: a diferenciação sexual igualmente. A relação sexual que une a mulher ao homem não é a mesma que ele mantém com ela; o laço que a prende ao filho é irredutível. Ela não foi criada unicamente pela ferramenta de bronze: a máquina não basta para a abolir. Reivindicar para ela todos os direitos, todas as possibilidades do ser humano em geral não significa que se deva deixar de enxergar sua situação singular. E para conhecê-la é preciso ir além do materialismo histórico que só vê no homem e na mulher entidades econômicas.
Assim recusamos pela mesma razão o monismo sexual de Freud e o monismo econômico de Engel. Um psicanalista interpretará todas as reivindicações sociais da mulher como um fenômeno de "protesto viril". Ao contrário, para o marxista, sua sexualidade não faz senão exprimir por desvios mais ou menos complexos sua situação econômica; mas as categorias "clitoridiana" ou "vaginal", tal qual as categorias "burguesa" ou "proletária", são igualmente impotentes para encerrar uma mulher concreta. Por baixo dos dramas individuais como da história econômica da humanidade, há uma infra-estrutura existencial que permite, somente ela, compreender em sua unidade essa forma singular que é uma vida. O valor do freudismo provém do fato de o existente ser um corpo. A maneira pela qual se sente como corpo diante de outros corpos traduz concretamente sua situação existencial. Do mesmo modo, o que é verdadeiro na tese marxista é que as pretensões ontológicas do existente assumem uma forma concreta segundo as possibilidades materiais que se lhe oferecem, e em particular as que lhes proporcionam as técnicas. Não integradas, porém, na totalidade da realidade humana, a sexualidade, a técnica não poderiam nada explicar. Eis por que em Freud as proibições impostas pelo superego e os impulsos do ego se apresentam como fatos contingentes. E na exposição de Engels sobre a história da família os acontecimentos mais importantes parecem surgir inopinadamente segundo os caprichos de um misterioso acaso. Para descobrir a mulher não recusaremos certas contribuições da biologia, da psicanálise, do materialismo histórico, mas consideraremos que o corpo, a vida sexual, as técnicas só existem concretamente para o homem na medida em que os apreende dentro da perspectiva global de sua existência. O valor da força muscular, do falo, da ferramenta só se poderia definir num mundo de valores: é comandado pelo projeto fundamental do existente transcendendo-se para o ser.
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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR
Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.
Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.
Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.
4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.
No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.
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Leia também:
O Segundo Sexo - 12. Fatos e Mitos: a mulher é uma fêmea na medida em que se sente fêmea
O Segundo Sexo - 13. Fatos e Mitos: quando a observação descobre tantas anomalias quantos casos normais
O Segundo Sexo - 14. Fatos e Mitos: o próprio Freud admite que o prestígio do pênis explica-se pela soberania do pai
O Segundo Sexo - 15. Fatos e Mitos: A humanidade não é uma espécie animal: é uma realidade histórica
O Segundo Sexo - 17. Fatos e Mitos: Temos aqui a chave de todo o mistério
O Segundo Sexo - 1 Fatos e Mitos: que é uma mulher?
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