quarta-feira, 15 de novembro de 2017

39. O Livro dos Abraços - Crônica da cidade de Manágua - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


39. O Livro dos Abraços




Crônica da cidade de Manágua

O comandante Tomás Borge me convidou para jantar. Eu não o conhecia. Tinha fama de ser o mais duro de todos, o mais temido. Havia mais gente no jantar, gente linda; ele falou pouco ou nada. Ficou me olhando, ficou me medindo. 

Na segunda vez, jantamos sozinhos. Tomás estava mais aberto: respondeu muito solto minhas perguntas sobre os velhos tempos da fundação da Frente Sandinista. E à meia-noite, como quem não quer nada, me disse: 

Agora, conta um filme para mim. 

Eu me defendi. Expliquei que morava em Calella, uma cidadezinha, onde o cinema quase não chegava, só filmes velhos... 

Conta — insistiu, ordenou —. Qualquer filme, qualquer um, mesmo que seja velho

Então contei uma comédia. Contei, atuei; tentei resumir, mas ele exigia detalhes. Quando terminei: 

Agora, outro

Contei um de gângster, que acabava mal. 

Outro

Contei um de cowboys. 

Outro

Contei, inventando de cabo a rabo, um de amor. 

Acho que estava amanhecendo quando me dei por vencido, supliquei clemência e fui dormir. 

Encontrei-o uma semana depois. Tomás pediu desculpas: 

Espremi você, naquela noite. É que eu gosto muito de cinema, gosto loucamente, e nunca posso ir

Disse que qualquer um podia entender. Ele era ministro de Interior da Nicarágua, em plena guerra; o inimigo não dava trégua e não havia tempo para luxos como ir ao cinema. 

Não, não — me corrigiu —. Tempo, tenho. Tempo... a gente sempre consegue, quando quer. Não é uma questão de tempo. Antes, quando eu estava clandestino, disfarçado, dava um jeito para ir ao cinema. Mas agora... 

Não perguntei. Houve um silêncio, ele continuou: 

Não posso ir ao cinema porque... porque no cinema, eu choro.

Ah!-- disse —. Eu também

Claro — respondeu —. Percebi na hora. Na primeira vez que vi você, pensei: "Esse é dos que choram no cinema"





O desafio


Não conseguiram nos transformar em eles — escreveu-me Cacho El Kadri. Eram os últimos tempos das ditaduras militares na Argentina e no Uruguai. Tínhamos comido medo no café da manhã, medo no almoço e no jantar, medo; mas não tinham conseguido nos transformar em eles.





Celebração da coragem/1

Gabriel Caro, colombiano, que lutou na Nicarágua, conta que ao lado dele caiu um suíço, destroçado por uma rajada de metralhadora; e ninguém sabia como era o nome do suíço. Aconteceu na Frente Sul, um par de noites ao norte do rio San Juan, pouco antes da derrota da ditadura de Somoza. Ninguém sabia o seu nome, ninguém sabia nada daquele calado miliciano louro que tinha ido tão longe para morrer na Nicarágua, pela revolução, pela lua. O suíço caiu gritando uma coisa que ninguém entendeu, caiu gritando: — Viva Bakunin! 


E enquanto ouço Gabriel contando a história do suíço, minha memória se acende. Há anos, em Montevidéu, Carlos Bonavita me falou de um tio dele, ou tio-avô, que redigia os relatos de batalha nos tempos das guerras gaúchas nas pradarias do Uruguai. Andava aquele tio ou tio-avô contando mortos na beira do rio onde uma batalha, não sei qual, tinha acontecido. Pela cor das fitas que os soldados usavam nos cabelos, reconhecia os grupos. Estava fazendo isso quando viu um cadáver e ficou paralisado. Era um soldado de poucos anos, era um anjo de olhos tristes. Sobre os cabelos negros, vermelhos de sangue, a fita branca dizia- Pela pátria e por ela. A bala tinha entrado na palavra ela.





Celebração da coragem/2

Perguntei a ele se tinha visto algum fuzilamento. Sim, tinha visto. Chino Heras tinha visto um coronel ser fuzilado, no final de 1960, no quartel de La Cabana. A ditadura de Batista tinha muitos carrascos, coisa ruim a serviço da dor e da morte; e aquele coronel era um dos muitos, um dos piores. 

Estávamos em meu quarto, numa roda de amigos, em um hotel de Havana. Chino contou que o coronel não tinha querido que vendassem os seus olhos, e sua última vontade não fora um cigarro: o coronel pediu que o deixassem comandar seu próprio fuzilamento. 

O coronel gritou: Preparar! e gritou: Apontar! Quando ia gritar: Fogo!, o fuzil de um dos soldados travou. Então o coronel interrompeu a cerimônia. 

Calma — disse para a fila dupla de homens que deviam matá-lo. Eles estavam tão próximos que quase podia tocá-los. 

Calma — disse —. Não fiquem nervosos

E novamente mandou preparar armas, e mandou apontar, e quando estava tudo em ordem, mandou disparar. E caiu. 

Chino contou esta morte do coronel, e ficamos calados. Éramos vários naquele quarto, e todos nos calamos. 

Esticada feito uma gata sobre a cama, havia uma moça de vestido vermelho. Não recordo seu nome. Recordo suas pernas. Ela tampouco disse nada. 

Passaram-se duas ou três garrafas de rum e no fim, todo mundo foi dormir. Ela também. Antes de ir embora, da porta entreaberta, olhou para o Chino, sorriu e agradeceu: 

Obrigada — disse — Eu não conhecia os detalhes. Obrigada por ter me contado

Depois soubemos que o coronel era pai da moça. 

Uma morte digna é sempre uma boa história para se contar, mesmo que seja a morte digna de um filho da puta. Mas eu quis escrevê-la, e não consegui. Passou o tempo e esqueci. 

Da moça, nunca mais ouvi falar.





Celebração da coragem/3

Sérgio Vuskovic me conta os últimos dias de José Tohá. — Suicidou-se — disse o general Pinochet —. O governo não pode garantir a imortalidade de ninguém — escreveu um jornalista da imprensa oficial. 

Estava magro por causa dos nervos — declarou o general Leigh. 

Os generais chilenos odiavam-no. Tohá tinha sido ministro da Defesa no governo Allende, e conhecia os seus segredos. 

Estava num campo de concentração, na ilha de Dawson, ao sul do sul. 

Os prisioneiros estavam condenados a trabalhos forçados. Debaixo da chuva, metidos no barro ou na neve, os prisioneiros carregavam pedras, erguiam muros, colocavam encanamentos, pregavam postes e estendiam cercas de arame farpado. 

Tohá, que tinha um metro e noventa de altura, estava pesando cinquenta quilos. Nos interrogatórios, desmaiava. Era interrogado sentado numa cadeira, com os olhos vendados. Quando despertava, não tinha forças para falar, mas sussurrava: 

Escute, oficial. Sussurrava: 

Viva os pobres do mundo

Estava há algum tempo tombado na barraca, quando um dia levantou-se. Foi o último dia em que se levantou. 

Fazia muito frio, como sempre, mas havia sol. Alguém conseguiu café bem quente para ele e o negro Jorquera assoviou para ele um tango de Gardel, um daqueles velhos tangos dos quais ele tanto gostava. 

As pernas tremiam, e a cada passo os joelhos se dobravam, mas Tohá dançou aquele tango. Dançou-o com uma vassoura, magra como ele, ele e a vassoura, ele encostando o cabo da vassoura em sua cara de fidalgo cavalheiro, os olhinhos fechados, até que numa volta caiu ao chão e já não conseguiu mais levantar. Nunca mais foi visto.





Celebração da coragem/4

A direita mesquinha e a esquerda puritana dedicam boa parte de seus fervores discutindo se Salvador Allende suicidou-se ou não. 

Allende tinha anunciado que não sairia vivo do palácio presidencial. Na América Latina, é tradição: todos dizem a mesma coisa. Depois, na hora do golpe de Estado, correm para o primeiro avião. 

Tinham-se passado muitas horas de bombas e fogo e Allende continuava combatendo entre os escombros. Então chamou seus colaboradores mais íntimos, que resistiam com ele, e disse: 

Desçam, que eu já vou

Eles acreditaram e foram embora, e Allende ficou sozinho no palácio em chamas. 

Que importa de quem foi o dedo que disparou a bala final?





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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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37. O Livro dos Abraços - Fuga - Eduardo Galeano

38. O Livro dos Abraços - Profissão de fé - Eduardo Galeano

40. O Livro dos Abraços - Um músculo secreto - Eduardo Galeano
1.O Livro dos Abraços - O mundo - Eduardo Galeano




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