sexta-feira, 2 de março de 2018

23.O Estrangeiro: Tinha os olhos cheios de lágrimas - Albert Camus

Albert Camus


SEGUNDA PARTE


Capítulo 5


23. 



  MAS POUCO DEPOIS levantou bruscamente a cabeça e olhou-me de frente: "Porque recusa as minhas visitas?" Respondi que não tinha fé. Quis saber se tinha a certeza e eu respondi que não valia a pena fazer-me essa pergunta. Deixou-se cair para trás e encostou-se à parede, as mãos postas em cima das coxas. Quase sem ter o ar de me falar, observou que às vezes nos julgávamos certos de alguma coisa quando, na realidade, não tínhamos certeza nenhuma. Eu não dizia nada. Olhou-me e interrogou-me: "Qual é a sua opinião a este respeito?" Repliquei que era possível. Em todo o caso, eu não estava talvez certo do que realmente me interessava, mas estava certo do que não me interessava. E justamente, este assunto era dos que não me interessavam. Afastou os olhos e, sempre sem mudar de posição, perguntou-me se eu não falava assim por excesso de desespero. Expliquei-lhe que não me sentia desesperado. Tinha apenas medo, como era natural. "Deus o ajudará, afirmou então. Todos os que conheci no seu caso se voltavam para ele". Reconheci que estavam no seu direito. Isso provava também que tinham tempo. Quanto a mim, que ninguém me ajudasse e justamente faltava-me tempo para me interessar pelo que não me interessava.

Neste momento, esboçou com as mãos um gesto de irritação, mas levantou-se e arranjou as pregas da sotaina. Quando acabou, dirigiu-me a palavra. tratando-me por "meu amigo": se me falava desta forma, não era por eu ser um condenado à morte, na sua opinião, todos nós éramos condenados à morte. Mas eu interrompi-o, dizendo que não era a mesma coisa e que, de qualquer modo, não me consolava com isso. "Decerto, aprovou ele. Mas se não morrer agora, morrerá mais tarde: Voltará a pôr-se o mesmo problema. Como irá abordar a terrível prova?" Respondi que a abordaria exatamente como agora. Ouvindo isto levantou-se e fitou-me nos olhos: Era uma experiência que eu bem conhecia. Realizava-a muitas vezes com Manuel ou com Celeste e, em geral, eram eles quem desviavam os olhos. Percebi logo que o capelão também a conhecia perfeitamente: o olhar não lhe tremia. E a voz também não lhe tremia, quando disse:

"Não tem então nenhuma esperança e consegue viver com o pensamento de que vai morrer inteiramente?" "Sim", respondi eu. Baixou então a cabeça e voltou a sentar-se. Disse que me lamentava. Achava que tal atitude era impossível de suportar. Quanto a mim, começava a estar cansado. Desviei-me por minha vez e fui pôr-me debaixo da claraboia. Estava encostado à parede. Sem o seguir com muita atenção, percebi que recomeçava a interrogar-me. Falava com uma voz inquieta e apressada. Compreendi que estava emocionado e escutei-o melhor.


Dizia-me ter a certeza de que o meu recurso seria aceito, mas que levava aos ombros o peso de um pecado de que devia desembaraçar-me. Na opinião dele, a justiça dos homens não era nada e a justiça de Deus era tudo. Observei que fora a primeira que me condenara. Respondeu-me que ela nem por isso me lavara do meu pecado. Disse-lhe então que não sabia muito bem o que era um pecado. Tinham-me apenas dito que era culpado. Se estava culpado, ia pagá-lo e nada mais me podiam pedir. Neste momento levantou-se e eu pensei que, nesta cela tão estreita, se quisesse mover-se, não tinha por onde escolher: Só podia era sentar-se.

Eu olhava para o chão. O padre deu um passo para mim e deteve-se, como se não ousasse avançar: Olhava o céu através das grades. "Está enganado, meu filho, disse ele, poderiam pedir-lhe ainda mais. E talvez lhe peçam.


- Mas o quê?

- Poderiam pedir-lhe para ver.

- Ver o quê?"

O padre olhou em sua volta e respondeu, com uma voz subitamente muito fatigada:

"Sei que todas estas pedras suam dor. Mas, no fundo do coração, sei também que os mais miseráveis de vós viram sair da obscuridade uma face divina. É esta face que lhe pedem para ver".

Animei-me um pouco. Disse-lhe que olhava estas paredes há
meses e meses. Não havia nada no mundo que eu conhecesse melhor. Talvez, de fato, há muito tempo, eu houvesse procurado nelas uma face. Mas essa face tinha a cor do céu e a chama do desejo: era a de Maria. Procurara-a em vão. Agora, acabara-se. E, em qualquer caso, nunca vira esse suor surgir da pedra.


O capelão olhou-me com uma espécie de tristeza. Eu estava agora completamente encostado à parede. O dia escorria-me pela testa. Disse algumas palavras que não percebi e pediu-me, muito depressa, se podia abraçar-me: "Não", respondi. Voltou-se de costas e dirigiu-se para a parede, sobre a qual passou lentamente a mão. "Gosta assim tanto desta terra?" Não respondi nada.

Deixou-se ficar voltado muito tempo. A sua presença pesava-me e irritava-me. Ia dizer-lhe para se ir embora, quando, virando-se para mim, exclamou de repente: "Não, não posso acreditá-lo. Tenho a certeza de que já lhe aconteceu desejar uma outra vida". Respondi-lhe que com certeza, mas isso era o mesmo do que desejar ser rico, nadar muito depressa ou ter uma boca mais bem feita. Era da mesma ordem. Mas ele deteve-me e quis saber como imaginava eu essa outra vida. Repliquei: "Uma vida onde me pudesse lembrar desta vida,". E disse-lhe que já bastava. Queria continuar a falar destas coisas, mas eu avancei para ele e expliquei-lhe pela última vez que já não tinha muito tempo à minha frente. Não queria perdê-lo com discussões. Tentou mudar de assunto, perguntando-me por que motivo eu o tratava por "senhor", e não por "meu pai". Isto enervou-me e respondi que ele não era meu pai: e estava do lado dos outros.

"Não, meu filho, disse ele pondo-me a mão no ombro. Estou ao seu lado, mas não o pode saber, porque o seu coração está cego. Rezarei por si". Então, não sei porquê, qualquer coisa rebentou dentro de mim. Pus-me a gritar em altos berros e insultei-o e disse-Lhe para não rezar e que, mesmo que houvesse um Inferno não me importava, pois era melhor ser queimado no fogo do que desaparecer. Agarrara-o pela gola da sotaina. Atirava para cima dele todo o fundo do meu coração com impulsos de alegria e de cólera. Tinha um ar tão confiante, não tinha? Mas nenhuma das suas certezas valia um cabelo de mulher. Nem sequer tinha a certeza de estar vivo, já que vivia como um morto. Eu, parecia ter as mãos vazias. Mas estava certo de mim mesmo, certo de tudo, mais certo do que ele, certo da minha vida e desta morte que se aproximava. Sim, não sabia mais nada do que isto. Mas ao menos segurava esta verdade, tanto como esta verdade me segurava a mim. Tinha tido razão, tinha ainda razão, teria sempre razão. Vivera de uma dada maneira e poderia ter vivido de outra dada maneira. Fizera isto e não fizera aquilo. Não fizera uma coisa e fizera outra. E depois? Era como se durante este tempo todo tivesse estado à espera deste minuto... e dessa madrugada em que seria justificado. Nada, nada tinha importância e eu sabia bem porquê.

Também ele, sabia porquê. Do fundo do meu futuro, durante toda esta vida absurda que eu levara, subira até mim através dos anos que ainda não tinham chegado, um sopro obscuro, e esse sopro igualava na sua passagem tudo o que me propunham nos anos, não mais reais, em que eu vivia. Que me importava a morte dos outros, o amor de uma mãe, que me importava o seu Deus, as vidas que se escolhem, os destinos que se elegem já que um só destino podia eleger-me a mim próprio e, comigo, milhares de privilegiados que, diziam como ele, ser meus irmãos? Compreendia, compreendia o que eu queria dizer? Toda a gente era privilegiada. Só havia privilegiados. Também os outros seriam um dia condenados. Também ele seria um dia condenado. Que importava se, acusado de um crime, era executado por não ter chorado no enterro da minha mãe? O cão de Salamano valia tanto como a mulher dele. A mulher autômato era tão culpada como a Parisiense que não se casara ou como Maria, que queria que eu casasse com ela. Que importava que fosse meu amigo, ao mesmo título que Celeste,-:: valia mais do que ele? Que importava que oferecesse hoje a sua boca a um novo Meursault? Compreendia, compreendia ele este condenado? E que do fundo do meu futuro... quase atabafava, ao gritar estas coisas. Mas já me arrancavam o padre das mãos, já os guardas me ameaçavam. Foi ele, no entanto, quem os acalmou. Olhou-me uns instantes em silêncio. Tinha os olhos cheios de lágrimas. Voltou-se e foi-se embora.

Sentia-me agora outra vez calmo. Estava estafado e deixei-me cair sobre a cama. Julgo que dormi, pois acordei com estrelas por sobre a minha cabeça. Subiam até mim ruídos do campo.
Cheiros da noite da terra e do sol refrescavam-me as fontes. A paz maravilhosa deste verão adormecido entrava em mim como uma maré. Neste momento, e no limite da noite, soaram apitos. Anunciavam possivelmente partidas para um mundo que me era para sempre indiferente. Pela primeira vez, há muito tempo, pensei na minha mãe. Julguei ter compreendido porque é que, no fim de uma vida, arranjara um "noivo", porque é que fingira recomeçar. Também lá, em redor desse asilo onde as vidas se apagavam, a noite era como uma treva melancólica. Tão perto da morte, a minha mãe deve ter-se sentido libertada e pronta a tudo reviver. Ninguém, ninguém tinha o direito de chorar sobre ela. Também eu me sinto pronto a tudo reviver. Como se esta grande cólera me tivesse limpo do mal, esvaziado da esperança, diante desta noite carregada de sinais e de estrelas, eu abria-me pela primeira vez à terna indiferença do mundo. Por o sentir tão parecido comigo, tão fraternal, senti que fora feliz e que ainda o era. Para que tudo ficasse consumado, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muito público no dia da minha execução e que os espectadores me recebessem com gritos de ódio.





Fim...


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A Constatação do Absurdo

Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.


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Camus, Albert, 1913-1960.
              O Estrangeiro
Título Original L'Étranger
Tradução de António Quadros
Edição Livros do Brasil
Lisboa
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