quarta-feira, 28 de março de 2018

Edgar Allan Poe - Contos: A Entrevista

Edgar Allan Poe - Contos



A Entrevista
Título original: The Visionary
Publicado em 1834





Ser misterioso e prometido à desgraça, enturvado pelo deslumbramento da imaginação, tu ardeste nas chamas da tua própria juventude! A minha memória evoca a tua imagem; levantas-te ainda uma vez diante de mim, não, ai! como ora dormes na sombria e gélida vala do sepulcro, mas como deveras ser, desperdiçando uma vida de esplêndidos devaneios numa cidade de vaporosas visões, na tua amada Veneza, nesse paraíso marítimo, cujas largas sacadas relanceiam com um sentimento profundo e amargo os mistérios das ondas silenciosas. Sim, tal como deveras ser.

Decerto, existem mundos além dos que pisamos, outros pensamentos diferentes dos da multidão, outros sonhos que não os sonhos dos sofistas.

Quem, hoje, exprobará a tua vida? Quem ousará vituperar as tuas horas de alucinação, ou arguir de esbanjamento de vida aquelas loucuras, em que desbaratavas a exuberância da tua indómita energia?

Foi em Veneza, sob a galeria coberta, que chamam Ponte dei Sospiri que eu o encontrei pela terceira ou quarta vez. Apenas retenho uma reminiscência confusa das circunstâncias deste encontro... Mas como as recordo eu! Como poderia esquecê-las?

A escuridão profunda, a ponte dos Suspiros, a beleza das mulheres, e o génio das aventuras indo e vindo ao longo do estreito canal!

A noite escurecia de uma maneira estranha; o grande relógio da Piazza martelara a quinta hora da noite italiana. A praça Campanile estava deserta e muda; as luzes do velho palácio apagavam-se uma por uma.

Vindo da Piazzeta, entrava em minha casa pelo Grande Canal; mas, no momento em que a gôndola defrontava com a abertura do canal San Marco, uma voz de mulher vibrou subitamente no sossego da noite, perturbando-o com um grito selvagem, histérico, prolongado. Ergui-me de um pulo, aterrado por este grito fúnebre, enquanto o meu gondoleiro largava o seu único remo, que foi perder-se na treva das águas.

Forçoso nos foi então abandonarmo-nos à corrente que segue do pequeno para o grande canal. Lembrando um gigante condor de plumagem de ébano, a gôndola cortava lentamente sob a ponte dos Suspiros, quando uma multidão de archotes, flamejando na fachada e escadarias do palácio ducal veio de súbito fundir o escuro num clarão lívido e quase sobrenatural.

— Uma criança resvalando dos braços de sua mãe vinha de precipitar-se, de uma das janelas superiores do alto edifício, no sombrio e profundo canal. A onda pérfida fechara-se tranquilamente sobre a vítima.

Ainda que a minha gôndola fosse a única à vista, mais de um robusto nadador lutava já contra a corrente, procurando debalde ao lume de água o tesouro que só arrancariam do fundo do abismo. Sob as amplas lápides de mármore negro forrando a entrada do palácio, alguns degraus acima do nível das águas, destacava-se em pé uma mulher cuja sedução recorda ainda quem uma vez a viu. Era a marquesa Afrodite, a adoração de Veneza, a mais alegre das loucas filhas do Adriático, a mais bela, sob este céu onde todas enfeitiçam, a moça esposa do velho libertino Mentoni, a mãe da formosa criança (sua primeira e única esperança) que, sepulta nesta água túrbida, cisma angustiosamente nas doces carícias maternais, e exaure sua débil existência em baldados esforços para invocar o nome querido.

Está só em meio de grupos formados à entrada do palácio. Seus pequenos pés nus alvejando refletem-se no espelho de mármore escuro da escadaria. Seus cabelos meio desalinhados pela noite ao sair de algum baile, e onde relumbra ainda um chuveiro de diamantes, enrolam e torcem-se em torno da clássica cabeça em ondulações de um negro azulado que lembra os reflexos do jacinto.

Umas roupas brancas como a neve, aéreas como a gaze, parecem só cobrir seu corpo delicado; mas nem um sopro anima o pesado ambiente desta abafada noite de estio, nem agita as pregas da sua roupagem vaporosa, que descai em torno de si, como o vestido de mármore da Niobé antiga.

Todavia — fascinação estranha! — os grandes olhos luminosos da marquesa não descem sobre o túmulo que lhe tragara a mais querida esperança; fitam-se seguindo direção absolutamente oposta. É decerto o velho castelo da república, um dos mais notáveis monumentos de Veneza; mas como pode a nobre dama contemplá-lo assim, obstinadamente, se abaixo dela estrebucha seu filho nas ânsias da asfixia? Esta sombria voragem rasga-se exatamente em face da janela da sua câmara: que pode logo avistar ela na arquitetura, nas antigas cornijas, forradas de hera, dessa cavidade, que a não tenha por milhares de vezes absorvido? Ai! por ventura não sabemos, que, em semelhantes momentos, a vista, semelhante a um espelho quebrado, multiplica as imagens da dor e contempla em paragens longínquas a causa de uma angústia presente?

A uma dezena de degraus, abaixo da marquesa, e sob a abóboda do pórtico, logo se depara o velho sátiro de Mentoni. Trajando de baile, segura na mão uma guitarra, de que arranca a intervalos algumas notas, e parece aborrecer-se até à morte, em quanto expede de tempo em tempo ordens aos que se esforçam por salvar-lhe o filho.

Ainda não recobrado da surpresa, mantinha-me sempre de pé na popa da minha barca, e devera ostentar aos olhos dos grupos agitados uns ares de espectro, de uma aparição de mau agouro, quando pálido e imóvel perpassei ante eles na minha gôndola funerária.

Baldaram-se todas as tentativas. Os mais enérgicos mergulhadores afrouxavam de seus esforços e abandonavam-se a um tremendo desalento. Bruxuleavam tenuíssimas esperanças de salvar a criança... (e a mãe, quem a salvará?...) Mas eis que de súbito se alevanta dentre a sombra do castelo, defrontando as janelas da marquesa e pegado à velha prisão republicana, um homem envolto num manto, que depois de se haver entremostrado um momento ao clarão dos archotes, à beira vertiginosa da descida, se precipita rápido nas águas do canal.

Alguns minutos ainda, e vê-los-emos já no estrado de mármore ao pé da marquesa; — sobraça a criança que respirava ainda.

Então o manto do estrangeiro todo encharcado de água solta-se do broche e cai-lhe aos pés, mostrando aos espectadores surpresos o vulto gracioso do mancebo, cujo nome era todavia já célebre na maioria das regiões da Europa.

— Nem uma só palavra lhe rompe dos lábios.

E a marquesa? Vai de certo tomar o filho nos braços, contra o seio, abraçar-lhe o pequeno corpo, matá-lo com beijos e carícias?

Ilusão. Estranhos braços acolheram a preciosa carga e a arrebatam para o interior do palácio sem o menor reparo da mãe.

Olhai-a; vede estremecer-lhe os lábios, seus lábios e os olhos adoráveis; apinharem-se-lhe lágrimas naqueles, olhos tão «doces e quase líquidos» como o canto de Plínio. Sim, verdadeiras lágrimas aquelas. A mulher agita-se em tremor dos pés até à fronte; respira enfim a estátua! O palor deste rosto de mármore, o arfar deste peito de mármore, até ao alvejar do seu pé de mármore, tudo se anima por encanto sob a onda de rubor involuntário. Um leve frémito perpassa seu delicado corpo, semelhante a esses lírios de prata, que os brandos sopros do clima napolitano agitam no meio das colinas.

— Porque assim corou a dama? Sem resposta ficará o problema. Talvez reparasse ela, que na precipitação do terror materno, lhe esquecera, deixando o seu boudoir, prender os pés gentis nos seus moles pantufos e cobrir suas espáduas venezianas nas roupas que deviam recatá-las. Que outro motivo poderia incendiar aquele rosto, desvairar-lhe os olhos súplices, originar as palpitações desusuais do seu seio túmido, a pressão convulsa da sua mão, que topa por acaso a do moço estrangeiro, enquanto o velho Mentoni se retira indolentemente do vestíbulo de seu palácio? Como explicar doutro modo o tom quase surdo — apenas me chegava aos ouvidos o acento das palavras — de exclamação incompreensível, que a nobre dama deixa fugir, em vez de agradecer ao salvador de seu filho?

— «Venceste, murmura (a menos que o soldo das águas me não embargasse o ouvir) — tu venceste! — Uma hora depois do erguer do sol serei na entrevista contigo. Seja!»

Serenara-se o tumulto. As luzes amorteciam-se nas janelas do palácio ducal. Só o estrangeiro, que eu acabava de reconhecer, permanecia imóvel, no patamar. Sacudido por uma agitação inconcebível, ele tremia, vagueando em torno de si os olhos em procura de uma barca; pus a minha à sua disposição, e foi aceite a oferta. Tendo o meu barqueiro conseguido alcançar outro remo no ancoradouro das gôndolas, seguimos ambos para a morada do mancebo, que em pouco retomou todo o seu sangue frio, falando com aparente cordialidade das nossas relações passadas.

Há carateres que me apraz descrever minuciosamente. O desconhecido — seja-me lícito designar assim um homem cuja existência mal se penetrava — é um desses carateres.

Sua estatura era um pouco somenos da média, se bem que nos estos da paixão, parecia literalmente dilatar-se, infligindo assim um desmentido à realidade. A simetria esbelta, quase direi a delicada simetria de sua figura, acusava mais aquela atividade, que acabava de provar galhardamente, do que a força hercúlea, que muitos lhe viram desenvolver em conjeturas muito mais arriscadas.

Com a boca e barba de um antigo Deus, grandes olhos estranhos, selvagens, de um brilho húmido, cujos reflexos cambiavam entre o pardo da avelã e o negro de azeviche, possuía feições de uma regularidade tão primorosamente clássica, como o busto do imperador Comodo. Todavia era uma destas fisionomias, como todos encontramos numa época qualquer da vida para nunca mais a avistarmos; carecia daquela expressão estereotipada, ou dominante, que obriga a entalhá-la na memória — um destes semblantes que se esquecem apenas vistos, mas sempre padecendo um vago e contínuo desejo de os recordarmos. Não era que qualquer paixão rápida deixasse de refletir-se indistintamente nas suas feições, como num espelho; unicamente o espelho vivo era tão impotente como os outros, para reter o mínimo traço da paixão extinta.

Deixando-me na tarde daquela aventura, pediu-me com insistência, que passasse no outro dia cedo por sua casa. Breve espaço depois de sair o sol, apresentei-me no seu palácio, vasto edifício de um esplendor sombrio, mas fantástico, como os que sobranceiam o Grande Canal nas vizinhanças do Rialto. Encaminharam-me por uma larga escada de caracol, calçada de mosaico, para um salão cuja magnificência sem par me ofuscou, desde que lhe entrei os umbrais. Não ignorava a opulência do meu hóspede. A fama falava de suas riquezas em termos, que a minha ignorância classificou sempre de exageração ridícula. Mas, apenas relanceei os olhos em derredor de mim, espantei-me que a Europa abrigasse um homem bastante opulento para realizar o sonho de régia sumptuosidade, que rebrilhava e pompeava ali.

Estando já fora o sol, ainda assim, o salão achava-se brilhantemente iluminado. Esta circunstância, junta à fadiga visivelmente impressa no rosto do meu amigo, fez-me crer que ele não repousara desde a véspera. A arquitetura e ornatos da sala evidenciavam plenamente o desejo de maravilhar e ofuscar o espectador. Atendera-se mediocremente à decoração que os artistas chamam l’ensemble, do mesmo modo pouca diligência se empenhara no acentuar aquele interior, abstraindo-se de qualquer cor local. Os olhos divagavam de um em outro objeto sem se fixarem em nenhum — nem sobre os grotescos dos pintores gregos, nem sobre as obras da escultura italiana da boa época, nem sobre os esboços colossais do Egito, ainda ignaro.

De todos os lados, ricas tapeçarias, tremulavam às vibrações de uma invisível música, triste e doce. Senti-me opresso por um misto de perfumes, vaporados por incensórios de formas esquisitas, donde chispavam ao mesmo tempo línguas de fogo azulado ou verde, que a revezes flamejava e oscilava. Os raios do sol nado desferiam sobre esta cena, perpassando as janelas, formadas de um vidro carmesim. Finalmente refletida em mil pontos por cortinados que se debruçavam das cornijas como catadupas de prata incandescente, a luz do sol misturava-se caprichosamente com os lumes artificiais, e ensopava voluptuariamente um tapete de ouro que refulgia como lençol de água.

«Ah! Ah! cascalhou o meu hospedeiro, que depois de me haver indicado uma cadeira, se atirou e estendeu à vontade numa causeuse.

Vejo, continuou ele, reparando na impressão, que a singularidade do seu acolhimento me despertava, vejo, que o meu salão, estátuas, quadros, e a originalidade das minhas ideias em pontos de arquitetura e mobília, vejo que tudo isto vos espanta!

Estais embriagado — é a frase própria não é verdade? — de tanta magnificência. Perdoai-me meu caro senhor (aqui o tom de sua voz desceu muitas notas, e respirou a mais franca cordialidade) indultai a minha hilaridade um pouco descaridosa. Mas, em verdade, tínheis uns ares tão espantadiços. Demais há coisas por tal modo absurdas, que é preciso rirmo-nos delas, para não morrermos. Morrer a rir deve ser a mais gloriosa de todas as mortes!

Sir Thomas More, um digno homem! finou-se a rir. Encontra-se também nas Absurdidades de Ravisius Textor uma lista bastante comprida de originais, que acabaram desta admirável morte. Sabeis contudo, prosseguiu num tom devaneador, que em Sparta — hoje chama-se Paleocori — se descobriu, a oeste da cidadela, entre um caos de ruínas apenas visíveis, uma espécie de pedestal, sobre que aparecem distintas as letras lasm, que seguramente representam a terminação truncada da palavra gelasma rir? Ora, em Sparta, eram aos mil os templos e altares, consagrados a mil divindades diferentes. E não é de estranhar que só o altar do Riso tenha sobrevivido a tudo? Mas hoje, continuou, com singular mudança de intonação e ademanes, fiz mal em divertir-me à vossa custa, possuíeis o direito legítimo de vos maravilhar. Nada de comparável ao meu salão de aparato poderia ostentar a Europa. Todas as minhas outras câmaras nada se parecem com isto, representam simplesmente o nec plus ultra da insipidez fashionable. Isto vale um pouco mais que a moda, não é verdade?

E todavia, bastar-me-ia abrir este salão para que ele fizesse fanatismo, ao menos naqueles, que julgassem acertado imitar-me a troco de todo o seu património. Mas tenho-me aautelado de cometer uma semelhante profanação. À parte uma exceção, sois o único além de um criado de quarto, a quem haja sido lícito contemplar os mistérios deste imperial recinto, desde que assim o dispus.



(continua...)


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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense.[1][2] Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica.[3] Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.

Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).

Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.

Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849 

Edgar Allan Poe - Contos: Um Manuscrito encontrado numa Garrafa (final)

Edgar Allan Poe - Contos: A Entrevista (final)



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