sexta-feira, 27 de abril de 2018

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XIII

Cruz e Sousa

Obra Completa
Volume 1
POESIA



O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos




OUTROS SONETOS 








NA FONTE
          
  
Bem ao lado da gruta a fonte corre
Trepidamente, as águas encrespando,
Em murmúrios crebos, levantando
Uns chamalotes prateados – morre


No monte o sol que a luz no oceano escorre
E ainda eu vejo, as sombras afrontando,
Uma mulher que lava, mesmo quando
O sol mais rubro, mais vermelho jorre.


– É num sítio afastado, um sítio ermo...
Pássaros cortam vastidões sem termo,
Borboletas azuis roçam nas águas.


– E a mulher lava, enrubescida a face;
Lava, cantando, como se lavasse
As suas tristes e profundas mágoas.




[A FONTE]


A fonte de águas cristalinas corre
Chamalotes de prata levantando,
E através de arvoredos murmurando,
Entre arvoredos murmurando morre...


No ocaso, o sol, a luz no oceano escorre
E sempre vejo, as sombras afrontando,
Uma mulher que canta e ri, lavando,
Mesmo que o sol muito abrasado jorre.


É verde o campo, deleitável e ermo.
Pássaros cortam vastidões sem termo,
Borboletas azuis roçam nas águas.

E cantando, a mulher, a rir a face, 
Lava cantando como se lavasse
As suas grandes e profundas mágoas.




CEGA

Parece-me que a luz imaculada
Que vem do teu olhar, todo doçuras,
Não verte no meu ser aquelas puras
Delícias de outra era já passada.


Eu creio que essa pálpebra adorada
Não mais um flóreo empíreo de venturas
Descobre-me – na noite de amarguras, 
De dúvidas intérminas cortada.


Não olhas como olhavas, rindo, outrora,
Não abres a pupila, como a aurora
Nascendo, abre, feliz, radiosa e calma.


A sombra, nos teus olhos, funda, existe!...
Tu’alma deve ser bem negra e triste
Se os olhos são, decerto, o espelho d’alma.






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De fato, a inteligência, criatividade e ousadia de Cruz e Sousa eram tão vigorosos que, mesmo vítima do preconceito racial e da sempiterna dificuldade em aceitar o novo, ainda assim o desterrense, filho de escravos alforriados, João da Cruz e Sousa, “Cisne Negro” para uns, “Dante Negro” para outros, soube superar todos os obstáculos que o destino lhe reservou, tornando-se o maior poeta simbolista brasileiro, um dos três grandes do mundo, no mesmo pódio onde figuram Stephan Mallarmé e Stefan George. A sociedade recém-liberta da escravidão não conseguia assimilar um negro erudito, multilíngue e, se não bastasse, com manias de dândi. Nem mesmo a chamada intelligentzia estava preparada para sua modernidade e desapego aos cânones da época. Sua postura independente e corajosa era vista como orgulhosa e arrogante. Por ser negro e por ser poeta foi um maldito entre malditos, um Baudelaire ao quadrado. Depois de morrer como indigente, num lugarejo chamado Estação do Sítio, em Barbacena (para onde fora, às pressas, tentar curar-se de tuberculose), seu
corpo foi levado para o Rio de Janeiro graças à intervenção do abolicionista José do Patrocínio, que cuidou para que tivesse um enterro cristão, no cemitério São João Batista.



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