quarta-feira, 13 de abril de 2022

Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 5. (1)

 Diante da Dor dos Outros


para David

… aux vaincus!
Baudelaire

A sórdida mentora, a Experiência...
Tennyson


5..



Nas expectativas modernas e no sentimento ético moderno, cabe uma posição central à convicção de que a guerra é uma aberração, ainda que inevitável. De que a paz é a norma, ainda que inatingível. Não foi assim, é claro, que a guerra foi vista ao longo da história. A guerra foi a norma, e a paz, a exceção.

A descrição da maneira exata como os corpos são feridos e mortos em combate constitui um clímax recorrente nas histórias contadas na Ilíada. A guerra é vista como algo que os homens fazem, de modo inveterado, sem se demoverem ante o acúmulo de sofrimento que ela inflige; e representar a guerra em palavras ou em imagens requer uma frieza aguçada e inabalável. Quando Leonardo da Vinci dá instruções para uma pintura de batalha, insiste em que os pintores tenham a coragem e a imaginação de mostrar a guerra em toda a sua abominação.


Mostrem o conquistado e vencido pálido, com sobrancelhas levantadas e franzidas, e a pele acima das sobrancelhas sulcada pela dor [...] e os dentes separados como que num grito de lamento [...]. Mostrem os mortos, em parte ou inteiramente, cobertos de poeira [...] e deixem que se veja o sangue, pela sua cor, a fluir numa corrente sinuosa do cadáver até o pó. E outros na agonia da morte, rilhando os dentes, de olhos revirados, com os punhos cerrados contra seus corpos e com as pernas retorcidas.

A preocupação é que as imagens a serem vistas não se mostrem perturbadoras o bastante: não sejam concretas e minuciosas o bastante. A piedade pode acarretar um julgamento moral se, como sustenta Aristóteles, for considerada a emoção que se deve sentir apenas por aqueles que padecem infortúnios imerecidos. Mas a piedade, longe de ser o gêmeo natural do medo nos dramas do infortúnio catastrófico, parece diluída — atordoada — pelo medo, ao passo que o medo (pavor, terror) consegue, em geral, sufocar a piedade. Leonardo sugere que o olhar do artista seja, literalmente, impiedoso. A imagem deve estarrecer e nessa terribilità reside um tipo contestador de beleza.

Que um campo de batalha ensanguentado pode ser belo — no registro sublime, aterrador ou trágico do belo — é lugar-comum no tocante a imagens de guerra produzidas por artistas. A ideia não cai bem quando se aplica a imagens captadas por câmeras: encontrar beleza em fotos de guerra parece insensível. Mas a paisagem da devastação ainda é uma paisagem. Existe beleza nas ruínas. Nos meses seguintes ao atentado, reconhecer a beleza de fotos das ruínas do World Trade Center parecia frívolo, sacrílego. O máximo que se ousava dizer era que as fotos eram “surreais”, um eufemismo confuso atrás do qual se escondia a desacreditada ideia de beleza. Mas elas eram belas, muitas delas — feitas por fotógrafos veteranos como Gilles Peress, Susan Meiselas e Joel Meyerowitz, entre outros. O local do atentado propriamente dito, um cemitério em massa que recebeu o nome de “ponto zero”, nada tinha de belo, é claro. Fotos tendem a transformar, qualquer que seja o seu tema; e, como imagem, uma coisa pode ser bela — ou aterradora, ou intolerável, ou perfeitamente suportável — de um modo como não é na vida real.

Transformar é o que toda arte faz, mas a fotografia que dá testemunho do calamitoso e do condenável é muito criticada se parece “estética”, ou seja, demasiado semelhante à arte. O poder dúplice da fotografia — gerar documentos e criar obras de arte visual — produziu alguns exageros notáveis a respeito do que os fotógrafos deveriam ou não fazer. Ultimamente, o exagero mais comum é aquele que vê nesse poder dúplice um par de opostos. As fotos que retratam sofrimento não deveriam ser belas, assim como as legendas não deveriam pregar moral. Desse ponto de vista, uma foto bela desvia a atenção do tema consternador e a dirige para o próprio veículo, comprometendo portanto o estatuto da foto como documento. A foto dá sinais misturados. Pare isto, ela exige. Mas também exclama: Que espetáculo! [1]


[1] As fotos de Bergen-Belsen, Buchenwald e Dachau tiradas em abril e maio de 1945 por testemunhas anônimas e fotógrafos militares parecem mais legítimas do que as imagens “melhores” feitas por duas profissionais afamadas, Margaret Bourke-White e Lee Miler. Porém a crítica do olhar profissional na fotografia de guerra não constitui uma idéia recente. Walker Evans, por exemplo, detestava a obra de Bourke-White. Mas, por outro lado, Evans, que fotografou camponeses americanos pobres para um livro com o título severamente irônico de Vamos louvar agora os homens famosos, jamais tiraria uma foto de alguém famoso.

Vejamos uma das imagens mais pungentes da Primeira Guerra Mundial: uma fileira de soldados ingleses cegos em virtude do gás venenoso — todos têm a mão pousada sobre o ombro esquerdo do soldado à sua frente —, arrastando os pés rumo a um posto de primeiros socorros. Poderia ser uma imagem de um dos filmes contundentes feitos sobre a guerra — The Big Parade (1925), de King Vidor; O front ocidental em 1918, de G. W. Pabst; Nada de novo no front ocidental, de Lewis Milestone; ou The Dawn Patrol, de Howard Hawks (todos de 1930). A circunstância de a fotografia de guerra parecer, retroativamente, tanto ecoar quanto inspirar a reconstituição de cenas de batalha em importantes filmes de guerra tem feito o espírito aventureiro dos fotógrafos produzir o resultado contrário ao esperado. O que garantiu a autenticidade da aclamada recriação do desembarque do Dia D feita por Steven Spielberg em O resgate do soldado Ryan (1998) foi o filme ter se baseado, entre outras fontes, em fotos tiradas, com enorme coragem, por Robert Capa durante o desembarque. Mas uma foto de guerra parece espúria, mesmo que nela não exista nada montado, quando aparenta ser uma foto de uma cena de filme. Um fotógrafo especializado na desgraça mundial (o que inclui os efeitos da guerra, mas não se restringe a isso), Sebastião Salgado, tornou-se o alvo principal da nova campanha contra a inautenticidade do belo. Em especial com o projeto de sete anos intitulado “Migrações: humanidade em transição”, Salgado se viu sob um ataque cerrado, acusado de produzir fotos grandes, espetaculares e lindamente compostas, chamadas de “cinemáticas”.

A retórica santarrona — ao estilo da mostra fotográfica de Edward Steichen intitulada The Family of Man — que ornamenta as exposições e os livros de Salgado prejudicou suas fotos, por mais que isso possa ser injusto. (Há muita mistificação a ser descoberta, e ignorada, nas declarações feitas por alguns dos mais admiráveis fotógrafos engajados.) As fotos de Salgado também foram tratadas com exasperação numa reação às situações demasiado comerciais em que, de forma típica, são vistos seus retratos de desgraça. Mas o problema está nas fotos em si mesmas, e não na maneira ou no lugar onde estão expostas: o problema está no seu foco voltado para os destituídos de poder, reduzidos à impotência. É significativo que os destituídos de poder não sejam designados nas legendas. Um retrato que se exime de designar seu tema torna-se cúmplice, ainda que inadvertidamente, do culto da celebridade que inflamou um apetite insaciável pelo tipo oposto de fotografia: assegurar só aos famosos a menção de seus nomes rebaixa os demais a exemplos representativos de suas ocupações, de suas etnias, de suas aflições. Tiradas em 39 países, as fotos de migração de Salgado reúnem, sob esse único título, uma multidão de causas e de modalidades de infortúnio diversas. Fazer o sofrimento avultar, globalizá-lo, pode incitar as pessoas a sentir que deveriam “importar-se” mais. Também as convida a sentir que os sofrimentos e os infortúnios são demasiado vastos, demasiado irrevogáveis, demasiado épicos para serem alterados, em alguma medida significativa, por qualquer intervenção política local. Com um tema concebido em tal escala, a compaixão pode apenas debater-se no vazio — e tornar-se abstrata. Mas toda política, como toda história, é concreta. (Sem dúvida, ninguém que reflita de fato a respeito da história pode levar a política inteiramente a sério.)

Quando ainda não eram comuns as imagens diretas da realidade, pensava-se que mostrar algo que precisava ser visto, trazer para mais perto uma realidade dolorosa, produziria necessariamente o efeito de incitar os espectadores a sentir — a sentir mais. Num mundo em que a fotografia foi posta, talentosamente, a serviço de manipulações consumistas, não se pode ter como algo líquido e certo o efeito de uma foto de uma cena lúgubre. Em consequência, fotógrafos e ideólogos da fotografia moralmente atentos tornaram-se cada vez mais preocupados com a exploração do sentimento (piedade, compaixão, indignação) na fotografia de guerra e com as maneiras rotineiras de provocar emoção.

Os fotógrafos-testemunhas podem julgar que é moralmente mais correto tornar o espetacular não-espetacular. Mas o espetacular exerce um grande papel nas narrativas religiosas, à luz das quais o sofrimento foi compreendido ao longo da maior parte da história ocidental. E sentir a pulsação da iconografia cristã em certas fotos de guerra ou de calamidade não constitui uma projeção sentimental. Seria difícil não discernir os contornos da Pietà na foto de W. Eugene Smith, de uma mulher em Minamata embalando no colo sua filha surda, cega e deformada, ou o modelo de A descida da cruz em diversas fotos de Don McCullin, de soldados americanos agonizantes no Vietnã. Contudo, essas maneiras de ver — que acrescentam aura e beleza — podem estar em declínio. A grande historiadora alemã Barbara Duden disse que, quando dava um curso sobre a história das representações do corpo em uma grande universidade pública estadual americana alguns anos atrás, nenhum aluno numa turma de vinte estudantes de graduação conseguiu identificar o tema de qualquer pintura consagrada sobre a flagelação de Cristo que ela lhes mostrou em diapositivos. (“Acho que é uma pintura religiosa”, arriscou um deles.) A única imagem consagrada de Jesus que a maioria dos alunos se mostrou capaz de identificar foi a da crucificação.



continua pág 217...


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"Quando o mundo estiver unido
na busca do conhecimento, e
não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade
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nível."


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mas se não escutar continuo conversando comigo mesmo."


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