segunda-feira, 25 de abril de 2022

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Será um complô? (XV)

Livro II 


Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve



Capítulo XV

SERÁ UM COMPLÔ?




Ah! como é cruel o intervalo entre um grande projeto e sua execução! 
Quantos vãos terrores! Quantas irresoluções! Trata-se da vida. – Trata-se
de muito mais: da honra!

SCHILLER


ISSO ESTÁ FICANDO SÉRIO, pensou Julien... e um pouco claro demais, acrescentou, depois de ter pensado. Ora, vejam! Essa bela senhorita pode falar comigo na biblioteca com uma liberdade que, graças a Deus, é completa; o marquês, com seu receio de que eu peça demissão, jamais vem aqui. Ele e o conde Norbert, as únicas pessoas que entram aqui, estão ausentes quase o dia inteiro; pode-se facilmente observar o momento em que retornam à mansão. E a sublime Mathilde, por cuja mão um príncipe soberano não seria bastante nobre, quer que eu cometa uma imprudência abominável!
É claro, querem destruir-me ou zombar de mim, pelo menos. Primeiro quiseram destruir-me com minhas cartas; estas foram prudentes. Eles precisam então de uma ação mais clara que o dia. Esses elegantes senhores julgam-me muito idiota ou muito presumido. Essa é boa! Com o maior luar do mundo, subir por uma escada a um primeiro andar a oito metros de altura! Poderão me ver mesmo das mansões vizinhas. Como eu seria aplaudido em minha escada! Julien voltou a seu quarto e pôs-se a arrumar as malas, assobiando. Estava decidido a partir e a nem mesmo responder.
Mas essa sensata resolução não lhe dava paz ao coração. E se porventura, pensou de repente, tendo fechado a mala, Mathilde age de boa-fé! Então, aos olhos dela, desempenho o papel de um covarde perfeito. Não tendo nobreza de origem, preciso de grandes qualidades, dinheiro à vista, sem suposições complacentes, bem provadas por ações significativas.
Ficou um quarto de hora a refletir. De que serve negar?, disse ele enfim; serei um covarde aos olhos dela. Perco não apenas a pessoa mais brilhante da alta sociedade, como diziam todos no baile do duque de Retz, mas também o divino prazer de ver sacrificado, por mim, o marquês de Croisenois, filho de um duque, e que será duque ele próprio. Um jovem encantador que tem todas as qualidades que me faltam: presença de espírito, nascimento, fortuna...
Esse remorso irá perseguir-me a vida inteira, não por ela, pois há muitas amantes!
...Mas a honra é uma só!
disse o velho Dom Diego, e aqui, de maneira clara e nítida, recuo diante do primeiro perigo que me é apresentado; pois aquele duelo com o sr. de Beauvoisis foi como uma brincadeira. Agora é muito diferente. Posso ser alvejado por um criado, mas esse é o menor perigo; o perigo é ser desonrado.
Isso está ficando sério, meu rapaz, acrescentou com uma graça e um sotaque gascões. A questão é a honur. [1] Jamais um pobre-diabo, lançado pela sorte numa posição tão baixa quanto a minha, terá de novo essa oportunidade; terei outras, mas subalternas...
Ele refletiu longamente, andando a passos precipitados e, de tempo em tempo, estacando. Haviam posto em seu quarto um magnífico busto em mármore do cardeal Richelieu, que, contra sua vontade, atraía seu olhar. Esse busto parecia observá-lo de um modo severo e como que reprovando-lhe a falta dessa audácia que deve ser tão natural ao caráter francês. No teu tempo, grande homem, eu teria hesitado?
Na pior das hipóteses, pensou finalmente Julien, suponhamos que tudo seja uma armadilha: seria muito feio e comprometedor para uma moça. Todos sabem que não sou homem de calar-me. Teriam então que me matar. Isso era comum em 1574, no tempo de Boniface de La Mole, mas o de hoje não ousaria, essa gente não é mais a mesma. A srta. de La Mole é tão invejada! Quatrocentos salões estariam falando amanhã de sua vergonha, e com que prazer!
Os criados mexericam, entre si, das preferências marcadas de que sou o objeto, sei disso, os ouvi falar...
Por outro lado, as cartas dela!... Eles podem achar que as tenho comigo. Surpreendido em seu quarto, as retiram de mim. Terei de enfrentar dois, três, quatro homens, sei lá. Mas onde conseguirão esses homens? Onde encontrar subalternos discretos em Paris? A justiça mete-lhes medo... Quem sabe os próprios Caylus, Croisenois, de Luz! Esse momento e a cara de bobo que farei no meio deles é o que esperavam. Cuidado com a sorte de Abelardo, sr. secretário!
Está bem, senhores! mas levarão minhas marcas. Hei de golpeá-los no rosto, como os soldados de César em Farsália... Quanto às cartas, posso guardá-las num lugar seguro.
Julien fez cópias das duas últimas, escondeu-as num volume do precioso Voltaire da biblioteca, e levou ele próprio os originais ao correio.
Ao voltar, disse a si mesmo com surpresa e terror: Em que loucura vou me lançar! Ele passara um quarto de hora sem encarar sua ação da próxima noite.
Se recusar, eu mesmo me desprezarei daqui por diante! A vida inteira essa ação será um motivo de dúvida e, para mim, tal dúvida é a pior das desgraças. Não a senti em relação ao amante de Amanda? Creio que me perdoaria mais facilmente um crime bem claro; uma vez confessado, não pensaria mais nele.
Quê! Tenho por rival um homem que possui um dos nomes mais nobres da França, e voluntariamente declarar-me-ia seu inferior! No fundo, há covardia em não ir. Isso decide tudo, exclamou Julien, levantando-se... Aliás, ela é bem bonita.
Se não for uma traição, que loucura ela faz por mim!... Se for uma mistificação, muito bem, senhores! Compete apenas a mim tornar a brincadeira séria, e assim farei.
Mas se me agarram pelos braços no momento de entrar no quarto? Eles podem ter montado algum dispositivo engenhoso!
É como um duelo, pensou, rindo, há contragolpe para tudo, diz meu mestre de esgrima, mas o bom Deus, que quer encerrar o assunto, faz que um dos dois esqueça de desviar um golpe. De resto, eis aqui com que responder-lhes. E tirou do bolso as pistolas; embora a munição fosse fulminante, ele a renovou.
Ainda havia muitas horas a esperar; para fazer alguma coisa, Julien escreveu a Fouqué: “Meu amigo, só abra a carta aqui inclusa em caso de acidente, se ficares sabendo que algo de estranho me aconteceu. Então, apaga os nomes próprios do manuscrito que te envio, tira dele oito cópias que enviarás aos jornais de Marselha, Bordéus, Lyon, Bruxelas etc.; dez dias mais tarde, manda imprimir esse manuscrito, envia o primeiro exemplar ao sr. marquês de La Mole e, quinze dias depois, lança os outros exemplares, de madrugada, nas ruas de Verrières”.
Esse pequeno documento justificativo disposto em forma de conto, que Fouqué só devia abrir em caso de acidente, Julien o fez de modo a comprometer o menos possível a srta. de La Mole, mas ele descrevia com muita exatidão a posição dela.
Estava fechando o pacote quando soou a sineta do jantar, fazendo-lhe o coração bater mais rápido. Sua imaginação, preocupada com o relato que acabara de redigir, expunha-se aos pressentimentos trágicos. Via-se agarrado por criados, manietado, conduzido a um porão com uma mordaça na boca. Ali, um criado o vigiava, e, se a honra da nobre família exigisse que a aventura tivesse um fim trágico, era fácil encerrar tudo com venenos que não deixam vestígios; então, diriam que ele morreu de enfermidade, e o transportariam morto a seu quarto.
Comovido por sua própria história como um autor dramático, Julien sentia realmente medo quando entrou na sala de jantar. Observava todos aqueles criados de libré, estudava-lhes a fisionomia. Quais são os escolhidos para a expedição desta noite?, pensava. Nesta família, as lembranças da corte de Henrique III são tão presentes, tão frequentemente evocadas que, julgando-se ultrajados, seus membros serão mais decididos que outros personagens da mesma condição. Olhou a srta. de La Mole para ler em seus olhos os projetos da família; estava pálida e com uma fisionomia perfeitamente medieval. Nunca seu aspecto lhe pareceu tão nobre, estava realmente bela e imponente. Quase sentiu paixão por ela. Pallida morte futura, pensou (Sua palidez anuncia seus grandes desígnios).
Em vão, depois do jantar, fingiu passear por um longo tempo no jardim, a srta. de La Mole não apareceu. Falar com ela, naquele momento, teria livrado seu coração de um grande peso.
Por que não confessar? Ele tinha medo. Como estava decidido a agir, entregava-se a esse sentimento sem nenhuma vergonha. Contanto que no momento de agir eu tenha a coragem necessária, pensava, que importa o que posso sentir neste momento? Foi examinar a situação e verificar o peso da escada.
É um instrumento, disse consigo, rindo, destinado a servir-me, tanto aqui como em Verrières! Qual a diferença? Na outra ocasião, acrescentou com um suspiro, eu não era obrigado a desconfiar da pessoa pela qual me expunha. Que diferença também no perigo!
Ainda que me tivessem matado nos jardins do sr. de Rênal, não havia nenhuma desonra para mim. Facilmente teriam tornado minha morte inexplicável. Aqui, que histórias abomináveis não inventarão nos salões da mansão de Chaulnes, da mansão de Caylus, na mansão de Retz etc., em toda parte, enfim. Serei um monstro para a posteridade.
Durante dois ou três anos, continuou, rindo e zombando de si mesmo. Mas essa ideia o acabrunhou. E eu, em que poderão justificar-me? Supondo que Fouqué imprima meu panfleto póstumo, será apenas uma infâmia a mais. Quê! Então sou recebido numa casa e, em troca da hospitalidade que recebo, das amabilidades com que me cumulam, imprimo um panfleto sobre o que nela se passa! Ataco a honra das mulheres! Ah! é preferível mil vezes ser um trouxa!
Essa noite foi terrível.



continua página 235...

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[1] Honra, em dialeto gascão (N.T.)

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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.

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Henri-Marie Beylemais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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