terça-feira, 5 de abril de 2022

Dom Casmurro: No Céu

Machado de Assis


Dom Casmurro






Capítulo CI

No Céu




Pois sejamos felizes de uma vez, antes que o leitor peque em si, morto de esperar, e vá espairecer a outra parte; casemo-nos. Foi em 1865, uma tarde de março, por sinal chovia. Quando chegamos ao alto da Tijuca, onde era o nosso ninho de noivos, o céu recolheu a chuva e acendeu as estrelas, não só as já conhecidas, mas ainda as que só serão descobertas daqui a muitos séculos. Foi grande fineza e não foi única. São Pedro, que tem as chaves do céu, abriu-nos as portas dele, fez-nos entrar, e depois de tocar-nos com o báculo, recitou alguns versículos da sua primeira epístola: “As mulheres sejam sujeitas a seus maridos... Não seja o adorno delas o enfeite dos cabelos riçados ou as rendas de ouro, mas o homem que está escondido no coração... Do mesmo modo, vós, maridos, coabitai com elas, tratando-as com honra, como a vasos mais fracos, e herdeiras convosco da graça da vida...” Em seguida, fez sinal aos anjos, e eles entoaram um trecho do Cântico, tão concertadamente, que desmentiram a hipótese do tenor italiano, se a execução fosse na terra; mas era no céu. A música ia com o texto, como se houvessem nascido juntos, à maneira de uma ópera de Wagner. Depois, visitamos uma parte daquele lugar infinito. Descansa que não farei descrição alguma, nem a língua humana possui formas idôneas para tanto.

Ao cabo, pode ser que tudo fosse um sonho; nada mais natural a um ex-seminarista que ouvir por toda a parte latim e Escritura. É verdade que Capitu, que não sabia Escritura nem latim, decorou algumas palavras, como estas, por exemplo: “Sentei-me à sombra daquele que tanto havia desejado.” Quanto às de S. Pedro, disse-me no dia seguinte que estava por tudo, que eu era a única renda e o único enfeite que jamais poria em si. Ao que eu repliquei que a minha esposa teria sempre as mais finas rendas deste mundo.




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Texto de referência:

Obras Completas de Machado de Assis, vol. I,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.

Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1899.

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Leia também:


Capítulo LX / Querido Opúsculo
Capítulo LXI / A Vaca de Homero
Capítulo LXII / Uma Ponta de Iago
Capítulo: LXIII / Metades de um Sonho
Capítulo LXIV / Uma Ideia e um Escrúpulo
Capítulo LXV / A Dissimulação
Capítulo LXVI / Intimidade
Capítulo LXVII / Um Pecado
Capítulo LXVIII / Adiemos a Virtude
Capítulo LXIX / A Missa
Capítulo LXXI / Visita de Escobar
Capítulo LXXII / Uma Reforma Dramática
Capítulo LXIII / O Contra-Regra
Capítulo LXXIV / A Presilha
Capítulo LXXV / O Desespero
Capítulo LXXVI / Explicação
Capítulo LXXVII / Prazer das Dores Velhas
Capítulo LXXVIII / Segredo por Segredo
Capítulo LXXIX / Vamos ao Capítulo
Capítulo LXXX / Venhamos ao Capítulo
Capítulo LXXXI / Uma Palavra
Capítulo LXXXII / O Canapé
Capítulo LXXXIII / O Retrato
Capítulo LXXXIV / Chamado
Capítulo LXXXV / O Defunto
Capítulo LXXXVI / Amai, Rapazes!
Capítulo LXXXVII / A Sege
Capítulo LXXXVIII / Um Pretexto Honesto
Capítulo LXXXIX / A Recusa
Capítulo XC / A Polêmica
Capítulo XCI / Achado que Consola
Capítulo XCII / O Diabo não É tão Feio Como se PintaCapítulo XCIII / Um Amigo por um Defunto
Capítulo XCIV / Ideias Aritméticas
Capítulo XCV / O Papa
Capítulo XCVI / Um Substituto
Capítulo XCVII / A Saída
Capítulo XCVIII / Cinco Anos
Capítulo XCIX / O Filho é a Cara do Pai
Capítulo C / "Tu serás feliz, Bentinho!"
Capítulo CI / No Céu

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