quarta-feira, 27 de julho de 2022

Flusser : Filosofia da Caixa Preta (5 - A Fotografia)

Filosofia da Caixa Preta




VILÉM FLUSSER




Ensaios para uma futura filosofia da fotografia




5 - A Fotografia


Fotografias são onipresentes: coladas em álbuns, reproduzidas em jornais, expostas em vitrines, paredes de escritórios, afixadas contra muros sob forma de cartazes, impressas em livros, latas de conservas, camisetas. Que significam tais fotografias? Segundo as considerações precedentes, significam conceitos programados, visando programar magicamente o comportamento de seus receptores. Mas não é o que se vê quando para elas se olha. Vistas ingenuamente, significam cenas que se imprimiram automaticamente sobre superfícies. Mesmo um observador ingênuo admitiria que as cenas se imprimiram a partir de um determinado ponto de vista. Mas o argumento não lhe convém. O fato relevante para ele é que as fotografias abrem ao observador visões do mundo. Toda filosofia da fotografia não passa, para ele, de ginástica mental para alienados.

No entanto, se o observador ingênuo percorrer o universo fotográfico que o cerca, não poderá deixar de ficar perturbado. Era de se esperar: o universo fotográfico representa o mundo lá fora através deste universo, o mundo. A vantagem é permitir que se vejam as cenas inacessíveis e preservar as passageiras ( o que, afinal de contas, seja admitido, já é uma filosofia da fotografia rudimentar).

Mas será verdade? Se assim for, como explicar que existam fotografias preto-e-branco e fotografias em cores? Haverá, lá fora no mundo, cenas em preto-e-branco e cenas coloridas? Se não, qual a relação entre o universo das fotografias e o universo lá fora? Inadvertidamente, o observador ingênuo se encontra mergulhado em plena filosofia da fotografia, a qual pretendeu evitar.

Não pode haver, no mundo lá fora, cenas em preto-e-branco. Isto porque o preto e o branco são situações “ideais”, situações-limite. O branco é presença total de todas as vibrações luminosas; o preto é a ausência total. O preto e o branco são conceitos que fazem parte de uma determinada teoria da Ótica. De maneira que cenas em preto-e-branco não existem. Mas fotografias em preto e branco, estas sim, existem. Elas “imaginam” determinados conceitos de determinada teoria, graças à qual são produzidas automaticamente. Aqui, porém, o termo automaticamente não pode mais satisfazer o observador ingênuo do universo da fotografia. Quanto ao problema da crítica da fotografia, eis o ponto crítico: ao contrário da pintura, onde se procura decifrar ideias, o crítico de fotografia deve decifrar, além disso, conceitos.


O preto e o branco não existem no mundo, o que é grande pena. Caso existissem, se o mundo lá fora pudesse ser captado em preto-e-branco, tudo passaria a ser logicamente explicável. Tudo no mundo seria então ou preto ou branco, ou intermediário entre os dois extremos. O desagradável é que tal intermediário não seria em cores, mas cinzento... a cor da teoria. Eis como a análise lógica do mundo, seguida de síntese, não resulta em sua reconstituição. As fotografias em preto-e-branco o provam, são cinzentas: imagens de teorias (óticas e outras) a respeito do mundo.

A tentativa de imaginar o mundo em preto-e-branco é antiga. Faltavam apenas os aparelhos adequados a tal imaginação. Dois exemplos desse maniqueísmo pré-fotográfico: 1. Abstraiam-se do universo dos juízos os verdadeiros e os falsos. Graças a tal abstração, pode ser construída a lógica aristotélica, com sua identidade, diferença e o terceiro excluído. Esta lógica, por sua vez, vai contribuir para a construção da ciência moderna. Ora, a ciência funciona de fato, embora não existam juízos inteiramente verdadeiros ou inteiramente falsos, e embora toda análise lógica de juízos os reduza a zero; 2. abstraiam-se do universo das ações as boas e as más. Graças a tal abstração, podem ser construídas ideologias (religiosas, políticas, etc.). Essas ideologias, por sua vez, vão contribuir para a construção de sociedades sistematizadas. Ora, os sistemas funcionam de fato, embora não existam ações inteiramente boas ou inteiramente más, e embora toda ação se reduza, sob análise ideológica, a movimentos de fantoche. As fotografias em preto-e-branco são resultados desse tipo de maniqueísmo munido de aparelho. Funcionam.

E funcionam da seguinte forma: transcodificam determinadas teorias (em primeiro lugar, teorias da Ótica) em imagem. Ao fazê-lo, magicizam tais teorias. Transformam seus conceitos em cenas. As fotografias em preto-e-branco são a magia do pensamento teórico, conceitual, e é precisamente nisto que reside seu fascínio. Revelam a beleza do pensamento conceitual abstrato. Muitos fotógrafos preferem fotografar em preto-e-branco, porque tais fotografias mostram o verdadeiro significado dos símbolos fotográficos: o universo dos conceitos.

As primeiras fotografias eram, todas, em preto-e-branco, demonstrando que se originavam de determinada teoria da Ótica. A partir do progresso da Química, tornou-se possível a produção de fotografias em cores. Aparentemente, pois, as fotografias começaram a abstrair as cores do mundo, para depois as reconstituírem. Na realidade, porém, as cores são tão teóricas quanto o preto e o branco. O verde do bosque fotografado é imagem do conceito “verde”, tal como foi elaborado por determinada teoria química. O aparelho foi programado para transcodificar tal conceito em imagem. Há, por certo ligação indireta entre o verde do bosque fotografado e o verde do bosque lá fora: o conceito científico “verde” se apoia, de alguma forma, sobre o verde percebido. Mas entre os dois verdes se interpõe toda uma série de codificações complexas. Mais complexas ainda do que as que se interpõem entre o cinzento do bosque fotografado em preto-e-branco e o verde do bosque lá fora. De maneira que a fotografia em cores é mais abstrata que a fotografia em preto-e-branco. Mas as fotografias em cores escondem, para o ignorante em Química, o grau de abstração que lhe deu origem. As brancas e pretas são, pois, mais “verdadeiras”. E quanto mais “fiéis” se tornarem as cores das fotografias, mais estas serão mentirosas, escondendo ainda melhor a complexidade teórica que lhes deu origem. (Exemplos: “verde Kodak” contra “verde Fuji”.)

O que vale para as cores vale, igualmente, para todos os elementos da imagem. São, todos eles, conceitos transcodificados que pretendem ser impressões automáticas do mundo lá fora. Tal pretensão precisa ser decifrada por quem quiser receber a verdadeira mensagem das fotografias: conceitos programados. Destarte, o observador ingênuo se vê obrigado, malgré lui, a mergulhar no torvelinho das reflexões filosóficas que procurou eliminar, por considerá-las ginástica mental alienada.

Concordemos quanto ao que pretendemos dizer por deciframento. Que faço ao decifrar um texto em alfabeto latino? Decifro o significado das letras, esses determinados sons da língua falada? Decifro o significado das palavras compostas de tais letras? Decifro o significado das frases compostas de tais palavras? Ou devo procurar, por trás do significado das frases, outros significados, como a intenção do autor e o contexto cultural no qual o texto foi codificado? Para decifrar o significado da fotografia do bosque verde, bastaria ter decifrado os conceitos científicos que codificaram a fotografia, ou devo ir mais longe? Assim colocada, a questão do deciframento não terá resposta satisfatória, já que todo nível de deciframento assentará sobre mais um a ser decifrado. Mas podemos, no caso da fotografia, evitar este regresso ao infinito. Para decifrar fotografias não preciso mergulhar até o fundo da intenção codificadora, no fundo da cultura, da qual as fotografias, como todo símbolo, são pontas de icebergs. Basta decifrar o processo codificador que se passa durante o gesto fotográfico, no movimento do complexo “fotógrafo-aparelho”. Se conseguíssemos captar a involução inseparável das intenções codificadoras do fotógrafo e do aparelho, teríamos decifrado, satisfatoriamente, a fotografia resultante. Tarefa aparentemente reduzida, mas na realidade gigantesca. Precisamente por serem tais intenções inseparáveis, e por se articularem de forma específica em toda e qualquer fotografia a ser criticada.

No entanto, o deciframento de fotografias é possível, porque, embora inseparáveis, as intenções do fotógrafo e do aparelho podem ser distinguidas. Esquematicamente, a intenção do fotógrafo é esta: 1. codificar, em forma de imagens, os conceitos que tem na memória; 2. servir-se do aparelho para tanto; 3. fazer com que tais imagens sirvam de modelos para outros homens; 4. fixar tais imagens para sempre. Resumindo: A intenção é a de eternizar seus conceitos em forma de imagens acessíveis a outros, a fim de se eternizar nos outros. Esquematicamente, a intenção programada no aparelho é esta: 1. codificar os conceitos inscritos no seu programa, em forma de imagens; 2. servir-se de um fotógrafo, a menos que esteja programado para fotografar automaticamente; 3. fazer com que tais imagens sirvam de modelos para homens; 4. fazer imagens sempre mais aperfeiçoadas. Resumindo: a intenção programada no aparelho é a de realizar o seu programa, ou seja, programar os homens para que lhe sirvam de feed-back para o seu contínuo aperfeiçoamento.

Mas por trás da intenção do aparelho fotográfico há intenções de outros aparelhos. O aparelho fotográfico é produto do aparelho da indústria fotográfica, que é produto do aparelho do parque industrial, que é produto do aparelho socioeconômico e assim por diante. Através de toda essa hierarquia de aparelhos, corre uma única e gigantesca intenção, que se manifesta no output do aparelho fotográfico: fazer com que os aparelhos programem a sociedade para um comportamento propício ao constante aperfeiçoamento dos aparelhos.

Se compararmos as intenções do fotógrafo e do aparelho, constataremos pontos de convergência e divergência. Nos pontos convergentes, aparelho e fotógrafo colaboram; nos divergentes, se combatem. Toda fotografia é resultado de tal colaboração e combate. Ora, colaboração e combate se confundem. Determinada fotografia só é decifrada, quando tivermos analisado como a colaboração e o combate nela se relacionam.

No confronto com determinada fotografia, eis o que o crítico deve perguntar: até que ponto conseguiu o fotógrafo apropriar-se da intenção do aparelho e submetê-la à sua própria? Que métodos utilizou: astúcia, violência, truques? Até que ponto conseguiu o aparelho apropriar-se da intenção do fotógrafo e desviá-la para os propósitos nele programados? Responder a tais perguntas é ter os critérios para julgá-la. As fotografias “melhores” seriam aquelas que evidenciam a vitória da intenção do fotógrafo sobre o aparelho: a vitória do homem sobre o aparelho. Forçoso é constatar que, muito embora existam tais fotografias, o universo fotográfico demonstra até que ponto o aparelho já consegue desviar os propósitos dos fotógrafos para os fins programados. A função de toda crítica fotográfica seria, precisamente, revelar o desvio das intenções humanas em prol dos aparelhos. Não dispomos ainda de uma tal crítica da fotografia, por razões que serão discutidas nos próximos capítulos.

Confesso que o presente capítulo, embora se chame “A fotografia”, não considerou algumas das mais importantes características da fotografia. Minha desculpa é que seu propósito era outro: abrir caminho para o deciframento de fotografias. Resumo, pois, o que pretendi dizer: fotografias são imagens técnicas que transcodificam conceitos em superfícies. Decifrá-las é descobrir o que os conceitos significam. Isto é complicado, porque na fotografia se amalgamam duas intenções codificadoras: a do fotógrafo e a do aparelho. O fotógrafo visa eternizar-se nos outros por intermédio da fotografia. O aparelho visa programar a sociedade através das fotografias para um comportamento que lhe permita aperfeiçoar-se. A fotografia é, pois, mensagem que articula ambas as intenções codificadoras. Enquanto não existir crítica fotográfica que revele essa ambiguidade do código fotográfico, a intenção do aparelho prevalecerá sobre a intenção human
a.


continua pág 26...

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SOBRE O AUTOR 
na edição brasileira de 1985


Nascido em Praga em 1920, Vilém Flusser iniciou seus estudos de Filosofia na Universidade Carolíngia de Praga, em 1933. Emigrou para Londres em 1940 e para São Paulo em 1941. Seus primeiros ensaios sobre Linguística e Filosofia foram publicados 1957 no “Suplemento Literário” d’O Estado de São Paulo, do qual passou a ser colaborador constante. Em 1962 tornou-se membro do Instituto Brasileiro de Filosofia e professor de Filosofia da Comunicação na Faculdade Armando Álvares Penteado (FAAP), em São Paulo. Tornou-se co-editor da Revista Brasileira de Filosofia em 1964 tendo sido nomeado delegado especial do Ministério das Relações Exteriores para cooperação cultural com os Estados Unidos e a Europa, em 1966. Entre 1965 e 1970, organizou seminários e conferências no Departamento de Humanidades do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) sobre a Filosofia da Linguagem e abriu espaço em jornal par escrever crônicas diárias sobre filosofia do cotidiano (“Posto Zero”, da Folha de São Paulo). Em 1972, mudou-se para a Itália e, em 1976, para a França, onde reside atualmente, publicando principalmente na Alemanha e França. Publicou os livros: Língua e Realidade (São Paulo, Herder, 1963); A História do Diabo (São Paulo, Martins, 1965); Da Religiosidade (São Paulo, Comissão Estadual de Cultura, 1967); La Force du Quotidien (Paris, Mame, 1972); Le Monde Codifié (Paris, Institut de l’Enviroment, 1972); Naturalmente (São Paulo, Duas Cidades, 1979); Pós – História (São Paulo, Duas Cidades, 1982); Für eine Philosophie der Fotografie (Göttingen, European Photography, 1983); Ins Universum der technischen Bilder (Göttingen, European Photography, 1985).




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Flusser, Vilém, 1920 – 
Filosofia da caixa preta – São Paulo : Hucitec, 1985. - 92 p. 

EDITORA HUCITEC
São Paulo, 1985
Direitos autorais 1983 de Vilém Flusser. Título do original alemão: Für eine Philosophie der Fotografie. Tradução do autor. Direitos de publicação em língua portuguesa reservados pela Editora de Humanismo, Ciência e Tecnologia “Hucitec” Ltda., Rua Comendador Eduardo Saccab, 344 – 04602 – São Paulo, Brasil. Tel.: (011) 61-6319. 
Projeto gráfico: Estúdio Hucitec. 
Capa: Fred Jordan. 
Flusser : Filosofia da Caixa Preta (5 - A Fotografia)
Flusser : Filosofia da Caixa Preta (6 - A Distribuição da Fotografia)

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pequena nota de rodapé...

Ontológico é um adjetivo que define tudo que diz respeito à ontologia, ou seja, que investiga a natureza da realidade e da existência.



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