terça-feira, 26 de julho de 2022

Moby Dick: 6 - A rua

Moby Dick



Herman Melville




6 - A rua


Se eu tinha ficado estupefato na primeira vez em que vi um indivíduo tão exótico quanto Queequeg circulando no meio de uma sociedade educada de uma cidade civilizada, essa estupefação logo se desvaneceu quando, em pleno dia, dei uma volta pelas ruas de New Bedford.
Em todos os portos importantes, as ruas junto às docas oferecem à vista tipos dos mais bizarros jamais descritos, chegados de terras distantes. Mesmo na Broadway e na Chestnut Street, os marujos Mediterrâneos às vezes esbarram nas damas assustadas; a Regent Street não é desconhecida de Lascares e Malaios; e em Bombaim, no jardim de Apolo, verdadeiros Ianques muitas vezes assustaram os nativos. Mas New Bedford supera Water Street e Wapping. Nestes últimos antros mencionados veem-se apenas marinheiros, mas em New Bedford encontram-se verdadeiros canibais papeando nas esquinas; realmente selvagens; muitos dos quais ainda levam carne sem batismo sobre os ossos. É uma visão muito estranha.
Mas, além dos nativos das ilhas Fiji, de Tonga, de Erromango, de Pannan e de Brigh, e, além dos espécimes selvagens das tripulações de baleeiros que vagueiam despreocupados pelas ruas, você vai ver outras cenas ainda mais curiosas, com certeza mais engraçadas. Toda semana chegam a esta cidade grupos de rapazes ainda inexperientes de New Hampshire e Vermont, todos sedentos de lucros e glórias na pescaria. Na maioria são rapagões robustos, que já desmataram bosques, e agora querem deixar o machado para empunhar a lança da baleia. Muitos desses rapazes estão verdes como as Green Mountains. Em algumas coisas, você diria que têm apenas algumas horas de idade. Veja só! Aquele garoto virando a esquina. Está usando um chapéu de castor e fraque, com um cinto de marinheiro e uma faca embainhada. E lá vem outro usando um chapéu impermeável e capa de bombazina.
Nenhum janota da cidade se compara com um janota do campo – quero dizer, o janota verdadeiramente caipira –, um sujeito que nos dias de canícula faz a colheita de seus dois acres usando luvas de pelica para não bronzear as mãos. Ora, quando um desses janotas do campo resolve ter uma reputação ilustre e se engaja numa grande pesca da baleia, você precisa ver que coisas engraçadas ele faz chegando ao porto. Ao encomendar sua roupa de marinheiro, manda colocar botões de bronze nos coletes; presilhas nas calças de lona. Ai, pobre capiau! Com que violência essas presilhas irão se arrebentar no primeiro vendaval, quando fordes impelidos, junto com as presilhas, os botões e tudo o mais, goela abaixo da procela.
Mas não pense que esta famosa cidade tem apenas arpoadores, canibais e caipiras para mostrar aos visitantes. De jeito nenhum. Ainda assim, New Bedford é um lugar esquisito. Se não fôssemos nós, os baleeiros, esta extensão de terra ainda hoje seria um lugar em condições tão lamentáveis quanto a costa de Labrador. Algumas regiões limítrofes assustam por sua penúria. A própria cidade talvez seja o lugar mais caro para se viver de toda a Nova Inglaterra. É a terra do azeite, é verdade; mas não como Canaã; também é a terra do milho e do vinho. Mas o leite não corre pelas ruas, assim como tampouco as ruas são pavimentadas com ovos frescos na primavera. Mas apesar disso em nenhum lugar dos Estados Unidos se encontram casas mais luxuosas, parques e jardins mais opulentos, do que em New Bedford. De onde vieram? Como foram erigidos aqui, outrora resto macilento de uma região?
Veja os arpões emblemáticos de ferro naquelas mansões altaneiras, e sua pergunta será respondida. É isso mesmo; todas essas lindas casas e jardins floridos vieram dos oceanos Atlântico, Pacífico e Índico. Foram arpoadas e carregadas para lá desde o fundo do mar. Poderia Herr Alexandre fazer proeza igual?
Dizem que os pais em New Bedford oferecem baleias como dotes para as suas filhas e presenteiam as sobrinhas com muitas marsopas. É preciso ir a New Bedford para assistir a um casamento ilustre; pois dizem que há reservatórios de óleo em todas as casas, e que todas as noites queimam sem economizar velas de espermacete.
Durante o verão a cidade é muito agradável; repleta de belos plátanos – longas avenidas verdes e douradas. Em agosto, lá no alto, as maravilhosas e majestosas castanheiras, como candelabros, oferecem ao transeunte seus cones afilados e eretos de flores congregadas. Tão onipotente é a arte que em vários bairros de New Bedford sobrepôs terraços de flores em estéreis refugos de rochas, descartadas no último dia da criação.
E as mulheres de New Bedford, essas florescem como suas próprias rosas vermelhas. Mas as rosas só florescem no verão, enquanto o carmim de suas faces é perene como a luz do sol no sétimo céu. Em nenhum outro lugar encontrarás flores assim, exceto em Salem, onde dizem que as moças exalam certo almíscar que os marinheiros apaixonados sentem a milhas do litoral, como se estivessem se aproximando das perfumadas Molucas e não das areias puritanas.


Continua na página 46...

Moby Dick: 3.2 - A Estalagem do Jato 
Moby Dick: 4 - A colcha
Moby Dick: 5 - Café-da-manhã
Moby Dick: 6 - A rua
Moby Dick: 7 - A Capela

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Moby Dick é um romance do escritor estadunidense Herman Melville, sobre um cachalote (grande animal marinho) de cor branca que foi perseguido, e mesmo ferido várias vezes por baleeiros, conseguiu se defender e destruí-los, nas aventuras narradas pelo marinheiro Ishmael junto com o Capitão Ahab e o primeiro imediato Starbuck a bordo do baleeiro Pequod. Originalmente foi publicado em três fascículos com o título "Moby-Dick, A Baleia" em Londres e em Nova York em 1851,


O livro foi revolucionário para a época, com descrições intrincadas e imaginativas do personagem-narrador, suas reflexões pessoais e grandes trechos de não-ficção, sobre variados assuntos, como baleias, métodos de caça a elas, arpões, a cor do animal, detalhes sobre as embarcações, funcionamentos e armazenamento de produtos extraídos das baleias.

O romance foi inspirado no naufrágio do navio Essex, comandado pelo capitão George Pollard, que perseguiu teimosamente uma baleia e ao tentar destruí-la, afundou. Outra fonte de inspiração foi o cachalote albino Mocha Dick, supostamente morta na década de 1830 ao largo da ilha chilena de Mocha, que se defendia dos navios que a perturbavam.

A obra foi inicialmente mal recebida pelos críticos, assim como pelo público por ser a visão unicamente destrutiva do ser humano contra os seres marinhos. O sabor da amarga aventura e o quanto o homem pode ser mortal por razões tolas como o instinto animal, sendo capaz de criar seus fantasmas justamente por sua pretensão e soberba, pode valer a leitura. 


E você com o quê se identifica?



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