segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Flusser : Filosofia da Caixa Preta (9. A Urgência de uma Filosofia da Fotografia)

Filosofia da Caixa Preta




VILÉM FLUSSER



Ensaios para uma futura filosofia da fotografia



9. A Urgência de uma Filosofia da  Fotografia


No decorrer deste ensaio, vieram à tona estes conceitos-chave: imagem, aparelho, programa, informação. Tais conceitos formam as pedras angulares de toda filosofia da fotografia, baseando-se na seguinte definição de fotografia: imagem produzida e distribuída por aparelhos segundo um programa, a fim de informar receptores. Todo conceito-chave, por sua vez, implica conceitos subsequentes. Imagem implica magia. Aparelho implica automação e jogo. Programa implica acaso e necessidade. Informação implica símbolo. Os conceitos implícitos permitem ampliar a definição da fotografia da seguinte maneira: imagem produzida e distribuída automaticamente no decorrer de um jogo programado, que se dá ao acaso que se torna necessidade, cuja informação simbólica, em sua superfície, programa o receptor para um comportamento mágico.

A definição tem curiosa vantagem: exclui o homem enquanto fator ativo e livre. Portanto, é definição inaceitável. Deve ser contestada, porque a contestação é a mola propulsora de todo pensar filosófico. De maneira que a definição proposta pode servir de ponto de partida para a filosofia da fotografia.

Os conceitos imagem, aparelho, programa, informação, considerados mais de perto, revelam o chão comum do qual brotam. Chão da circularidade. Imagens são superfícies sobre as quais circula o olhar. Aparelhos são brinquedos que funcionam com movimentos eternamente repetidos. Programas são sistemas que recombinam constantemente os mesmos elementos. Informação é epiciclo negativamente entrópico que deverá voltar à entropia da qual surgiu. Quando refletimos sobre os quatro conceitos chave, estamos no chão do eterno retorno. Abandonamos a reta, onde nada se repete, chão da história, da causa e efeito. Na região do eterno retorno, sobre a qual nos coloca a fotografia, as explicações causais devem calar-se. “Rest, rest, dear spirit” como dizia Cassirer com referência à causalidade. Categorias não-históricas devem ser aplicadas à filosofia da fotografia, sob pena de não se adequarem ao seu assunto.

No entanto, o abandono do pensamento causal e linear se dá espontaneamente, não é preciso deliberá-lo. Pensamos já pós-historicamente. Os conceitos-chaves sustentadores da fotografia já estão espontaneamente encrustados em nosso pensar. Darei como único exemplo, a cosmologia atual.

Reconhecemos no cosmos um sistema que tende para situações cada vez mais prováveis. Situações improváveis surgem ao acaso, de vez em quando. Mas retornarão, necessariamente, para a tendência rumo à probabilidade. Reformulando: reconhecemos no cosmos um sistema que contém um programa inicial, no big bang, que vai se realizando por acaso, automaticamente. No curso da realização, surgirão informações que vão pouco a pouco, se desinformando. A cada instante, o universo é situação surgida ao acaso, que levará necessariamente à morte “térmica”, de forma que o universo é aparelho produtor do caos. A nossa própria cosmologia não passa de imagem desse aparelho. Em consequência, tal cosmovisão deve descartar toda explicação causal e recorrer a explicações formais, funcionais. Os quatro conceitos-chave da fotografia são também os da cosmologia.

A estrutura pós-histórica do nosso pensamento pode ser encontrada em vários outros terrenos: biologia, psicologia, linguística, informática, cibernética, para citar apenas alguns. Em todos, estamos já, de forma espontânea, pensando informaticamente, programaticamente, aparelhisticamente, imageticamente. Estamos pensando do modo pelo qual “pensam” computadores. Penso que estamos pensando de tal maneira porque a fotografia é o nosso modelo, foi ela que nos programou para pensar assim.

A tese não é muito nova. Sempre se supôs que os instrumentos são modelos de pensamento. O homem os inventa, tendo por modelo seu próprio corpo. Esquece-se depois do modelo, “aliena-se”, e vai tomar o instrumento como modelo do mundo, de si próprio e da sociedade. Exemplo clássico dessa alienação é o século XVIII. O homem inventou as máquinas, tendo por modelo seu próprio corpo, depois tomou as máquinas como modelo do mundo, de si próprio e da sociedade. Mecanicismo. No século XVIII, portanto, uma filosofia da máquina teria sido a crítica de toda ciência, toda política, toda psicologia, toda arte. Atualmente, uma filosofia da fotografia deve ser outro tanto. Crítica do funcionalismo.

A coisa não é tão simples. A fotografia não é instrumento, como a máquina, mas brinquedo como as cartas do baralho. No momento em que a fotografia passa a ser modelo de pensamento, muda a própria estrutura da existência, do mundo e da sociedade. Não se trata, nesta revolução fundamental, de se substituir um modelo pelo outro. Trata-se de saltar de um tipo de modelo para outro (de paradigma em paradigma). Sem circunlocuções: a filosofia da fotografia trata de recolocar o problema da liberdade em parâmetros inteiramente novos.

Toda filosofia trata, em última análise, do problema da liberdade. Mas, no decorrer da história, o problema se colocava da seguinte maneira: se tudo tem causa, e se tudo é causa de efeitos, se tudo é “determinado”, onde há espaço para a liberdade? Reduziremos as múltiplas respostas a uma única: as causas são impenetravelmente complexas, e os efeitos, tão imprevisíveis, que o homem, ente limitado pode agir como se não estivesse determinado. Atualmente, o problema se coloca de outro modo: se tudo é produto do acaso cego, e se tudo leva necessariamente a nada, onde há espaço para a liberdade? Eis como a filosofia da liberdade deve colocar o problema da liberdade. Por isto e para isto é necessária.

Reformulemos o problema: constata-se em nosso entorno, como os aparelhos se preparam a programar, com automação estúpida, as nossas vidas; como o trabalho está sendo assumido por máquinas automáticas, e como os homens vão sendo empurrados rumo ao setor terciário, onde brincam com símbolos vazios; como o interesse dos homens vai se transferindo do mundo objetivo para o mundo simbólico das informações: sociedade informática programada; como o pensamento, o desejo e o sentimento vão adquirindo caráter de jogo em mosaico, caráter robotizado; como o viver passa a alimentar aparelhos e ser por eles alimentado. O clima de absurdo se torna palpável. Aonde, pois, o espaço para a liberdade?

Eis que descobrimos, à nossa volta, gente capaz de responder à pergunta: fotógrafos. Gente que já vive o totalitarismo dos aparelhos em miniatura; o aparelho fotográfico programa seus gestos, automaticamente, trabalhando automaticamente em seu lugar; age no “setor terciário”, brincando com símbolos, com imagens; seu interesse se concentra sobre a informação na superfície das imagens, sendo que o objeto “fotografia” é desprezível; seu pensamento, desejo e sentimento tem caráter fotográfico, isto é, de mosaico, caráter robotizado; alimentam aparelhos e são por eles alimentados. Não obstante, os fotógrafos afirmam que tudo isto não é absurdo. Afirmam serem livres, e nisto, são protótipos do novo homem.

A tarefa da filosofia da fotografia é dirigir a questão da liberdade aos fotógrafos, a fim de captar sua resposta. Consultar sua práxis. Eis o que tentaram fazer os capítulos anteriores. Várias respostas apareceram: 1. o aparelho é infra-humanamente estúpido e pode ser enganado; 2. os programas dos aparelhos permitem introdução de elementos humanos não-previstos; 3. as informações produzidas e distribuídas por aparelhos podem ser desviadas da intenção dos aparelhos e submetidas a intenções humanas; 4. os aparelhos são desprezíveis. Tais respostas, e outras possíveis, são redutíveis a uma: liberdade é jogar contra o aparelho. E isto é possível.

No entanto, esta resposta não é dada pelos fotógrafos espontaneamente. Somente aparece como escrutínio filosófico da sua práxis. Os fotógrafos, quando são provocados, dão respostas diferentes.Quem lê os textos escritos por fotógrafos, verifica crerem eles que fazem outra coisa. Creem fazer obras de arte, ou que se engajam politicamente, ou que contribuem para o aumento do conhecimento. E quem lê história da fotografia (escrita por fotógrafo ou crítico), verifica que os fotógrafos creem dispor de um novo instrumento para continuar agindo historicamente. Creem que, ao lado da história da arte, da ciência e da política, há mais história: a da fotografia. Os fotógrafos são inconscientes da sua práxis. A revolução pós-industrial, tal como se manifesta, pela primeira vez no aparelho fotográfico, passou despercebida pelos fotógrafos e pela maioria dos críticos de fotografia. Nadam eles na pós-indústria, inconscientemente.

Há, porém, uma exceção: os fotógrafos assim chamados experimentais; estes sabem do que se trata. Sabem que os problemas a resolver são os da imagem, do aparelho, do programa e da informação. Tentam, conscientemente, obrigar o aparelho a produzir imagem informativa que não está em seu programa. Sabem que sua práxis é estratégia dirigida contra o aparelho. Mesmo sabendo, contudo, não se dão conta do alcance de sua práxis. Não sabem que estão tentando dar resposta, por sua práxis, ao problema da liberdade em contexto dominado por aparelhos, problema que é, precisamente, tentar opor-se.

Urge uma filosofia da fotografia para que a práxis fotográfica seja conscientizada. A conscientização de tal práxis é necessária porque, sem ela, jamais captaremos as aberturas para a liberdade na vida do funcionário dos aparelhos. Em outros termos: a filosofia da fotografia é necessária porque é reflexão sobre as possibilidades de se viver livremente num mundo programado por aparelhos. Reflexão sobre o significado que o homem pode dar à vida, onde tudo é acaso estúpido, rumo à morte absurda. Assim vejo a tarefa da filosofia da fotografia: apontar o caminho da liberdade. Filosofia urgente por ser ela, talvez, a única revolução ainda possível.


continua pág 42...

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SOBRE O AUTOR 
na edição brasileira de 1985


Nascido em Praga em 1920, Vilém Flusser iniciou seus estudos de Filosofia na Universidade Carolíngia de Praga, em 1933. Emigrou para Londres em 1940 e para São Paulo em 1941. Seus primeiros ensaios sobre Linguística e Filosofia foram publicados 1957 no “Suplemento Literário” d’O Estado de São Paulo, do qual passou a ser colaborador constante. Em 1962 tornou-se membro do Instituto Brasileiro de Filosofia e professor de Filosofia da Comunicação na Faculdade Armando Álvares Penteado (FAAP), em São Paulo. Tornou-se co-editor da Revista Brasileira de Filosofia em 1964 tendo sido nomeado delegado especial do Ministério das Relações Exteriores para cooperação cultural com os Estados Unidos e a Europa, em 1966. Entre 1965 e 1970, organizou seminários e conferências no Departamento de Humanidades do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) sobre a Filosofia da Linguagem e abriu espaço em jornal par escrever crônicas diárias sobre filosofia do cotidiano (“Posto Zero”, da Folha de São Paulo). Em 1972, mudou-se para a Itália e, em 1976, para a França, onde reside atualmente, publicando principalmente na Alemanha e França. Publicou os livros: Língua e Realidade (São Paulo, Herder, 1963); A História do Diabo (São Paulo, Martins, 1965); Da Religiosidade (São Paulo, Comissão Estadual de Cultura, 1967); La Force du Quotidien (Paris, Mame, 1972); Le Monde Codifié (Paris, Institut de l’Enviroment, 1972); Naturalmente (São Paulo, Duas Cidades, 1979); Pós – História (São Paulo, Duas Cidades, 1982); Für eine Philosophie der Fotografie (Göttingen, European Photography, 1983); Ins Universum der technischen Bilder (Göttingen, European Photography, 1985).




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Flusser, Vilém, 1920 – 
Filosofia da caixa preta – São Paulo : Hucitec, 1985. - 92 p. 

EDITORA HUCITEC
São Paulo, 1985
Direitos autorais 1983 de Vilém Flusser. Título do original alemão: Für eine Philosophie der Fotografie. Tradução do autor. Direitos de publicação em língua portuguesa reservados pela Editora de Humanismo, Ciência e Tecnologia “Hucitec” Ltda., Rua Comendador Eduardo Saccab, 344 – 04602 – São Paulo, Brasil. Tel.: (011) 61-6319. 
Projeto gráfico: Estúdio Hucitec. 
Capa: Fred Jordan. 
Flusser : Filosofia da Caixa Preta (9. A Urgência de uma Filosofia da  Fotografia)
Flusser : Filosofia da Caixa Preta (Flusser e a Liberdade de Pensar)

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pequena nota de rodapé...

Ontológico é um adjetivo que define tudo que diz respeito à ontologia, ou seja, que investiga a natureza da realidade e da existência.

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