domingo, 27 de novembro de 2022

histórias davóinha: becos sem saída (III) 25bs – é domingo

becos sem saída



(III) o descolocado
25bs – é domingo

baitasar



nunca sejamos induzidos a seguir uma direção contrária à lei maior e se a recusa de ir não funcionar é preciso não deixar a vida parar enquanto as rezas procuram curar as feridas mais arrojadas

Ó mãe, vós que sois a seiva viva aonde as sementes germinam, abençoe o nosso pão de cada dia, fruto da vossa terra generosa e faça com que ele nunca falte em nossas mesas. Abençoe os quatro cantos da terra com vosso santo e divino amor, e faça de nós eternos aprendizes, sementes vivas da vossa verdade e do vosso infinito conhecimento.

Salve, salve, querida mãe Obá!

Akirô Obà Yê

terminada a reza, olha na sua volta, a sua casa está em ordem, pega seus balangandãs com alegria, adora aquelas pratas pendentes na cintura, regalos do virgílio ajuntados entre ferro-velho e vidro quebrado

Chegaram!

maria memória se aborrece com a sua rotina aos domingos, as mesmas bocas para alimentar que não ajudam com as panelas nem com os pratos e canecas, muito menos, com o ferramental das facas, garfos e colheres – viu em algum lugar, ou alguém lhe contou, que na índia as pessoas não usam garfos nem facas ou colheres, apenas, as mãos, achou boa a ideia – que ficaram jogados na bacia de assento até acabar seu pequeno conjunto de garfo, faca e colher, O que fariam, se perguntava enquanto adivinhava se comeriam com as mãos nuas e cruas ou lavariam a louça da bacia, É quase certo que comeriam com as mãos como na tal Índia!

cansou das adivinhações até que entediada, abatida e silenciosa enfiava as mãos na água e sabão, Preciso de ajuda aqui, Mãinha, isso é coisa de mulherzinha, Quem disse isso, Ó Maria... deixa os meninos. O Lamparino precisa de algum descanso, Hummm..., Agora, à tarde, vai ter um jogo importante na praça. O futebol é o futuro..., Hummm..., tá bem, então o painho ajuda, Eu preciso ir com o miúdo, É agora o tal jogo, Daqui mais um pouquinho, Hummm...

os outros dias são iguais aos domingos, o mais provável é nunca haver ventos fortes o suficiente empurrando os três para os serviços de mulherzinha, nenhuma ajudação na lavação de louça ou na bacia da roupa suja, tampouco, no ajeitamento e asseio da casa, Já me dou por satisfeita se a roupa encardida não ficar jogada no chão, dá de ombros, já está acostumada, mesmo porque dar de ombros é o que se permite dar nestes dias de sangramento desregrado e pau a pique

a velhice é uma fumaça desaparecendo lentamente, a vida se dissipando e não existe o mundo da fumaça dissipada, O Virgílio não tem mais apetite ou sou eu? Sou eu que não sou mais saborosa? Fiquei enjoativa? Eu me pergunto por que eu tenho vontade algumas vezes mais que em outras, e o Virgílio não parece mais ter o gosto que quero comer. Acho que estou degenerando em fumaça. Não consigo evitar, tenho mais necessidade de amigos do que inimigos, todo escravizado é inimigo do seu dono... não quero ser dona de ninguém.

mas esse domingo é diferente, Ai de quem não ajudar! As bundas pretas de vocês vão ganhar uma boas chineladas. Ouviram? Então? Estamos entendidos, Sim, mãinha, Venham comigo, vamos examinar o pátio – uma terrinha atrás da casa, nada muito grande ou espaçoso, um pedaço de terra nivelado, em cima dessa terra vazia se pode inventar uma casinha para um dos miúdos –, ela fiscaliza o chão de terra com duas ou três touceiras de capim ruim, Vou arrancar isso!

Não mãinha, as vozes dos miúdos saíram juntas e assustadas

Por quê, não?

as duas sombras miúdas não se mexiam enquanto a resposta saia na ponta da língua, Porque é atrás do mato que a cavalaria se esconde da polícia.

Não tem cavalaria ou polícia que me impeça de arrancar esse mato! - pronto, está vingada da louçaria na pia

procura formigas, esgana todas com seus pés descalços, nenhum remorso, virgílio está largado num canto, saboreando seu fumo de corda, coisa pouca, Bichos teimosos, brotam do chão, esmaga uma, duas, três, acaba com a trilha, esgana tudo, esparrama as formigas, olha para cima, procura moscas, está pronta para agarrá-las com suas mãos, Quando chega o verão é essa nojeira toda de moscas e à noite mosquitos.

virgílio observa do seu refúgio, entre um gole de fumaça e uma baforada cuspida, faz provocação, Maria, quem com ferro fere não sabe quanto dói, São apenas formigas e moscas.

a mesa está pronta, a lona verde-oliva esticada sobre suas cabeças, um pano de prato está colocado delicadamente sobre laranjas, pães, farofa, couve, Faltaram os bolinhos de abará e as bananas fritas... ficam para a próxima feijoada.

a miúda arrotando a mamada, Ai! Não morde a máinha, os miúdos sentados nas beiradas das cadeiras, limpos e lustrados, arrumadinhos e muito bem recomendados, prontos para serem exibidos, Não saiam daqui, entenderam, Sim, mãinha!

volta à janela, espera o movimento de lá para cá, o beco tem ficado deserto por esses dias, na parede o quadro do santo padre segue pendurado, ajeita um pequeno desvio que acredita ter visto, uma discreta inclinação à direita

vai até o altar do seu orixá Obà, faz reverência de reza à sua deusa guerreira, "Salve nossa amada e querida mãe Obà, Senhora mãe da terra! Diante da vossa bondade e da vossa luz, nós vos reverenciamos, querida mãe.

Pedimos, senhora mãe, que nos acumule de conhecimentos e nos torne radiantes, diante da vossa presença, do vosso amor e da vossa misericórdia.

Vós que sois mãe terrena por natureza, ampare-nos, sustente-nos, guie-nos, conduza-nos e envolva-nos em todos os sentidos, carnais e espirituais.

Traga-nos, ó mãe, luz radiante onde houver a escuridão por falta de fé. Traga-nos, querida mãe, o entendimento das coisas visíveis, proteja-nos com vossa ajuda justa e verdadeira. Paralise, ó mãe divina, o que estiver desvirtuado em nosso caminho, transformando-o em conhecimento puro. Faça de nós, ó mãe, vossos eternos filhos e filhas encantadas do plano de Deus, purificando os possíveis desvios de nossa personalidade.

Querida mãe Obà, que vossa natureza vegetal, vossas flores, frutos e todo vosso néctar e mel sejam um remédio para nossas vidas, absorvendo as energias negativas e transformando-as em positivas. Libere vossas essências e radiações energizadoras, querida mãe, para a cura, cicatrização, limpeza, purificação e potencialização da nossa mente, dos nossos familiares, das nossas casas e lugares de trabalho, mantendo as vibrações virtuosas e elevadas. Estimule-nos, ó divina mãe, na busca do conhecimento interior da verdade e da fé. Afaste de nós toda ironia, vícios e pensamentos desvirtuados.

Livre-nos de falsas verdades religiosas e de darmos mau uso ao raciocínio e ao conhecimento. Ative, ó mãe, com seu gesto seguro, nossa religiosidade. paralise e perdoe os excessos por nós cometidos, aquiete-nos, mãe querida, sustente-nos, conduza-nos, leve-nos em vossos braços firmes e seguros, para que nunca sejamos induzidos a seguir uma direção contrária à lei maior.

Ò mãe, vós que sois o sangue vivo onde as sementes germinam, abençoe o nosso pão de cada dia, fruto da vossa terra generosa, faça com que ele nunca falte em nossas mesas. Abençoe os quatro cantos da terra com vosso santo e divino amor, e faça de nós eternos aprendizes, sementes vivas da vossa verdade e do vosso infinito conhecimento."

Salve, salve, querida mãe Obà!

Akirô Obà Yê

é domingo...

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