esse primeiro dia do resto das nossas vidas promete o recomeço do começo ou começo do recomeço, aqui ao sul de lugar nenhum, não será mais como em todos outros anos e seus incontáveis 200 dias, nossas vidas anônimas mudaram
desaparecemos, nossos mortos extraviados em imagens descoloridas e borradas
a repetição replica imitações como uma melodia constante enquanto dançamos em círculos inundados por simulações, incompetências, más intenções e medos, ressurgimos esperando e torcendo que tudo dê certo, apesar das desinformações e disfarces crônicos das nossas escolhas, somos as gorjetas ao barman, não há como copiar, colar ou imitar, uma confusão sem fim com tantas e diferentes máscaras que nunca antes havia ecoado com tanta incredulidade em nossas vidas submersas
quem
ganha e quem perde, é apenas uma pergunta que a maioria finge ser incapaz de se
fazer, mesmo repetindo as promessas do mesmo filme num clima de déjà-vu, a
sensação de já ter vivido esse primeiro dia por tantos anos, nunca tão dolorido
e fora do lugar
não
é muito difícil prever os resultados quando pensamentos desafinados se deparam
com as dificuldades do dia-a-dia, somos convencidos que é preciso aceitar a
rotina da travessia, apesar da mundanalidade dos nossos defeitos e infâmias,
apoiados, quem sabe, na coragem e virtudes da humanidade amorosa nos compelindo fazer de cada dia outro dia possível
é
preciso entender que cada repetição carrega consigo uma promessa de
familiaridade, a ilusão do controle, no entanto, esse véu de semelhanças não
consegue esconder as nuances sutis que revelam a natureza de cada momento
repetido se repetindo
fico
ansioso com essas datas especiais, acho que por isso cheguei tão cedo, não
quero perder nada, quase não consegui sentar à mesa, engolir o café, saborear delícias do pão e misturas das geleias do mercadinho colonial do Pedro, nos arredores do nosso Rondon
saí alguns passos e voltei, esqueci meu alicate de unhas antes de sair para outro dia de quadro e giz, hábito de anos, não lembrava se havia fechado a porta, estava trancada, eu desatento querendo abreviar tempo e distância deixei o alicate de unhas para trás, já havia deixado tantas coisas para trás, boletos vencidos, livros alagados, memórias submersas
neste
novo mundo de conexões instantâneas, apertar um botão leva ou trás perguntas e
respostas em questão de segundos, vivemos a tapeação que tempo e distância
foram dobrados à nossa vontade, acreditamos ingenuamente que barreiras foram
derrubadas de uma vez por todas enquanto a sopa de cabeça de porco e repolho da idade média religiosa nos persegue pendurada na janela
mas à noite, com olhos cansados pela luz da tela que me consome em mais um vídeo, mais uma mensagem, mais uma notificação no aparelho mágico que seguro com minhas mãos e resplandece como um totem prometendo me conectar a todos, tudo em um piscar de olhos
vai
longe o tempo das
histórias contadas olhos nos olhos, longas cartas esperadas com ansiedade,
encontros marcados com antecedência e a emoção única de cada reencontro,
abraçamos comodidade moderna com toda intensidade, certos de que vivemos na
era da comunicação verdadeira sem cortinas e luzes apagadas,
assim
como um espelho reflete infinitas cópias de si mesmo, repetição nos confronta
com reflexos das nossas escolhas, desdobrando-se em padrões entrelaçados que
nos moldam melodramaticamente, ficou difícil dormir à noite, saudade dos gemidos da casa
a
cada repetição somos desafiados a aprender com o que veio antes, encontrar
novos significados nas velhas narrativas e abraçar a mudança que
inevitavelmente acompanha a constância meia bêbada do vento soprando, aluguel vencido, fedor nauseabundo dos entulhos, a decomposição ao vivo e em cores, não há mais posição de largada ou chegada entre tantos destroços
na dança cíclica da repetição encontramos a oportunidade de transcender a imitação do passado e abraçar a autenticidade do aqui e agora, antes da mensagem: transmissão encerrada. é preciso reconhecer as diferentes nuances que compõe cada repetição, podemos sair da sujeira, arranjar algum emprego, mas continuamos esticados procurando por uma porta para desvendar camadas profundas da nossa própria jornada em busca da conscientização, nos permitir descobrir a beleza cínica que reside na imitação da cópia de si mesmo pode nos levar às corridas do dia seguinte
cheguei
junto com a abertura do portão, esvoaçava como uma borboleta, outros me seguiam
como gaviões, havia urubus, claro, pairando sobre caturritas, pombas e
pardais tagarelando
o tempo me invadiu da saudade de ensinar ler histórias da rua e dos livros, tirando tampas da inocência, atento as coberturas da imprensa e televisão
a marca das águas não desapareceu, resiste nos fragmentos escondidos, memórias, frases, lodo fedorento encrustado por trás das cadeiras duras de fórmica, ainda dá tempo de olhar as paredes, as árvores adormecidas, os bancos de cimento feridos, caminhos de pedra revirados, jardins destruídos, botecos fechados, entulhos de volta para o nada
o burburinho se forma ligeiro e o chão se preenche de maneira desordenada, as vidas dispersas se aglomerando no pátio, caminhando, correndo, esperando um sinal, gostava de escutar a chuva, mas agora a chuva não ajuda, acende nossos medos
as
conversas e as histórias parecidas, inevitavelmente repetiam a mesma frase,
Perdemos tudo.
antigas amizades sobreviveram, novas amizades se encontraram no abrigo dos ginásios, escolas, o socorro das doações chegaram em meio a escuridão das vidas perdidas, animais deixados para trás, gente e bichos desaparecidos, muitas histórias e resgates, barcos, voluntários
filas silenciosas e longas, atordoadas e tristes se formavam
caminhões gigantes de solidariedade chegando com muita água, arroz, feijão, farinhas, açúcar, cobertas, mantas, colchões, travesseiros, abrigos esportivos, calçados, calças jeans, blusões, algumas bermudas, piercings, tatuagens
é o primeiro dia do resto das nossas vidas
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Leia também:
Ensaio - primeiro dia: 01
Ensaio - cartão magnético: 02
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