sábado, 20 de abril de 2013

O lugá de respeito dos preto


Ensaio 35
baitasar
Quando enfiei os olho na nêga, não conseguia nem deixá caí uma píscadela, menô que fosse, não queria perdê das vista, corrê o risco do sumiço, já fazia, no pouco que contava, cinco dia e noite correndo no encalço: chegava perto, ficava longe; brincadeira modo de cansá a teimosia do animal que ainda não foi domado, fazê perdê as esperança, assim não precisa usá da força mais que a necessidade. Mercadoria avariada não dava valô. A teimosia fez a nêga dormi em toca, pendurada em galho, comendo folha, virô bicho causo do atrevimento que carregava nas ideia. Ali, tava a mercadoria, a valentia amarrada no pescoço, via o sangue nas veia, as vista brilhava no escuro, parecia duas lua cheia
—        Ocê é a nêga Laetitia?
Nenhuma resposta com a língua, as vista examinava o mato, o corpo retesava, o sangue das veia corria e saltava, correnteza que não saia do redemoinho, como os preto que tentava fugi sem lugá pra escapá. A nêga forte e decidida ficô amarrada, mais assanhada de pulá no pescoço modo de quebrá, me arrancá o coração com os dente, enfiá as garra na carne até sobrá a carcaça abandonada, sem olhá pra trás, fugindo. Repeti a pergunta, até que o chicote da língua desenrolô das ideia, misturado com afobação da respiração que ia e voltava
—        Ocê é a nêga Laetitia?
—        E se fô?
—        Volta daqui, sendo ou não sendo.
—        Olho, e mais olho, até entendê como deve sê um embaraço pro preto acorrentá outro preto, fazê a aliança com o branco mais forte, como deve sê dificultoso pro preto sê branco, a terra dos preto tá sempre repegando ele, um preto que mente o que não é, não é preto nem é branco, acinzentô. A escravidão não é a natureza, um dia havia de acabá. É preciso escolhê o lado que tá na corda.
Dei puxão de aviso no aperto do pescoço, a corda aumentô o apetite, parecia que a nêga ficava mais metida, mais vaidosa, a beleza forte das mulhé da decisão. Não sei o como, nem o por quê, mais a nêga me parecia se arrumando pras festa da família, trançando os cabelo, os colorido dos pano, os fio de conta, as cantoria, o orgulho do futuro no quintal da casa. Puxei o aperto
—        Agora, ocê começa voltá no bem ou no mau, a nêga Laetitia escolhe.
A mulhé do outro lado da corda tinha as mão enfiada na terra, até onde a terra deixava. Quero lhe perguntá da sua vida, pegá na mão e levá na sombra da gerivá. Sabia que assim não ia sê
—        Antes de segui de volta, ocê me responda: é a natureza de ocê levá de volta os preto fujão? Quem tá preso nessa corda? Ocê ou eu?
—        Não sei o certo, mais a corda mostra quem manda, quem obedece. Se soltá a corda ocê continua fujona do dono de ocê.
—        Não tenho dono!
—        Ocê tem dono... tem dono, sim.
Dei outro puxão na corda e apontei a trilha da volta. Tava do lado certo da corda, tava do lado da lei que prende e manda soltá. O aperto no pescoço havia de fazê ela entendê que até a inteireza e a retidão tem dono. É preciso sobrevivê, escolhê um lado não adianta, é preciso escolhê o lado certo, o lado que vive
—        Covarde! Medroso!
—        É ocê que tá na ponta do laço.
—        Nada é pra sempre, nem ocê, nem eu, nem o laço.
—        Pode até sê, mais enquanto não se termina tudo, tenho um serviço que precisa de acabamento com a entrega da fujona. Nunca deixei de colocá qualqué mercadoria no lugá, não tenho extravio de preto, carrego todos de volta, não há de sê ocê que não volta.
Pergunto se tem precisão da tornozeleira de latão juntá os pé na corrente. Não responde que sim nem que não. Decido que não. Os pé acorrentado faz encumpridá a estrada. Amarro as mão nas costa com a corda do pescoço, a ponta continua na mão de quem obedece.
Foi assim que o avô do avô colocô as vista da vigilância na nêga Laetitia e carregô com puxão e empurrão até o casarão dos Canela Preta. O que fazê com aquela preta? O tempo com a aprisionada desmanchava a solidão, mais do que nunca ele queria que ela tivesse do seu lado. A presença da Laetitia pareceu revelá ao Capitão a verdade da sua vida deserta, disfarçada de branco. Um preto solitário de preto na volta. Ninguém. Um homem desabitado de conversa. Não tinha nenhum de vez enquanto em sua vida. Não era só a beleza da mulhé, o cheiro da fêmea, os formigamento...
—        Não fico com preto que laça preto.
—        Não sei fazê outra coisa.
—        Aprenda.
... ela lhe fazia pensá, mostrava um mundo que não precisava sê do jeito que é, emprestado pelos branco
—        Ocê não pode evitá a vida de vivê.
—        Nem ocê!
—        Mais posso ensiná que tem vez que a vida não é vida, é morte extraviada, ocê zanzando feito morto-vivo, esperando mais nada que a terra cobrí a carne fedida.
As memória daqui e de lá, que o avô do avô quis contá, se misturô com as saudade que deu jeito de alembrá. Até que o neto do neto encontrô o lugá do casarão que acobertô os seus pecado, chegô carregado das história, apaixonado com a memória
—        Esse foi o neto do neto de quem?
Neinho, pra trás do pai tudo é avô, pra frente do fio, tudo é neto. O atravessado podia sê o neto do neto do Capitão. Acho que maluquei, passava o dia, todo dia pensando, não, não era pensando, sentindo o tal Capitão. Parecia que tinha colado na avó, na casa, nas coisa. Um jeito muito estranho. O avô parecia enrolado na saudade.
Queria o amô que tinha do avô do avô.
Continuo sentindo os carinho, não saiu da cabeça, não saiu das raiz, não sabia o que fazê com isso tudo, queria ele aqui, parece que ele tá aqui. Eu e a nêga Laetitia.
Morro da saudade.
Os banho frio já nada resolvia, a vontade chegava num jeito de afogá o modo de respirá, a quentura na pele não tinha lugá, tava por todo lugá da nêga, por isso, saiu do poço. A escravidão foi uma ignorância que não se acabô no aterramento do esquecimento. As criança que vem depois não tem interesse de sabê, nem a professorinha sabe bem do que fala pra molecada. Não sabe que os branco tão nas mão dos preto, a puliça, o macumbeiro, o motorista do patrão, as babá. Nem os preto sabe que tem os branco nas mão. É isso, cabelo ruim ou tá armado ou tá preso. O neinho não acha graça?
—        Não gosto, é gracejo do branco pra ensinar o lugar do preto.
Até que pode sê essa vontade dos branco, mais os preto precisa enterrá a mentira dos branco fazendo do cabelo ruim o cabelo bom. Mostrá o encantamento das cabeça com penteado dos preto: trançado, adornado com búzio, com ouro, com a cabeça raspada, fazê da cabeça o lugá sagrado do corpo. O lugá de respeito dos preto.

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