Ensaio 35
baitasar
Quando
enfiei os olho na nêga, não conseguia nem deixá caí uma píscadela, menô que
fosse, não queria perdê das vista, corrê o risco do sumiço, já fazia, no pouco
que contava, cinco dia e noite correndo no encalço: chegava perto, ficava
longe; brincadeira modo de cansá a teimosia do animal que ainda não foi domado,
fazê perdê as esperança, assim não precisa usá da força mais que a necessidade.
Mercadoria avariada não dava valô. A teimosia fez a nêga dormi em toca, pendurada
em galho, comendo folha, virô bicho causo do atrevimento que carregava nas
ideia. Ali, tava a mercadoria, a valentia amarrada no pescoço, via o sangue nas
veia, as vista brilhava no escuro, parecia duas lua cheia
— Ocê é a nêga Laetitia?
Nenhuma
resposta com a língua, as vista examinava o mato, o corpo retesava, o sangue das
veia corria e saltava, correnteza que não saia do redemoinho, como os preto que
tentava fugi sem lugá pra escapá. A nêga forte e decidida ficô amarrada, mais assanhada
de pulá no pescoço modo de quebrá, me arrancá o coração com os dente, enfiá as
garra na carne até sobrá a carcaça abandonada, sem olhá pra trás, fugindo.
Repeti a pergunta, até que o chicote da língua desenrolô das ideia, misturado
com afobação da respiração que ia e voltava
— Ocê é a nêga Laetitia?
— E se fô?
— Volta daqui, sendo ou não sendo.
— Olho, e mais olho, até entendê como deve
sê um embaraço pro preto acorrentá outro preto, fazê a aliança com o branco
mais forte, como deve sê dificultoso pro preto sê branco, a terra dos preto tá
sempre repegando ele, um preto que mente o que não é, não é preto nem é
branco, acinzentô. A escravidão não é a natureza, um dia havia de acabá. É
preciso escolhê o lado que tá na corda.
Dei
puxão de aviso no aperto do pescoço, a corda aumentô o apetite, parecia que a
nêga ficava mais metida, mais vaidosa, a beleza forte das mulhé da decisão. Não
sei o como, nem o por quê, mais a nêga me parecia se arrumando pras festa da
família, trançando os cabelo, os colorido dos pano, os fio de conta, as
cantoria, o orgulho do futuro no quintal da casa. Puxei o aperto
— Agora, ocê começa voltá no bem ou no
mau, a nêga Laetitia escolhe.
A
mulhé do outro lado da corda tinha as mão enfiada na terra, até onde a terra
deixava. Quero lhe perguntá da sua vida, pegá na mão e levá na sombra da
gerivá. Sabia que assim não ia sê
— Antes de segui de volta, ocê me
responda: é a natureza de ocê levá de volta os preto fujão? Quem tá preso nessa
corda? Ocê ou eu?
— Não sei o certo, mais a corda mostra
quem manda, quem obedece. Se soltá a corda ocê continua fujona do dono de ocê.
— Não tenho dono!
— Ocê tem dono... tem dono, sim.
Dei
outro puxão na corda e apontei a trilha da volta. Tava do lado certo da corda,
tava do lado da lei que prende e manda soltá. O aperto no pescoço havia de fazê
ela entendê que até a inteireza e a retidão tem dono. É preciso sobrevivê,
escolhê um lado não adianta, é preciso escolhê o lado certo, o lado que vive
— Covarde! Medroso!
— É ocê que tá na ponta do laço.
— Nada é pra sempre, nem ocê, nem eu, nem
o laço.
— Pode até sê, mais enquanto não se
termina tudo, tenho um serviço que precisa de acabamento com a entrega da
fujona. Nunca deixei de colocá qualqué mercadoria no lugá, não tenho extravio
de preto, carrego todos de volta, não há de sê ocê que não volta.
Pergunto
se tem precisão da tornozeleira de latão juntá os pé na corrente. Não responde
que sim nem que não. Decido que não. Os pé acorrentado faz encumpridá a
estrada. Amarro as mão nas costa com a corda do pescoço, a ponta continua na
mão de quem obedece.
Foi
assim que o avô do avô colocô as vista da vigilância na nêga Laetitia e carregô
com puxão e empurrão até o casarão dos Canela Preta. O que fazê com aquela
preta? O tempo com a aprisionada desmanchava a solidão, mais do que nunca ele
queria que ela tivesse do seu lado. A presença da Laetitia pareceu revelá ao
Capitão a verdade da sua vida deserta, disfarçada de branco. Um preto solitário
de preto na volta. Ninguém. Um homem desabitado de conversa. Não tinha nenhum
de vez enquanto em sua vida. Não era só a beleza da mulhé, o cheiro da fêmea,
os formigamento...
— Não fico com preto que laça preto.
— Não sei fazê outra coisa.
— Aprenda.
...
ela lhe fazia pensá, mostrava um mundo que não precisava sê do jeito que é,
emprestado pelos branco
— Ocê não pode evitá a vida de vivê.
— Nem ocê!
— Mais posso ensiná que tem vez que a vida
não é vida, é morte extraviada, ocê zanzando feito morto-vivo, esperando mais
nada que a terra cobrí a carne fedida.
As
memória daqui e de lá, que o avô do avô quis contá, se misturô com as saudade
que deu jeito de alembrá. Até que o neto do neto encontrô o lugá do casarão que
acobertô os seus pecado, chegô carregado das história, apaixonado com a memória
— Esse foi o neto do neto de quem?
Neinho,
pra trás do pai tudo é avô, pra frente do fio, tudo é neto. O atravessado podia
sê o neto do neto do Capitão. Acho que maluquei, passava o dia, todo dia
pensando, não, não era pensando, sentindo o tal Capitão. Parecia que tinha
colado na avó, na casa, nas coisa. Um jeito muito estranho. O avô parecia enrolado na saudade.
Queria
o amô que tinha do avô do avô.
Continuo
sentindo os carinho, não saiu da cabeça, não saiu das raiz, não sabia o que
fazê com isso tudo, queria ele aqui, parece que ele tá aqui. Eu e a nêga
Laetitia.
Morro
da saudade.
Os
banho frio já nada resolvia, a vontade chegava num jeito de afogá o modo de
respirá, a quentura na pele não tinha lugá, tava por todo lugá da nêga, por
isso, saiu do poço. A escravidão foi uma ignorância que não se acabô no
aterramento do esquecimento. As criança que vem depois não tem interesse de
sabê, nem a professorinha sabe bem do que fala pra molecada. Não sabe que os
branco tão nas mão dos preto, a puliça, o macumbeiro, o motorista do patrão, as
babá. Nem os preto sabe que tem os branco nas mão. É isso, cabelo ruim ou tá
armado ou tá preso. O neinho não acha graça?
— Não gosto, é gracejo do branco pra
ensinar o lugar do preto.
Até
que pode sê essa vontade dos branco, mais os preto precisa enterrá a mentira
dos branco fazendo do cabelo ruim o cabelo bom. Mostrá o encantamento das
cabeça com penteado dos preto: trançado, adornado com búzio, com ouro, com a
cabeça raspada, fazê da cabeça o lugá sagrado do corpo. O lugá de respeito dos
preto.
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