Ensaio 1B
baitasar
A
avó descansou os olhos e abriu um vazio no coração de cada um dos seus amores:
desocupou a vida. Mais um aviso aos inquilinos que não tem nada para sempre, mais
dia menos dia chega a vez de sentar para conversar sobre a denúncia vazia, a
quebra do contrato sem justificativa alguma. Não tem outro jeito de ser, há de
chegar à vez de virar lembrança. A avó ensinou que as pessoas podem escolher as
lembranças do desprezo ou bajulação que querem deixar, ela escolheu as
lembranças do amor, mas não pode mudar os comentários da memória sobre os
olhares da fábula. Até que tudo se perde em uma imensa poeira. Tudo vira pó ou
barro.
Uma
doce loucura de avó.
É
assim, tudo que é sangue bom da avó carrega os seus conselhos de aviso, a sua
boniteza de ser a vida que se precisa viver. Uma vida com os mistérios e a
poesia do encantamento, com segredos e xingamentos, silêncios, e muitos gritos.
Ela
estava ali, deitada, quieta, na cama dos seus amores, parecia que poderia abrir
os olhos para comentar os lamentos, falar mal das cerimônias preparadas, As
vista não carece de se enchê com tanta lamentação de desgosto, é preciso dizê
da vida vivida e do contentamento, assim, com tanto soluço de choro, a avó vai
parecê mais triste qui alegre, isso não é bão, pra modo de fazê a separação do
espírito dessa carcaça velha... tô fazendo gosto de encontrá os mais velho.
As
tiazinhas já tinham providenciado a lavação da avó, usaram panos e óleos, os
cabelos brancos tomaram a forma de muitas tranças, embelezadas por contas
coloridas. A cabeça da avó estava livre e os cabelos trançados. Cuidaram de não
desmanchar o sorriso de amor e paciência na moldura da pele sem rugas. A avó
estava fazendo a passagem do seu jeito, as filhas e as netas arrumavam um corpo
desabitado, o jeito doce e harmonioso, por certo, rezava conversas de
alegria com os mais velhos. Não tinha como saber, não tinha como duvidar.
Quando
vestiram a avó com roupa sem a cor da alegria, um pano grosso e sem graça, fiz
reclamação e disse que a avó tinha que ter vestidura fúnebre com mais boniteza.
Ela é muito vaidosa.
A
tia Vanda respondeu com voz de alicerce
— É as ordens da nêga Laetitia, avó da avó
da mãezinha. Esse jeito simples de vesti é pra modo do Capitão não se perdê de
encontrá a avó. Ela qué sê vestida pra sê achada.
Depois,
sentou na cadeira de balanço, me pegou no colo, sorriu com a latência dos
lábios carnudos e chorou a lamentação com as vistas. Subi meu olhar até a tia,
depois me balancei no seu pescoço, até pertinho da sua lamentação, então,
consegui beijar as águas dos olhos, Tia, os espíritos não podem ver o modo de
vestir da avó, ela desocupou da vida e desse corpo, são os olhos de quem fica
que veem a avó vestida com tristeza, queria mais contentamentos na apresentação
de despedida da avó
— Ah, fio sobrinho, a minha vista só
enxerga tempo muito atrás, as minha lembrança tem cantoria, aroma da feijoada,
cheiro da boca, gosto do beijo, as vista doce, as mão carinhosa, os cabelo
arrumado, perfumada, o tempo que só volta nas minha vista. A mãezinha agora não
é mais nossa, ela já fez despedida antes de perdê o último suspiro.
Queria
contentar a tia, mas não conseguia manter a secura da vista desarmada. Queria a
quentura daquele abraço que só as mães sabem exagerar. Coloquei minha cabeça em
seu peito. Fechei os olhos, precisava descansar as vistas de vê a avó morta.
Sentia os dedos da Vanda enfiados no meu lugar de orgulho: no meu cabelo duro. Escutava
a voz sossegada da tia Vanda
— Neinho, ocê lembra da vez que tu mais o
Tigão, que o Espírito dos Mais Velhos tenham o moleque junto e protegido, deram
fumo de corda que não era o fumo de fumá da mãe?
Sorri
com as vistas, mas a lembrança do Tigão me fez mais quêdo, as duas tristezas se
juntaram. Era muita saudade junta, muita pergunta sem resposta. O avô não
sabia, nem nunca confirmou que sabia, mas tinha desconfiança que quando
terminô... terminou. A avó tinha cogitativo de mais confiança, Os espírito se
junta depois da separação das carcaça, senta no chão, na volta da fogueira, uns
esfrega na mão, outros toma um licor da cachaça, tem os qui caminha e faz reboo
com os pé, outros só arrasta daqui pra lá, e de volta, sem zunideira, os em pé
tá esperando a vez de sentá pra conversá. Num tem pressa nem lamentação, chegô o
tempo das providência.
Eu
não sabia, mas gosto de pensar que o Tigão está no colo da avó, levando
xingamento por causa do pouco causo que deu aos aconselhamentos da preta velha,
e nos pés da avó tá guardado o meu lugar de ouvir
— Lembra de ouvi a avó, no
outro dia, muito pasmada, chamá os dois moleque?
Concordei
com a cabeça, eu e o Tigão parecíamos dois guris cagados de medo.
A
tia sabe como a avó sabia tudo e muito mais, Meu fio neto, senta aqui nos pé da
avó e escuta com atenção: sabê escutá é de muita sabedoria e dá mais mão de
autoridade qui sabê falá, queria conseguir lembrar tudo que a avó disse, mas as
lembranças vão ficando embaraçadas com a tristeza, até parece que uma atrapalha
a outra. A avó gostava de tá sentada nessa cadeira, fazendo balanço, eu gostava
de saber que a avó ficava sentada se balançando
— Quando me contô essa história do fumo de
corda, se ria de tê tosse até engasgá, só de lembrá chorava de tanto ri, Minha
Vandinha, tudo qui é gente tinha qui fumá o baseado desse fumo, uma vez, uma
outra vez, e rí da própria alucinação, da imbecilidade. Minha fia, pode
creditá, esse mundo ia sê outro.
Tia,
eu e o Tigão passamos um tempo danado caminhando levinho, ficando escondidos
nas frestas, se a gente soubesse da aprovação da avó, não tinha tanta confusão,
até arrumava mais daquela corda
— Isso prova que ocês não tinha
conhecimento da avó de ocês, tê medo não é conhecê.
Passei
a noite no aconchego do colo de tia. A luz amarelada sobre a cabeceira da cama
era a única luz que iluminava, testemunha da vida da avó que sempre lhe foi
agradecida, Essa luz do tipo fusquifusqui, só mostra o qui é preciso mostrá.
Nos
primeiros lamentos do dia, abri os olhos devagarinho, esticado num incontrolável
bocejo, uma das mãos à boca, a outra esfregava os olhos, deslembrei que a avó
tinha desocupado a vida, até que o cheiro da morte me entrou e revelou o homem
que eu era, o meu pertencimento, Bom dia, minha tia, o calor do colo me enrolou
na preguiça
— Bom dia, meu fio.
A
penumbra no quarto da avó parecia mais assombreada que iluminação disfarçada em
velório, a luz amarelada se mostrava mais cansada com a missão de vigiar
defunto, eu estava exausto, cheguei a querer que aquelas despedidas acabassem
logo. No instante seguinte, precisei pedir perdão à avó, ela havia de entender,
E a avó? perguntei como se estivesse recém chegado pra visita da cortesia
— Já se foi...
Pra
onde? desculpe tia, eu sei que a pergunta é chata e boba, como a tia havia de
saber
— Se foi pro lugá de morá com sua gente, o
seu Capitão.
A
tia não se explica de uma vez só, parece que espera a pergunta pra responder
quase nada, não é justo deixar a solução escondida, logo a tia, que nunca foi
de obedecer a avó
— Não diz bobagem, moleque. Sua tia
esquecia de obedecê, mas nem sempre, vez que outra, isso é bem diferente de sê
rebelão. O meu atrevimento nunca foi com sua avó, sempre foi com minha mãe.
Então,
por que não diz o que aconteceu? Onde tá a avó? A cama da avó esvaziou
— Ganhô encantamento quando nouteceu, ou foi
alimentá a vida na outra vida, ou não quis tropeçá no amanhecê, ou foi embora
com o Capitão. Ocê escolhe...
O
neinho prefere acreditar que o amor daqueles dois conseguiu se combinar e
ressuscitou. Onde já se viu, levantar depois de morta? A avó não devia tá no
seu ajuizamento das ideias. O neinho devia ter ficado vigiando a noite.
— Ocê não creditô no acreditá da sua avó,
nem lembra o que sonhô, vive mais triste que a própria dô. Gosto de sonhá que o
amô chego de vez pra avó.
Como
a gente faz um enterro sem a avó presente? Os tiuzin tão esperando pra vê a avó
de corpo pra visitação, não sei explicar o acontecido
— Não precisa enterrá o que não morreu, os
irmão sabia que a mãezinha não ia ficá. O que ela queria deixá, ela deixô: as
lembrança das palavra. Pediu pra ocê não esquecê que a vida vai vivê, não vai
fazê ocê sonhá, o sonho é d’ocê, não é da vida.
Pareceu
que levei uma surra, queria voltá pra dormí e sonhá da vida.
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