sábado, 25 de maio de 2013

É mais difícil tê alguma coisa qui não tê

Ensaio 3B
baitasar
Os donos do dinheiro que tentava o tiuzin nunca apareceram, parece que não têm cara, são secretos, quanto mais se procura por eles menos se acha, ficam escondidos dentro de algum terno cinza, gravata borboleta, longo de baile, colar de diamantes brilhantes, eles são brilhantes: controlados, jamais se lançam da janela com cortina e tudo, cérebros desanuviados, possuem o desesperado desejo de nunca morrer, orgulhosos, dementes, um deserto de futilidades e o sermão de mandarins horas a fio e a televisão: apesar de tudo, o seu melhor amigo está sentado à sua frente
—        Esses o fio sobrinho não acha, eles não se mostra, usa máscara, todo mundo qué conhecê, mais só pode desconfiá que tem cara, são fantasma.
Eu sei tia, esses são os políticos corruptos, a professora da geografia dizia que são uns safados, sempre vota em branco
—        Ocê é burro, meu fio sobrinho. Essa máscara de político é apenas uma qui eles usa. Olhá melhó na sua volta. Os político coloca a bunda na janela, pra isso eles é pago. Mais tem muito mais mascarado... amigo disfarçado de bão, comprando o passado e o futuro. Os estafeta da mentira é mais perigoso qui bandido armado, mata muito mais gente, até quem credita neles. Tira tudo, não deixa nada.
—        Ninguém vai tirá o qui é meu! — o tiuzin parecia derreter a montanha com a vontade da avó
—        João, ninguém da família qué lhe tirá o qui é seu, mais aqui nada é só seu. Não deixa a gula fazê esquecê a vontade da mãe. Ela deixô a metade do Canela Preta pro moleque, ali.
O dedo da tia Vanda apontava pra mim. Isso era uma novidade que eu não sabia se fazia gosto: dono da metade do casarão Canela Preta, pensei, Vou pedir para desistir dessa vontade da avó
—        Eu?
A família estava reunida para discutir o vende não vende do tiuzin João, todos ficamos espantados, uma pergunta ficou entre o silêncio e os olhares, Por que a avó tinha feito isso?
Eu não queria assim, nem pedi que assim, dito de outro jeito, não pedi nada, Meu fio neto, logo, logo, ocê vai descobrí qui tê alguma coisa, qualqué coisinha à toa, é mais difícil qui não tê, depois qui ocê tem não qué perdê o qui tem. Se não tem não faz falta, mais se tem...
A tia sabia da confusão que me metia, mas tinha sido decisão da avó, ninguém sabia da razão daquela vontade, ninguém sabia explicar, a tia não parecia saber os motivos da avó, nem se importava, Moleque, no mundo dos espírito não existe novidade, tudo que acontece já aconteceu antes. Não tinha que dá explicação.
A família que continuava reunida estava em silêncio. Não tinha como não saber o que pensavam, nem precisava adivinhar, simples e ao mesmo tempo nada fácil
—        Metade?
—        isso mesmo, João: a metade.
Os dois olhares agora se enfrentavam
—        Isso qué dizê o quê?
—        Isso qué dizê, João, qui o moleque fica com a metade do dinheiro qui ocês ganhá pra vendê o casarão da mãe.
Qual a qualidade tinha feito a avó querer assim? Não sei. Preferia que gritassem comigo, o silêncio dos tiuzin e dos primos me deixava mudo. Aquilo não era uma brincadeira, não tinha como sair, foi quando o tiuzin Manoel chegou
—        E o qui ocê qué fazê, Manoel?
O tiuzin chegou atrasado para o encontro da família, ele sempre chega com atraso, mas bem vestido, barbeado, perfumado, um preto bem cuidado, esclarecido dos direitos de cada um, cumpridor dos próprios deveres. Pediu que lhe explicassem as ideias para solucionar o problema
—        Por mim, vendia, pela mãezinha... fica tudo como tá, então, não sô de vendê.
A tia olhou na minha direção, me pareceu que tinha um misterioso sorriso combinado com um olhar secreto de lápide. Sentia um crescente círculo de pouca vontade.
O tio Manoel continuava seu discursivo
—        Quero aproveitá esse encontro da nossa família e anunciá qui to de mudança marcada, vou morá com a Maria do Prato.
Mais uma das mulheres do tiuzin que ninguém conhece, nem vamos conhecer, mas é bom guardar na memória o nome: Maria do Prato; pareceu que a voz do tiuzin desfaleceu, foi quase nada na hora de dizer o nome da estranha. Vá que o inusitado aconteça e o tiuzin que não tem conserto encontra o que tem procurado, alguma capaz de lhe servir de salvação e sustento
—        Quem é essa? — a tia Ana levantou do seu torpor, tinha a voz espichada
—        Uma jovem senhora de posses que conheci no baile, na tarde. — esse tiuzin não prega prego sem estopa, nem malha ferro frio. Fala a verdade vestida com uma ou outra mentira. Aposto que essa moça do Prato é uma velha senhora com dinheiro, que o tiuzin quer comer com seus encantamentos de riqueza até descobrir que não pode mastigar dinheiro — Minha irmã, essas velhinhas só querem fugir da solidão.
—        Nem sempre, Manoel, tem vez que não é pura diversão de malandro.
A tia Vanda deu de ombros, voltou as costas para o tiuzin Manoel, aquele não era assunto que precisava de solução, olhou à outra tia — E ocê, Ana?
Essa outra tia chegou com o mais novinho dos filhos bebendo no peito, já tinha passado da avó na quantidade de ter filhos, gostava de fazer os filhos
—        Por eu, pode vendê. É um jeito pra arrumá melhor o barraco do Mitão.
A tia Vanda agachou na frente da outra tia, era o seu modo de ficar com o olho nas vista uma da outra — Ocê vendi pra arrumá o barraco do Mitão. E depois?
A tia Ana não entendia da política e dos homens e do depois da tia Vanda
—        Depois... o quê?
—        E se o Mitão arrumá outra, ocê vai morá aonde? — o nenê fez muxoxo de choro, ela tratou de aquietar dando outra têta. Isso deve ser extenuante, às vezes cômico e também patético, ter aquele carrapato grudado no peito, resmungando
—        Voltamô pro Canela Preta. — o Mitão levantou, aquela conversa parecia um grande perigo, passou a mão no penúltimo, ou foi no antepenúltimo, isso não importa, e saiu daquele círculo de união familiar
—        Ana, ocê disse que é pra vendê o casarão... não vai tê aonde voltá!
—        Arrumo outro...
A tia Vanda desaprisionou do peito outro suspiro, o seu corpo cansado enrijeceu, ela olhou a sua volta, a doença de ter alguma coisa envolve todos e nos rodeiam, pouco ou nada se resolve — E você, Jorge?
—        Se o preço for muito bom... voto pra vendê.
Votação empatada, um assunto controverso, isso ainda acaba com todos me interrogando
—        E o Batata? — o tiuzin Jorge queria declaratório da situação do tiuzin Batata, o único dos filhos, além da mãezinha, que não tinha feito comparecimento — Ele começô emprego de cobradô.
—        Ocê ta desinformativo, Manoel. Parece que o moleque ficô peixe do patrão e virô motora de caminhão. — a tia Vanda juntou as mãos e agradeceu alguma graça — Já dou graças à Deus que o moleque saiu daquelas correria no caminhão do lixo, largou a Daslu, que outros tratem de organizar a associação. Não sei a linha que ele ta puxando, mas o moleque começa às 4 e 15 da manhã e toca até às 11, tem um intervalo até o meio da tarde, depois pega até às 10 da noite.
—        E quem não é peixe do patrão? — a tia Ana levantou da cadeira, o bico da têta enfiado no gurizin, deu uma volta na mesa da cozinha, parecida com uma ilha cercada de gente por todos os lados, balançava o piá pra lá e cá
—        Ana, isso não sei, mas aposto qui se não é peixe não sai de cobradô.
—        E faz o quê das 11 até voltá de tarde? — ela falava de jeito nervoso que não aquietava o gurizin da têta
—        Não sei, Ana, mas se fosse eu... dormia na garage, dentro do ônibus. — ela voltou os olhos para o tiuzin Manoel. Empurrou a têta com mais força, parecia que custava muito mais esforço entender porque não se queria botar a mão no dinheiro vivo do comprador desconhecido — Então, a decisão é não vendê... quero sabê quem paga o quê pra arrumá o casarão, todo dia tem coisinha pra se fazê...
—        Dividimô tudo entre nóis...
—        Quê? Eu nem moro mais aqui!
O tiuzin Jorge parecia começar a não controlar os nervos — Não aceito. O moleque é dono da metade, a metade das arrumação é dele, a metade que sobra dividimô.
—        Jorge, o moleque não tem daonde tirá.
—        É só largá essa frescura dos livro e arrumá trabalho, o problema é o tamanho...
—        Jorge! A mãe deixô dito que o moleque estuda até terminá os estudo da escola. Não é assunto da discussão. E ocê, Ana, se não mora aqui é por querê seu, se quisé voltá... o lugar tá desocupado.
Um frio me passou na barriga. A tia Ana, o Mitão, e a coleção de neinhos da tia, tudo junto no caldeirão do casarão. Isso não era bom para ninguém, nem para o casarão nem para o espírito da avó
—        Mais a metade do Canela Preta é do moleque, ele não vai entrá na divisão?
—        Manoel, ele vai tirá pagamento daonde? A mãezinha tem querê do guri nos estudo, até onde dé. O moleque não tem mais querê que a mãezinha, ela queria e ele vai continuá na escola. Isso já foi resolvido, lá no tempo da mãe viva. Tem alguma parte que eu não entendi? — a tia Vanda foi feita com o jeito da avó: pronta para o amor e a guerra. Com ela a conversa já começava pela metade, tinha o querê dela e o outro jeito que não lhe mudava o querê.
Os tiuzin Jorge e Manoel tinham aquietado com o rabo entre as pernas, as vistas entre as orelhas. A tia Ana achou melhor ficar com o Mitão do feitio que já tava. O tio João saiu no meio das conversas, não disse mais nada do que já havia dito. Já sabia que o tio Batata não deixava vender o casarão.
Depois da reunião desfeita nenhum dos tiuzin voltou no assunto.
Eu ficava sozinho no casarão, na maior parte dos dias. Descia na senzala, sempre que precisava cumprir o compromisso de lembrança com a professora da matemática, bem mais nova que as lembranças da geografia. Minha desilusão passou logo que achei outro atrativo, conforme explicou o tiuzin Manoel, Amor é vento que vai um, vem cento.

A história dos preto massacrados já não me incomodava tanto, as coisas boas e ruins ficaram perdidas pela estrada das memórias. O esquecimento no tempo e a vontade das lembranças novas são mais fortes, mas fiz promessa de jamais usar calça longa, apertada nas canelas, como as correntes apertando os cabritos preto, só uso jeans.

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