sábado, 18 de maio de 2013

Sô do lado de vendê, pegá o dinheiro... cuidá de vivê


Ensaio 2B
baitasar
Depois dos serviços e as despedidas da avó, a cantoria silenciou, foi o tempo de cada um escolher as lembranças que não queria desaprender. Os tiuzin ficaram sem a última vez de ver a avó antes do sumiço com o Capitão, não escutaram a última palavra. Eu estava junto, dei meus ouvidos para os fios do seu suspiro, vi fechar os olhos para não mais abrir, a avó se foi me espiando. Isso fez de mim um fio neto especial. A avó não escolheu a hora da partida, nem escolheu quem lhe segurava a mão no desembarque, eu escolhi estar junto da avó, ser o seu acompanhamento. Um lugar que não queria tá, o único lugar em que tinha que tá. Sei que nunca vou me arrepender da escolha que fiz. Não senti medo, só senti amor.
Por muitos anos, a avó foi a decisão que governava nos assuntos do casarão Canela Preta. Aprendi que para essa posição de destaque não tem muito jeito de chegar, nem é para quem quer. A avó tinha autoridade e sabedoria no tempo, falava o que aprendeu morrendo cada dia um pouquinho.
A avó não foi na escola, mas, também, não aconselhava desfeita com os livros. Tinha os livros na cabeça, Isso não chega, fio neto, não chega ficá com as história na cabeça, é preciso tá escrito, se não tá escrito não existiu, a memória da língua esquece, inventa as parte qui não lembra, e o qui existiu muda, é como se não tivesse vivido, cada um conta do seu jeito e quem ouve, também, tem seu jeito de escutá
—        Mas a avó sabe como contar as histórias... e têm aqueles que não sabem escrever as histórias como a avó sabe contar.
—        A avó, sabe? Podê sê, mais a avó qué dizê qui a vida qui não tá escrita as criança desaprende, as lembrança foge como as areia da praia na mão, do punhado agarrado sobra uns grãozinho, e a serpente enganosa diz o qui qué sobre o qui existiu ou não existiu. O ruim passa sê bão, o fingimento vira virtude.
—        Tem livro ruim que finge respeito, dá aconselhamento de desamor que parece amor... tem livro que mente... tem livro que esconde... tem livro...
—        Chega, neinho... se tem livro quié ruidade, escreve ocê a história.
—        Falar é fácil...
—        A avó não entende do livro, mais sabe qui existe história na cabeça, e nos livro, pra gente ruim e pros bão, cada um escolhe o qui serve melhó. Ocê precisa escolhê vivê aborrecido, fazendo desfavô, desamando o amô, ou vivê a vida da vida. O fio neto não pode esquecê qui os fingido finge tanto qui credita nos fingimento da vida qui finge. Ocê aprenda escolhê os livro bão, tem vez, qui precisa sorte, mais tem outra vez qui só precisa tê atenção na viseira qui vê.
A avó chegou à posição de importância pelo jeito do amor que amou nos filhos. Não tinha enganamento, se achava que precisavam um puxão nas orelhas, dava o puxão e a explicação zangada, mas o colo da avó era o melhor lugar do mundo para ficar. Os filhos e os fios netos sabiam o que tinham perdido.
Foi quando se espalhou o boato: o casarão tava desgovernado e o tiuzin João estava disposto de ter conversa para vender o Canela Preta.
A notícia caiu como um arrebentamento.
Depois do sumiço da avó, pensei que o casarão ficava no uso dos tiuzin, das tiazinhas e dos mais novo. A avó dizia que desde o Capitão, quem construiu a mansão dos preto com as mãos dos preto fujão, o casarão nunca saiu do uso dos Canela Preta.
Vender não pareceu um bom plano, mas a vontade de ter dinheiro na quantia que não cabia na mão, despertou o embaraço da cobiça. A vida da avó que juntava os parentes estava fora das vistas, pareceu que cada um seguiria uma estrada, mas andava, pé ante pé, com o medo do puxão nas orelhas e o xingamento zangado. O tiuzin Jorge pediu reunião dos irmãos, queria esclarecer o zunzun que tinha virado mexerico
—        Tem gente com gosto de pagá um dinheirão pelo lugá dos Canela Preta! Acho que temô que vendê.
Tudo ficou no silêncio, o madeirame do assoalho parou de gemer, as dobradiças pararam com o zumbido das portas e janelas, abrindo ou fechando, por ali, só os suspiros esvaziavam os respiros aprisionados, ninguém se olhava. Rezei para que alguém fosse avisar os mais velhos, trazer os espíritos para começar a resistência. A luta é desigual quando o olho da cobiça se atiça, todos falam horrores de tudo e de todos que se atrevem contra o egoísmo do dinheiro, ficamos desligados da nossa caridade, a vida é perdida, esfria, fica esquecida. O ódio fica difuso, embutido no sopro da respiração
—        Jorge, o João tá adormecido do juízo, perdido pelo interesse do dinheiro.
Isso de conversar dizendo o nome, sem usar a lembrança do que cada um é na família: tio, tia, sobrinha, sobrinho; não era um bom começo de assunto
—        Bobagem, Vanda. Cansei de puxá carroça feito cavalo, cansei das vista assustada das madame, nunca sei quando sô o cu ou as calça. Tem vez, qui sô o cu, tem outras vez, qui sô as calça. Quero tê a minha montaria. Não sento como ocê em cima duma mina de ouro...
—        O quê?
—        Ocê senta em cima da sua mina de ouro... é só sabê usá!
A Vanda não se impressionou com o entusiasmo vendedor do João, nem com o jeito de lhe chamar de puta. E até onde a avó contou, ou deixou de contar, ela podia ser a única que tinha correndo nas veias do corpo o sangue do Capitão e da nêga Laetitia
—        E o pangaré de madame...
—        Qui tem eu?
—        ... credita que muda essa vida de arreio se vendê o casarão da mãe?
—        E a nêga Vanda vai até quando esfregando o chão dos branco, quieta com a vida de capacho?
Queria tanto que a avó estivesse aqui, acalmava os dois, primeiro, com as vistas; depois, com as mãos, fazendo sinal para que o bate a boca de um e o trinca os dentes da outra parassem aquela guerra, Desfeita na família não é bão, um caminho sem dono, não vai dá boa colheita.
A avó é o respeito dos humanos na família e tem o espírito respeitado pelos mais antigos
—        Não gosto de acordá com o corpo amassado, dolorida, desanimada de sê diarista da madame, mais não vendo uma pedra do Canela Preta pra modo de saí dessa vida de vai ou não vai.
Foi quando me animei
—        A avó virou encantamento dizendo que o casarão é da família, todos podem escolher viver e morrer nela, depois os outros mais novos, e todos do sangue da família Canela Preta que vierem na sucessão da descendência
—        Quem pediu a opinativa do rabanete preto?
—        Cuidado com a língua João, não mexe além da conta com o moleque.
Resolvi aquieta a língua, não tinha estatura de brigá com o tiuzin, nem quis a tia Vanda como meu escudo de proteção com o tiuzin
—        Ninguém vai tirá o qui é meu. Nêgo é o seguinte na fila qui não caminha, nunca sai do lugá, um depois do outro esperando... depois qui morré se terminô, os vivo tem qui dá conta de vivê. Sô do lado de vendê, pegá o dinheiro... cuidá de vivê.
Os outros da família não pareciam se meter, era melhor esperar, ver com que lado a avó ficava. Acho que foi assim, no tempo de acorrentar os canelas preta, lá na terra mãe. Não acreditavam que aquilo ia continuar... e continuou, até a mãe minguar com falta de mão para enraizar a terra. As coisas se repetem grandes ou miúdas, aprendemos com as histórias e desaprendemos com o silêncio. O preço do esquecimento e a evaporação das lembranças é a repetição sem miolo, sem serventia ao bem de todos, o dono nunca está satisfeito com os escravos que tem, É assim mesmo, meu fio neto, o desaparecimento das lembrança é disfarce qui dono de gente usa pra continuá escravidão da miséria.
Essa avó não descansa.

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