quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Teatro Pedagógico: biometrias

Parábolas de uma Professora



biometrias


baitasar e paulo e marko




minha intenção não se encontra nesta sala. timidamente pensei. não estou aqui. não quero parecer ser feliz. estacionada. quero ser feliz. não quero esse personagem de uma boa mulher adequada ao cômodo papel da indiferença. obediente. a caverna da neutralidade. a caverna do acolhimento. percebo as conversas nas suas metades, mas entendo os propósitos. não corro riscos desnecessários. sinto vontade de sair. fumar e tragar-me. um jeito natural para o meu afogamento em rolos de fumaça. as folhas de tabaco queimando. afogada em tosse. lágrimas transpiram em meus olhos. me povoam. são dias em que me sinto terrivelmente apaixonada. molhada. em outros, como um imenso castelo na beira do mar esperando a maré ou algo inusitado. no meio de um turbilhão me perco em pensamentos com desejos românticos. e lá está... ele. grande. solitário. guarde um beijo meu ou venha salvar-me

Colegas, a questão dos atrasos no início do turno estão trazendo transtornos e ficando muito difícil justificar para os pais porque os seus filhos estão sem professor. As crianças são atendidas. Não é isso. Ninguém volta para casa. Eu sei que os imprevistos acontecem...

prestar atenção. ordeno a mim mesma. esse é o diretor, sua besta. tento, mas não quero me concentrar. meus segredos continuam apaixonados. não me afastam. desejos secretos colam em meu corpo. obscenos. habitas meus pensamentos. estremeço ao pressentir um abalroamento. os acasos aproximam. acredito que sim. mas me colocam numa situação de dor e alegria. bobagem. eu me coloco assim. minh’alma está impregnada de você. exijo teu colo. uma noite inteira só para descobrir o que o destino já sabe

Não dá para vocês da direção, supervisão, sei lá, as volantes... alguém para levar os alunos em fila até a sala de aula? Só até a chegada do professor da turma.

acemira e a sua sabedoria. tudo que a capacidade da bondade cínica comporta. depois, muito provavelmente, será por ela mesma proclamada vítima. resmungos de atenção pelos corredores. conversas de uns com os outros, sobre o trabalho visto ou não. não importa. reclamações. denúncias. a falta de apoio que estará sentido. o seu abandono às feras. pequenas ferinhas. repetirá que não estão cumprindo o seu pedagógico próprio. e irá soletrar que não é papel da direção, supervisão, e mesmo as volantes, substituir as faltas dos colegas. esquecida das suas boas intenções e sugestões na reunião. uma memória histórica curta e canalha. um cobertor curto. um teatro cínico. um ponto de vista teatral sobre ética

Acemira, pegar a turma é fácil... e fazer o quê? Deixá-la quietinha e acomodada até a chegada da professora? Tudo bem, até seria possível, se, junto a isso, não tivéssemos quinze a vinte por cento dos professores em licença saúde. Ou outro tanto atestando. Os professores não têm saúde de ferro? Não. Os imprevistos acontecem? Acontecem. Não estou discutindo os afastamentos por saúde, mas afirmando que biometrias somadas aos atrasos estão invibializando o início do turno.

silêncio. aproveito estes segundos para violar o mundo com palavras de desejo, paixão e amor. é uma forma de reivindicar minha presença nele. minha saúde também não é de ferro, minha eternidade amadurece e minhas vontades do professor do corredor aumentam. quero tua boca, sinto desejo do teu beijo doce. molhado. quero te amar. a vida vale pelo o amor que a gente tem no coração. permaneço presa ao cativeiro invisível do cotidiano

Puxa, Aguinaldo! Não dá pra exigir professor substituto?

Ofélia, tudo é possível, mas não acredito ser esta a solução mais viável. Mesmo porque esta solução pode inviabilizar nossos salários no presente e no futuro.

Não estou entendendo, Aguinaldo.

resisto com todas as minhas forças para não ir procurar o professor do corredor. ele também se cala. nos calamos. abre seu armário e parece que procura algo que não está lá, O que buscas, perguntaria, Por que me calo, responderia, Vejo-o entrar na sala muito silenciosamente, já estaria em seu colo, Noto você apagada, quase triste, Cansada da repetição e da minha falta de imaginação. ele fica bem com essa tristeza. olhos melancólicos. parece mais jovem. senta-se calado. sinto nele o mesmo cansaço.

Lélia, o raciocínio é simples. Se eu e você precisamos dividir nossas tarefas com outros colegas, deveríamos saber que o salário destes novos colegas que suprem as minhas folgas, os meus atrasos e, inclusive, minhas possíveis biometrias, sairá do mesmo bolo que paga e projeta nossos reajustes salariais. E que no futuro, será mais um aposentado e recebendo da mesma previdência, etc etc etc. Estou sendo muito egoísta? O poço não está secando e continuamos com sede, mas escavando e esgravatando em solo árido. Não adianta apenas falar e reclamar que nada funciona, precisamos fazer a parte que nos cabe neste latifúndio de excluídos. Quem estende a mão aos miseráveis?

novo silêncio e já estou nos braços dele. corri como louca, mas cheguei sonhando. o que me resta é o sonho. invento um modo de reinventar a dor. a dor sem dor. pensar na possibilidade impossível, sei que amo

Pelego!

Aguinaldo, você está me parecendo com a intenção de incutir medo no ânimo dos professores.

Botto, é só uma questão matemática. Aumentamos o número de professores na base salarial. A economia não cresce. A arrecadação não cresce ou não cresce na mesma voracidade da nossa necessidade por professores substitutos. O resultado é negativo. Faça as contas e depois me venha falar de terrorismos e similaridades. Não nos adianta ficar apenas olhando para o chão, empurrando e derrubando.


Pelego!

E o pré-sal?

Ué, você deu seu voto para aqueles que querem tirar a Petrobrás do pré-sal. Lembra? O seu voto oferece o petróleo do pré-sal para empresas estrangeiras! E não sou eu quem diz. Basta ler. Acompanhar o noticiário. Existe proposta no senado.

Aguinaldo, tu não tinhas essa maneira de pensar no ano passado, antes das eleições. O que aconteceu? Quem mudou?

Não sei quem mudou mais, Acemira. O trágico é que tudo sempre muda? Todos estamos mudando todos os dias, a cada instante. Este é o nosso caráter humano, a certeza da renovação. A convicção do renascer da consciência em cada olhar que nos trás o aperto de mão. A solidariedade aproxima e dá início ao abraço fraterno. Sei que consegui sair do meu mundo particular da sala de aula. E me deparei com o nosso mundo da escola com todas as suas necessidades administrativas e pedagógicas e humanas. Imediatas. Percebi que não adianta fazer ameaças, gritar obscenidades, acenar com intolerância, se tudo isso é apenas para manter meus privilégios egoístas. Preciso realizar as tarefas as quais me propus de maneira ética, crítica e engajada. Hoje, e no futuro. Não vejo ninguém me impedindo de realizar meu trabalho. E eu estou com muita vontade de realizá-lo?

Escutaram? A culpa é nossa!

Aguinaldo, quem te ouve vai acreditar que não queremos trabalhar. O que importa mesmo é que está muito difícil ensinar. A gurizada não quer aprender.

Mas aprender o quê, Ofélia? Submissão?

a pergunta do marko invagina a rotina do dia após dia na escola. precisamos fundamentar na prática os nossos desejos. a nossa prática mostra o tamanho da nossa paixão. poderes ou afazeres administrativos. controle ou libertação. a opção por lacrar as portas, os portões, os muros, que deveriam estar permanentemente abertas, para simplesmente dar conta de aspectos administrativos e do medo, é difícil, mas mostra uma concepção de mundo que inicia pelo medo



não chego nem perto de um computador fora da escola, respondi ao professor abá. ele achou um absurdo. professor, somos as realidades do desemprego, subemprego, fome, invasões, ligações de luz clandestinas, bandidos fardados, doenças sanitárias, repetência, até que desistimos da escola. somos todos aqueles que impedidos de morar, invadimos. impedidos de amar, temos os corações afogados no desespero da solidão. impedidos de trabalhar, mendigamos a sobra do teu pão. impedidos da brilhantura na escola, reprovamos e saímos na carona da expulsão aborrecida. viramos suco. impedidos de adoecer, morremos. meu peito incha em silêncio. eu mesma já morri várias vezes. nosso olhar grita, e, apesar de tudo, somos gente de muita sorte, conseguimos retornar e começar tudo de novo. o eterno recomeçar. somos gente. e gente teimosa. paro um instante, reviro para um lado e outro, todos brincam nas máquinas sedutoras do mundo da computação. me pergunto se não somos gente de muito azar porque precisamos voltar. por isso re-morri, não desisto. sou uma aluna insistentemente prolongada. o que têm para nos oferecer são repetições de erros antigos? as mesmas tentativas sem convicção? afinal, quem mudou mais, a escola ou essa gentinha de sorte? azar? esperança? quero gritar. eu não sei! preciso viver e ser feliz. em minha ideia de vida, não me queixo e nem deixo de me re-viver. tento conquistar aquele homem com quem quero sonhar todas as noites e que não consigo tocar. tenho medo. nem lembrar, nem reconhecer. sei que existe esse homem amoroso, delicado, respeitador. ele me surge em sonhos que me queimam a pele, me fazem suar jogada de costas na cama. olhando meu teto sem cor, as marcas de podre e o cheiro de mofo. estou ali, gemendo e cavoucando. não importa, quero-o comigo sentindo seu cheiro de amor por mim, suas marcas da vontade dura pulsando, me fazendo viver aos pulos de chegar correndo e abraçar um amor, pelo menos uma vez. vida sem jeito que levo. eu quero me fazer acreditar que este homem virá, chegará de susto, de repente

Pra quê vai servir... Eu não sei lê. os guris não entendem porque ela não é parecidinha com as gostosonas da televisão. os chinelos não são havaianos, são falsos
 



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