sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Teatro Pedagógico: a escola do povo

Parábolas de uma Professora


a escola do povo


baitasar e paulo e marko




continuo por aqui, sofrendo. minha vontade de sair para me fumar lateja. minhas têmporas pulsam mais do que gostaria de senti-las. olho minhas mãos. vejo-as segurando um cigarro acesso entre os dedos. um sonho. ou um pesadelo. acompanho a suavidade dos pequenos rolos de fumaça subindo, dispersando-me pelo ar, invadindo secretamente teus silêncios. compartilhamos as dores e o mesmo ar doente, mas os sonhos não conseguem deitar no mesmo tempo dos olhos fechados. sorrindo. encorpados. gozando. até que saciados fechamos os olhos

Como aprender o quê, Marko? Para começo dessa conversa idiota, não consigo nem ao menos me falar com os alunos serenamente por alguns minutos. É só isso que eu peço, alguns minutos, meu Deus, sem que não ocorra alguma coisa estranha. Um grito. Uma batida na porta. Um apito. Perturbam o tempo todo! Não têm nada a dizer, somente gritos!

não posso calar, preciso acreditar naquela certeza que me move, àquela pela qual venho lutando em tantos anos. ainda acredito que podemos construir uma sociedade mais justa, mais igualitária, mais humana. e que saia do discurso vibratório das cordas vocais e se instale entre as cadeiras e mesas de fórmica. às vezes, parece que estou me repetindo num imenso vazio. outras, acho que não. precisamos urgente de uma escola mais alegre. temos possibilidades concretas de pensar uma práxis libertadora, brincar com alunos e alunas e ir construindo uma competência a partir do trabalho em comunhão, voltada à prática democrática. por que me calo? busco socorro no professor do corredor. hoje, me parece um professor invisível. não devo estar vendo coisas. ele me socorre com um olhar doce e também se cala, acho que pensa que sou invisível

Alguém consegue fazer a chamada dos alunos, em quaisquer das turmas deste inferno, sem crises de gritos e pedidos sistemáticos de silêncio silêncio silêncio? calem a boca! A aula já começa de maneira insuportável! Tem um gordinho que eu não suporto...

Eu estou brincando de dinheirinho. Quem fica comportado ganha um dinheirinho. Está funcionando. Tentem. Tem o dinheirinho da chamada. Tem o caderno bonitinho. Tem para quem vai ao quadro. Tem para quem ler em voz alta. Tem para quem fica quietinho...

Funciona?

Claro! Fazemos juntas o nosso dinheirinho. As crianças adoram. Faço as cópias em preto e branco. Eles recortam e pintam. Depois eu recolho tudo no nosso banco. Uma poupança. Nada é de graça nesta vida.

a educação bancária sempre esteve entre nós. amém. estamos naturalizando o toma lá da cá com o dinheirinho que nos parece tão inofensivo. continuamos criando monstros sem ética. tudo por um dinheirinho. depois apanhamos dos monstrinhos e não sabemos onde erramos. a farsa da nossa indignação também pode se resolver com um dinheirinho

Mas a lista da chamada não pode ser realizada em outro momento e de outra maneira?

a lia fez a pergunta em um tom tão baixo que mais parecia uma reflexão pessoal, interna, pensando alto. é tão fundamental começar pela chamada dos alunos, pergunto-me, sinceramente, não sei que disciplina é esta que me mantém aqui. é de pequeno que entortamos. o deus dinheiro e o espírito da corrupção. desde pequeno se formando

E essa merda do bolsa família? Querem saber se as crianças estão vindo ou não.

Os cadernos da chamada diária são documentos oficiais e, para terem credibilidade, precisam ser preenchidos com cuidado. Representam a fidelidade das presenças ou ausências dos alunos.

eis a intervenção técnica do time, esse é o seu conhecimento parcialmente inato e parcialmente adquirido, que lhe permite falar e compreender o seu ofício de inspecionar em um plano superior. seu modo de ser não consegue reconhecer o cotidiano da pobreza. é difícil, eu sei. existem regras atrás das regras da autoridade. muitas são obrigatórias para manter a ordem na comunidade. nem todas, mas muitas de todas. gostaria de entender juntas esse outro cotidiano. planejar juntas o entendimento desse outro cotidiano, convencer juntas esse outro cotidiano que pode ser diferente

Mas gurias, eles pedem o tempo todo para irem ao banheiro...

Tudo bem, eles precisam ir ao banheiro e o que eu tenho a ver com tudo isso? Preciso dar minha aula no pátio e eles ficam todo instante interferindo com brigas, pegando a bola, puxando os cabelos das meninas, dizendo palavrões. O pátio é minha sala de aula.

E o que esses estão aprendendo?

Não entendi, Lia!

exclama a desirée, tentando descobrir as intenções

Eu tenho uma sugestão.

a cabayba interrompe o diálogo, confesso que estremeci

Qual?

Sugiro um colar ou aquelas pulserinhas ou um carimbo no punho.

Para que isso?

Mostrar que o aluno está fora da sala de aula para ir ao banheiro.

Não entendi.

a desirée não parecia sintonizada com o que estava sendo discutido. nem hoje nem sempre

Simples, um crachá dizendo: BANHEIRO. Tem que ser bem colorido e suspenso por um cordão para ser usado no pescoço, ao sair da sala de aula, quando da sua ida ao banheiro.

Professora Desirée, é necessário não só dar instrução aos professores, mas também educá-los. Educar aqui, para mim, assume o sentido de pensar educação como um ato que precisa ser vivido como tal, em todas as nossas tentativas frustradas ou não, de pensar e fazer o nosso trabalho pedagógico.

Talvez, com um pouquinho de sorte.

Não podemos contar com a sorte ou com arroubos de magia ou explosões de inspiração no nosso quotidiano, que não podem ser impedidos de acontecer, mas necessitamos interferir com o pleno uso da nossa razão no conjunto das ações propostas pela escola. Com delícia e até com cansaço, mas planejando juntas a letra e a música que será a nossa vida. Construindo uma escola nova para diante. A nossa escola. A escola do povo. A escola da ética e da competência. Comprometimento e alegria. Silêncio e cantoria. Avanços e saudade, uma, duas, dezenas, centenas, milhares de escolas com a cara do seu povo, e não mais com a aparência das caretas de nojo da hegemonia sabe-tudo. A escola dialética. A escola sem mágoas. Ou que possa conversar sobre suas mágoas. A escola que brinca. Canta e dança. A escola que não derrota, mas transforma. A escola dos fatos e da poesia. A escola das etnias. A escola histórica que não pára. A escola que não trai. A escola dos amores da nossa vida, exagerada na resistência ao mau humor e intolerância. A escola das diferenças. A escola da pátria imensa. Chega da escola histérica e estéril.

o silêncio que se seguiu à fala do marko estava formado com material inflamável e à combustão espontânea estava em andamento, a reação contrária aos sonhos possíveis não espera o tempo de dormir

Eis então, sempre volta o velho e surrado discurso comunista de que o problema na educação é o professor e a sua incapacidade de perceber a realidade! E de brincar. E como se faz isso? Como brincamos nesse conto de fadas e nos aprontamos para a avaliação nacional?

a ofélia viajante expressa do submundo subterrâneo das almas com registros de muitas entradas e saídas não deixava dúvidas, apenas pelo tom de sua voz, ela estava pronta para a batalha

Pergunte aos alunos e alunas.

Talvez se queira dizer apenas que aquele professor, aquela professora que abandona a sua turma de alunos para fumar e tomar um cafezinho, também devesse ter um crachá pêndulo dizendo: CIGARRO E CAFEZINHO. O que vale para uns vale para outros. Talvez se queira dizer que aquele que se atrasa não deva impedir seu aluno de entrar atrasado. O que vale para uns vale para outras.

Lia não compara o que não pode ser confrontado.

a acemira correndo em socorro da subtérrea ofélia, ombro a ombro, em defesa da família, deus e dos bons costumes na pedagogia sem contradição. e não aceita que se contradiz na beleza insustentável das suas palavras decorativas. sempre faz as mesmas tentativas porque acredita na distorção de ensinar decompondo as inteligências, a habilidade de amestrar

Consideramos que as nossas crianças devem brincar, nossos filhos e filhas ou sobrinhos têm muitos brinquedos, mas estamos convencidos de que para o divertimento deve haver um lugar separado. Raros são os momentos dentro do nosso fazer pedagógico que nos permitem aproximar de nossos alunos e nossas alunas com tanta intensidade que aquelas circunstâncias que nos envolvem nos jogos e nas brincadeiras. E quando existem não saímos do nosso refúgio, a caverna dos cafés e iogurtes. Perdemos a entrega ao outro e à outra que dificilmente haverá em outros fazeres. O lúdico nos aproxima na beleza de aprendermos juntos.

Concordo com o Marko, nada impede o professor de matemática declamar Neruda, ler Saramago, aos seus alunos e suas alunas, num ambiente lúdico e cúmplice pelo encanto da vida.

Bobagem, minha formação, meus estudos universitários, estão na área do pensamento lógico, minha mensagem educativa são os números, desabafo nas fórmulas.

Eu desabafo nos verbos. O que será do jovem que não sabe ler e escrever?

Eu adoro contar as histórias da história.

alojaram o pensamento cartesiano em nossa transpiração. dizemos que não acreditamos, mas desconfiamos que nosso aluno precisa ser avaliado na sua totalidade, ao contrário da avaliação específica dos conhecimentos herméticos. os conheceres são sortidos e numerosos. e na multiplicidade das possibilidades todos e todas se encontram em suas preferências. mas escuto isso todos os anos, O que faço com os conceitos de número, operações matemáticas, equações, O que faço com as conjugações, a pontuação, a crase, E os mapas, E as datas

Conquista primeiro a alma de teu aluno e aluna, faça com que te levem no peito a qualquer lugar. E faça dos números os instrumentos da leitura crítica do mundo real das intenções, construa o significado das palavras de cara amarrada com essa massa de negros, pardos e índios.

o professor marko continuava sua fala com a calma de quem joga e brinca no campo do adversário, procurava pela faixa extremamente estreita que busca a luz nas contradições da prática e da teoria. não sentia falta de ar, não se pensa sem falhas nem se supõe sem escolhas

Professor Marko, se entendi bem, tudo o que acontece no pátio faz parte da necessidade de jogo das crianças?

questiona a bela desirée. o belo que vem sem nada e anda entre nós quer nossos olhos. flutua e machuca com seu gosto inalcançável, tenta nos amordaçar. é muito bonita

E nós, adultos que brincamos?

Claro que brincamos! Às vezes, sinto uma vontade louca de invadir as reuniões destes homens e mulheres importantes. Em silêncio. Desapercebido de todos para observar, conhecer como as decisões são tomadas. Sei que corro riscos de uma profunda desilusão.

O Marko não desiste, se dentro das paredes da escola não existe coletivo, duvido que tal coletivo exista nos espaços de poder. Espaços coletivos adultos e lúdicos, bobagem!

o corporativismo igual ao nosso de professores se estabelece de maneira invisível, mas seus odores são perceptíveis. e podem ser tornar assassinos esquisitos do futuro

Imagino algum prefeito ou governador ou presidente da república, do encurralado gigante adormecido, abrindo a reunião com seus colaboradores diretos, solicitando que uns mais que outros se sacrifiquem, no sentido de cortarem gastos, estabelecendo prioridades diferentes dos seus interesses políticos pessoais, tudo brincadeira. Imaginem que algum desses políticos decretem a diminuição dos seus salários. Jamais acontecerá! Intrigas, ciladas e traições acontecem antes de se pensar no bem-estar coletivo, sou louca e juro que não acredito em finais felizes. Tudo é apenas um jogo entre o gato e o rato. Sem falar no papo-furado para votarmos com o coração, sem raivas ou furor desmedido, tudo em nome da paz que acoberta a solidão dos que não se sabem e não são vistos.

somos ingênuos, analfabetas críticas, mortos de amorosidade. ainda descobrindo que a paz não se alcança sem luta. os assassinos que sempre governaram na américa latina, salvo pequenos desvios históricos, por descuido ou sono do assassinador, mantiveram o povo amordaçado, a cordeiragem. jamais exerceram o poder em nome dos interesses dos pobres sem escola, sem casa, sem saúde, sem saneamento, sem lazer, sem alimentos, sem nada. filhos da puta, vocês que cospem mais cadeias como solução, injetem nas veias brancas de pó a sua pena de morte. anoréxicos mantenham a fome enquanto amordaçam o sonho da vida plena, mas tudo há de mudar se a luta continuar


Professor Abá, como é que eu faço, O que aconteceu, Fui assaltada e levaram o livro da biblioteca, Quem se importa, não tenho filhos, por agora está bom, mas quero ter os meus. tempos difíceis pra gente como a gente enredada em sobreviver sonhar com filhos. quando ficar mais enrugadinha vou precisar deles, eu sei. mas não sei se os terei. nesse tempo, não os terei ainda, os filhos dos miseráveis morrem antes das dobras da pele. essa gente sabe-tudo tem em uma das mãos o dinheiro e na outra um chocalho e espelhos. imagens refletidas dizendo o que devo ser ou ter. palavras também são espelhos. os professores e o encantamento extraordinário daqueles que se acham sob inspiração divina. não tenho paixão pra falar e escrever da minha vida. me fiz imperfeita em imagens e semelhanças das sem inteligência para perseguir. acorda e canta, me torturo, pelo menos, uma primeira vez, é possível responder, surpreendendo o povo inteiro, A morte não é em vão, basta conseguir que a moça triste dance e aprenda a canção do Zé, Pois é, concordo comigo mesma, sem nenhuma persuasão íntima, perturbada com meus devaneios de querer compreender meus humores e expulsar meus temores, sempre de novo, recomeçando, numa atitude de todos os dias, todas as horas. recomeçando recomeçar. tem que adiantar vir aqui sentar olhar resmungar fungar, nossos olhos vermelhando o cansaço do caminho recomeçar re-começar andarilhar quase todos os dias, precisamos parar de andar em círculos para escutar as batidas do coração alegria, batendo sem ritmo. ele tem seu próprio ritmo. nem ao menos sei se a vida tem ritmo diferente da dor de cotovelo, do amor perdido, traído ou gozo com o amante errado, sem mãos ou linguas, apenas uma marreta que bate, afunda e bate

Professor Abá, como faço pra lê mais sobre isto, meus colegas continuam suas perguntas buscas. eu não encontro sonhos fantásticos a minha volta, sinto-me só sem calor vazia em teu fascínio, um crescente declínio, Como é que saio daqui, pergunta alguém perdido no labirinto dos sinais. abro a boca e paro, ia responder, Abre a porta e sai. juro, às vezes, quero a vontade de ser grosseira. jamais deveria ser professora, porque as repetiria, em permanentes urticárias. perdão, minhas queridas. nem todas foram sem coração. prefiro permanecer áspera apenas nos meus pensamentos nas minhas aflições sou lágrima num passado ameno sem glória. não resisto ao súbito espanto, Esta letra ta muito pequenininha, De que jeito aumenta? como pode haver tantas perguntas, às minhas me faço de surda cansada sem sede de beber-me. escutei o teu não. preciso sangrar me permitir à lágrima que sou dizer adeus e não retornar. as dúvidas nunca se terminam, É só isso, pergunta meu colega, que sempre está vestido com a camiseta de seu time, o professor está perturbado pelo interesse das pessoas analfabetas da escrita, a escola sempre quis ensinar e nunca soube como fazê-lo. eu não acredito em sono fantástico apenas deito e durmo. a vida é muito simples somos o alimento e quero ser o alimento. tua comida tua sede e ser bebida aos goles, tuas mãos em minha pele me salvando de toda essa confusão que é viver. salvando-me da vida das tuas mãos tua boca teu cheiro até que será tudo nosso

De nada vai servir... se eu não sei lê. Os guris não entendem porque ela não é parecidinha com as gostosonas da televisão, não tem nem os chinelos que não são havaianos, são falsos. nem os falsos
 


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