terça-feira, 1 de março de 2016

Memórias Póstumas de Brás Cubas: RAZÃO CONTRA SANDICE

Machado de Assis


Memórias Póstumas de Brás Cubas




CAPÍTULO VIII / RAZÃO CONTRA SANDICE



 Já o leitor compreendeu que era a Razão que voltava à casa, e convidava a Sandice a sair, clamando, e com melhor jus, as palavras de Tartufo:

 La maison est à moi, c'est à vous d'en sortir.

 Mas é sestro antigo da Sandice criar amor às casas alheias, de modo que, apenas senhora de uma, dificilmente lha farão despejar. É sestro; não se tira daí; há muito que lhe calejou a vergonha. Agora, se advertirmos no imenso número de casas que ocupa, umas de vez, outras durante as suas estações calmosas, concluiremos que esta amável peregrina é o terror dos proprietários. No nosso caso, houve quase um distúrbio à porta do meu cérebro, porque a adventícia não queria entregar a casa, e a dona não cedia da intenção de tomar o que era seu. Afinal, já a Sandice se contentava com um cantinho no sótão.

 — Não, senhora, replicou a Razão, estou cansada de lhe ceder sótãos, cansada e experimentada, o que você quer é passar mansamente do sótão à sala de jantar, daí à de visitas e ao resto.

 — Está bem, deixe-me ficar algum tempo mais, estou na pista de um mistério...

 — Que mistério?

 — De dois, emendou a Sandice; o da vida e o da morte; peço-lhe só uns dez minutos.

 A Razão pôs-se a rir.

 — Hás de ser sempre a mesma coisa... sempre a mesma coisa... sempre a mesma coisa...

 E dizendo isto, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para fora; depois entrou e fechou-se. A Sandice ainda gemeu algumas súplicas, grunhiu algumas zangas; mas desenganou-se depressa, deitou a língua de fora, em ar de surriada, e foi andando...

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Texto-fonte: 
Obra Completa, Machado de Assis, 
Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994. 


Publicado originalmente em folhetins, a partir de março de 1880, na Revista Brasileira.


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