quarta-feira, 5 de abril de 2017

9.O Estrangeiro: Ao acordar, compreendi - Albert Camus

Albert Camus


Capítulo 2


9. Ao acordar, compreendi




Ao acordar, compreendi por que motivo o meu chefe mostrara um ar aborrecido quando lhe pedi os dois dias de licença: hoje era sábado. tinha-o, por assim dizer, esquecido, mas ao levantar-me, esta ideia viera-me à cabeça. O chefe, muito naturalmente, pensou que eu disporia assim de quatro dias de feriado contando com o domingo, e isso não lhe podia dar prazer de espécie nenhuma. Mas por um lado não é culpa minha, se o enterro foi ontem em vez de ser hoje, e por outro lado, teria tido de qualquer maneira o sábado e o domingo livres. Isto não me impede, é claro, de compreender.


Custou-me a levantar, pois estava cansado do dia de ontem. Enquanto fazia a barba, perguntei a mim mesmo o que iria fazer e decidi ir tomar um banho de mar. Tomei um elétrico e dirigi-me para o estabelecimento de banhos do porto. Uma vez aí, mergulhei para a água. Havia muitos rapazes e raparigas. Encontrei na água a Maria Cardona, uma antiga datilógrafa do escritório, que eu desejara em tempos. Ela também, julgo eu. Mas despediu-se pouco depois e não tivemos tempo. 

Ajudei-a a subir para uma boia e, neste movimento, toquei-lhe nos seios. Estava eu ainda na água, e já ela se estendia na boia de barriga para o ar. 

Voltou-se para mim. Tinha os cabelos a caírem-lhe para os olhos e sorria. Subi para o lado dela. 

Estava um dia ótimo e, como de brincadeira, deixei cair a cabeça para trás, e descansei-a em cima dela. Não disse nada e eu deixei-me ficar assim: Tinha o céu inteiro nos olhos, e o céu estava azul e dourado. Debaixo da cabeça, sentia o corpo de Maria latejar suavemente. Ficamos muito tempo na boia, meio adormecidos. Quando o sol se tornou forte de mais, ela mergulhou e eu também. Agarrei-a, passei-lhe um braço em volta da cintura e nadamos os dois juntos. Ela ria muito.

No cais, enquanto nos secávamos, disse-me: "Estou mais queimada do que você". Perguntei-lhe se queria vir comigo à noite ao cinema. Voltou a rir e disse que tinha vontade de ver um filme com o Fernandel. Depois de vestidos, ficou admirada de me ver com uma gravata preta e perguntou-me se eu estava de luto. Disse-lhe que a minha mãe tinha morrido. Como queria saber há quanto tempo, respondi-lhe: "Morreu ontem". Esboçou um movimento de recuo, mas não fez nenhuma observação. Tive vontade de lhe dizer que a culpa não fora minha, mas detive-me porque me pareceu já ter dito isso mesmo ao meu chefe. Isto nada queria dizer. De qualquer modo, fica-se sempre com um ar um pouco culpado. 


À noite, Maria esquecera-se de tudo. O filme tinha momentos engraçados e outros realmente idiotas. Encostava a minha perna à dela. Acariciava-lhe os seios. Para o fim do espetáculo beijei-a, mas mal. À saída, veio a minha casa. 

Quando acordei fora-se já embora. Explicara-me que tinha de ir visitar uma tia. Pensei que era domingo, o que me aborreceu: não gosto dos Domingos. Então voltei-me na cama, procurei na almofada o cheiro de sal que os cabelos de Maria ali tinham deixado e dormi até às dez horas: Fumei depois alguns cigarros, sem me levantar, até ao meio-dia. Não queria ir como de costume almoçar ao Celeste porque me fariam com certeza perguntas e eu detesto que me façam perguntas. Cozi eu próprio uns ovos e comi-os assim mesmo, sem pão porque já não havia nenhum e porque não queria descer para o ir comprar. 

Depois do almoço aborreci-me um pouco, e vagueei pela casa. Quando a mãe cá estava, era cômoda. Agora é grande demais para mim e tive que transportar a mesa da sala de jantar para o quarto. 

Vivo apenas nesta divisão, rodeado pelas cadeiras de palha um pouco gastas, pelo armário cujo espelho está amarelecido, pela cómoda e pela cama encerada. Mais tarde, para fazer alguma coisa, peguei num velho jornal e pus-me a ler. Recortei um anúncio de sais de Kruschen e colei-o num velho caderno onde guardo as coisas que me divertem nos jornais. Lavei também as mãos e, por fim, fui para a varanda.

O meu quarto dá para a rua principal do bairro. A tarde estava bonita. No entanto, o pavimento estava pastoso, as pessoas eram poucas e, para mais, iam com pressa. Passavam primeiro famílias de passeio, dois miúdos de fato à marujo, com calções até ao joelho, um pouco embaraçados nos seus trajes de ver-a-Deus, uma rapariguinha com um grande laçarote cor-de-rosa e sapatos pretos envernizados. Atrás deles, uma mãe enorme, com um vestido de seda castanho, e o pai, um homenzinho franzino que eu conheço de vista. Trazia um chapéu de palha, um lacinho e uma bengala na mão. Vendo-o com a mulher, percebi porque é que, no bairro, se dizia que era uma pessoa distinta. Um pouco mais tarde, passaram rapazes do bairro, cabelos penteados com fixador, gravata vermelha, casaco muito cintado, com uma algibeira bordada e sapatos de ponta quadrada. Pensei que iam a um dos cinemas da baixa. Por isso é que partiam tão cedo, rindo tanto e correndo para o elétrico.


Depois deles, a rua ficou pouco a pouco deserta. Os espetáculos, julgo eu, tinham principiado em toda a parte. Só se viam na rua os comerciantes e os gatos.





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A Constatação do Absurdo

Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.


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Camus, Albert, 1913-1960.
              O Estrangeiro
Título Original L'Étranger
Tradução de António Quadros
Edição Livros do Brasil
Lisboa
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Leia também:

8.O Estrangeiro: Iniciamos o caminho - Albert Camus

10.O Estrangeiro: O céu estava puro - Albert Camus

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