terça-feira, 4 de abril de 2017

O Segundo Sexo - 5. Fatos e Mitos: como poremos então a questão?

Simone de Beauvoir



5. Fatos e Mitos


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omo poremos então a questão?




MUITOS HOMENS O DESEJAM: nem todos se desarmaram ainda. A burguesia conservadora continua a ver na emancipação da mulher um perigo que lhe ameaça a moral e os interesses. Certos homens temem a concorrência feminina. No Hebdo-Latin um estudante declarava há dias: "Toda estudante que consegue uma posição de médico ou de advogado rouba-nos um lugar". Esse rapaz não duvidava, um só instante, de seus próprios direitos sobre o mundo. Não são somente os interesses econômicos que importam. Um dos benefícios que a opressão assegura aos opressores é de o mais humilde destes se sentir superior: um "pobre branco" do sul dos E.U.A. tem o consolo de dizer que não é "um negro imundo" e os brancos mais ricos exploram habilmente esse orgulho. Assim também, o mais medíocre dos homens julga-se um semideus diante das mulheres. Era muito mais fácil a Montherlant julgar-se um herói quando se confrontava com mulheres (escolhidas, de resto, a dedo) do que quando teve de desempenhar seu papel de homem entre os homens: papel que muitas mulheres desempenharam melhor do que ele. É assim que, em setembro de 1948, em um de seus artigos do Vigoro Littéraire, o Sr. Claude Mauriac — cuja forte originalidade todos admiram — pode escrever (1): "Nós ouvimos numa atitude (sic!) de indiferença cortês... a mais brilhante dentre elas, sabendo muito bem que seu espírito reflete, de maneira mais ou menos brilhante, ideias que vêm de nós". Não são evidentemente as ideias do próprio Sr. C. Mauriac que sua interlocutora reflete, dado que ele não tem nenhuma; que ela reflita ideias que vêm dos homens é possível: entre os homens mais de um considera suas muitas opiniões que não inventou; pode-se indagar se o Sr. Claude Mauriac não teria interesse em entreter-se com um bom reflexo de Descartes, de Marx, de Gide, de preferência a entreter-se consigo próprio. O que é notável é que mediante o equívoco do nós identifica-se ele com São Paulo, Hegel, Lênine, Nietzsche e do alto da grandeza deles considera com desdém o rebanho de mulheres que ousam falar-lhe em pé de igualdade. Para dizer a verdade, conheço muitas que não teriam a paciência de conceder ao Sr. Mauriac "uma atitude de indiferença cortês".

Insisti nesse exemplo porque nele a ingenuidade masculina é desarmante. Há muitas outras maneiras mais sutis mediante as quais os homens tiram proveito da alteridade da mulher. Para todos os que sofrem de complexo de inferioridade, há nisso um linimento milagroso: ninguém é mais arrogante em relação às mulheres, mais agressivo ou desdenhoso do que o homem que duvida de sua virilidade. Os que não se intimidam com seus semelhantes mostram-se também muito mais dispostos a reconhecer na mulher um semelhante. Mesmo a esses, entretanto, o mito da Mulher, o Outro, é caro por muitas razões (2);  não há como censurá-los por não sacrificarem de bom grado todas as vantagens que tiram disso; sabem o que perdem, renunciando à mulher tal qual a sonham, ignoram o que lhe trará a mulher tal qual ela será amanhã. É preciso muita abnegação para se recusar a apresentar-se como o Sujeito único e absoluto.



(1) Acreditou poder, pelo menos,


(2) O artigo de Michel Carrouges sobre esse tema, no número 292 do Cahiers du Sud, é significativo. Escreve com indignação: "Gostaríamos que não houvesse o mito da mulher, mas tão-somente uma coorte de cozinheiras, de matronas, de meretrizes, de pedantes com funções de prazer e de utilidade". O que significa que, a seu ver, a mulher não tem existência para si; ele considera apenas sua função dentro do mundo masculino. Sua finalidade encontra-se no homem; então, com efeito, pode-se preferir sua "função" poética a qualquer outra. A questão está, precisamente, em saber por que se deveria defini-la em relação ao homem.


Aliás, a grande maioria dos homens não assume explicitamente essa pretensão. Eles não colocam a mulher como uma inferior; estão hoje demasiado compenetrados do ideal democrático para não reconhecer todos os seres humanos como iguais. No seio da família, a mulher apresenta-se à criança e ao jovem revestida da mesma dignidade social dos adultos masculinos; mais tarde ele sente no desejo e no amor a resistência, a independência, da mulher desejada e amada; casado, ele respeita na mulher a esposa, a mãe, e na experiência concreta da vida conjugal ela se afirma em face dele como uma liberdade. O homem pode, pois, persuadir-se de que não existe mais hierarquia social entre os sexos e de que, grosso modo, através das diferenças, a mulher é sua igual. Como observa, entretanto, algumas inferioridades — das quais a mais importante é a incapacidade profissional — ele as atribui à natureza. Quando tem para com a mulher uma atitude de colaboração e benevolência, ele tematiza o princípio da igualdade abstrata; e a desigualdade concreta que verifica, não a põe. Mas, logo que entra em conflito com a mulher, a situação se inverte: ele tematiza a desigualdade concreta e dela tira autoridade para negar a igualdade abstrata (1). Assim é que muitos homens afirmam quase com boa-fé que as mulheres são iguais aos homens e nada têm a reivindicar, e, ao mesmo tempo, que as mulheres nunca poderão ser iguais aos homens e que suas reivindicações são vãs. É que é difícil para o homem medir a extrema importância de discriminações sociais que parecem insignificantes de fora e cujas repercussões morais e intelectuais são tão profundas na mulher que podem parecer ter suas raízes numa natureza original (2) . Mesmo o homem mais simpático à mulher nunca lhe conhece bem a situação concreta. Por isso não há como acreditar nos homens quando se esforçam por defender privilégios cujo alcance não medem. Não nos deixaremos, portanto, intimidar pelo número e pela violência dos ataques dirigidos contra a mulher, nem nos impressionar com os elogios interesseiros que se fazem à "verdadeira mulher"; nem nos contaminar pelo entusiasmo que seu destino suscita entre os homens que por nada no mundo desejariam compartilhá-lo.



(1) O homem declara, por exemplo, que não vê sua mulher diminuída pelo fato de não ter profissão: a tarefa do lar 6 tão nobre quanto etc. Entretanto, na primeira disputa, exclama: "Sereis totalmente incapaz de ganhar tua vida sem mim".

(2) Descrever esse processo será precisamente o objeto do segundo volume.


Entretanto, não devemos ponderar com menos desconfiança os argumentos dos feministas: muitas vezes, a preocupação polêmica tira-lhes todo valor. Se a "questão feminina" é tão absurda é porque a arrogância masculina fez dela uma "querela" e quando as pessoas querelam não raciocinam bem. O que se procurou infatigavelmente provar foi que a mulher é superior, inferior ou igual ao homem. Criada depois de Adão, é evidentemente um ser secundário, dizem uns; ao contrário, dizem outros, Adão era apenas um esboço e Deus alcançou a perfeição do ser humano quando criou Eva; seu cérebro é o menor, mas é relativamente o maior; e se Cristo se fez homem foi possivelmente por humildade. Cada argumento sugere imediatamente seu contrário e não raro ambos são falhos... Se quisermos ver com clareza devemos sair desses trilhos; precisamos recusar as noções vagas de superioridade, inferioridade, igualdade que desvirtuam todas as discussões e reiniciar do começo.

Como poremos então a questão?




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O SEGUND O SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.


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Leia também:

O Segundo Sexo - 4 Fatos e Mitos: esse estado de coisas deve perpetuar-se?

O Segundo Sexo - 6 Fatos e Mitos: que caminhos conduzem a um beco sem saída?

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