quarta-feira, 31 de maio de 2017

histórias de avoinha: hômi tigre

mulheres descalças


hômi tigre
Ensaio 103B – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar



Agarra! Agarra! Pela puta que os pariu, agarra o neguinho!

Onde? Onde está esse filho-da-puta?

a villa conhece a villa: num tinha hora boa pra nehum pretu corrê; se correu era culpado, as purugunta era feita depois dos pretu sê controlado ou abatido; se era culpado pruqui correu num podia tá com soltura pra vai e vem

tem veiz qui num precisa corrê, tem veiz qui só a cara preta é a denúncia, aponta o dedo e grita qui é culpado, Ladrão!

Alguém viu o fujão?

Eu vi.

Tem certeza?

Eu vi um negrinho correndo e com uma cara assustada... meu Deus, que negrinho feio. A cara cheia de marcas, aquela cicatriz na testa... e muito fedido... esse negro que procuram tem os dentes?

Na frente não tem nenhum, perdeu por desobediência.

Então... é ele.

E qual o rumo do bandidinho?

Desceu, foi na direção do rio.

o aglomerado dos curioso só fazia aumentá os murmúrio e as conversa. a pele qui veste as entranha dus pretu num torna os pretu mais suportável prus óio da villa injusta, um lugá qui num mede a dô qui aplica nus pretu com a mesma régua qui mede a dô qui pune os branco

Quem é esse?

Anda fugindo fazem dois ou três dias...

E tem nome?

num ajuntamento de esfomeado amontoado sempre se destaca um ou dois curioso qui tem mais coisa pra contá qui a maioria. coisa qui num precisa prová nem comprová, a villa gosta da omissão da verdade, só é preciso sabê contá e num sê pretu nem índio

Fortunato...

tê nome é um bão começo pra caçada tê sucesso, tê nome qui faz tê medo dá mais garantia do desfecho com brilhatura. quanto mais medo o nome do fugido espáia na villa mais cagado de medo se junta na caçada: fortunato, o fascínora; fortunato, o degoladô; fortunato, o desalmado

... não tem 20 anos.

trêis amigo qui descia prus rio parô no aglomerado e resolveu qui aquela correria num ia dá em nada, eles já tava cansado de esperá pelo desfecho e perdia mais moeda qui ganhava com o comércio fechado

Preciso abrir a botica dos remédios.

Vosmecê está com medo, Juca? É preciso expulsar ou prender o demônio desse negro.

Eu não tenho medo de criolo, Maneco Coxa. Mas quem vai abrir a botica? E quem vai tocar a carreta se vosmecê está aqui?

Calma, vivente... primeiro, o meu leite com pera. Os bois, a carreta e os negócios vêm depois.

Então, o amigo está atrasado.

E quem não está atrasado? Essa movimentação toda não é boa para ninguém nem serve para os criolos. Ficar quieto na boiada pode ser melhor que fingir que não é boi.

Bobagem, Maneco. Os criolos precisam saber quem manda e que precisam obedecer. É simples, não precisa complicar, se escutou seu nome ser chamado pelo dono... para e atende o chamado... correndo.

O dom de servir para viver.

E os negros que não usam o dom de servir é porque ainda não servem para o dom de viver.

Até os animais gostam de servir e serem cuidados. O que vosmecê acha, Joca?

O que eu acho? Eu acho que também preciso voltar e abrir a loja. Ninguém irá comprar lampião com as portas da loja fechadas. Só se colhe o que se planta. E quem pode dizer como é feliz com o que colhe?

A senzala nova para dar lugar de dormida e descanso aos negros da obra Santa faz parte da sua semeadura?

É um luxo de senzala, Juca. Estou plantando junto com o sinhô padre um lugar no Paraíso.

Cada um carrega o seu Paraíso.

Ou o seu inferno.

os trêis qui descia... agora, subia. a conversa aparecia e desaparecia

Há um lampião dentro de mim.

Há muito remédio dentro de mim.

Chega. Os dois não vão me convencer que cada um carrega por dentro o que faz. Então, por que não tenho dentro de mim mesmo um boi? E castrado?

os trêis qui subia, parô e se agachô de risada

Falando sério... como vosmecês sabem tanto sobre o criolo fujão?

Juca, é só ter ouvidos.

Nem tudo que se escuta é para ser escutado ou pode ser entendido.

É preciso ter paciência e boa vontade com os villeiros.

os trêis voltô subí

É isso. Ele tem falta dos dentes na frente, pouca ou nenhuma barba, baixo, magricela e picado de bexigas que teve há poucos anos, é muito pachola, mal encarado. Coisa ruim de ver e encarar sozinho.

Puxa, vosmecê sabe tudo isso do criolo de ouvir dizer?

Claro que não, Juca. Eu li.

Leu?

E eu sei ler?

Foi vosmecê que disse que leu...

Subir na carreta e viajar pra lá e cá não ensina ninguém sobre as finuras da leitura.

Mas se vosmecê não sabe ler...

Isso, Maneco... se vosmecê não sabe ler como foi que leu os reclames da fuga do tal Fortunato, o fascínora?

Lembrei que estou precisando tomar um chimarrão.

Vou servir um chimarrão quando chegarmos na loja. E vosmecê leu ou não leu?

os trêis deixava um rastro viscoso de caramujo e lesma

Prestei atenção na leitura dos amigos que sabem ler. Para viver não é preciso ler.

Hum...

Aham...

E de mais a mais, os criolos são todos iguais: preto, sem dente, feio, cicatrizes pelo corpo e cabelo ruim. Não sabem falar. Não sabem ler nem escrever. Ignorantes.

Bem isso, Juca. O Maneco Coxa tem razão: se vosmecê viu um... já viu todos.

Vosmecê acha mesmo?

Juca, eu não vi o criolo que provocou essa correria toda, mas escutei que é um criolo que fala apressado e olhando o chão. Já mentiu ser forro e desfilou na Villa calçado.

É um negrinho atrevido.

Não sei, não. Aposto que sabe cozinhar e entende de plantações de roça.

os trêis amigo fez silêncio, eles parecia medí o tamanho das palavra qui devia sê dita. a mudez revigora os pensamento, mais é preciso acordá o qui cada um carrega dentro dele mesmo. o perigo é num tá carregando coisa boa. o maneco foi o primêro qui saiu daquela medição

O que faz um negro fugir da segurança que o seu sinhô pode e deve lhe oferecer para provocar essa correria? Essa confusão só pode terminar em castigo! Por que fugir? É muita estupidez!

o juca foi o próximo qui mandô prus quinto dos inferno a escôia mais boa das palavra dita, no dizê dele, num é as palavra qui provoca confusão, é a confusão qui causa as palavra ruim, Vagabundagem!

os trêis amigo parô os passo qui ia sendo dado no rumo das rua à esmo da subida, pra qualqué lugá nehum. eles num reparô qui a parada forçada foi junto dum otro ajuntamento de gente sendo feito na carona dos vento parado

Vagabundagem, Juca?

Sim... va – ga – bun – da – gem!

Será, Juca?

foi a veiz do joca quebrá o silêncio dos pensamento. num tava indignado, parecia só tá curioso

Meu Deus! Como os meus amigos e vizinhos de comércio são ingênuos. A negrada prefere perambular esmolando nas ruas do que trabalhar com empenho, esforço, fervor e zelo pelo seu sinhô. É só ter olhos para ver!

Concordo...

os trêis virô as vista pru rumo da palavra qui se enfiô na conversa sem tê convocação

Desculpem minha intromissão, continuô o intrometido, todo enfiado em rôpa com uso pra missa dominguêra, cheguei fazem alguns minutos do Rio do Janeiro. Meu nome é Domingos Jorge, o Novo.

Hum... se tem o novo é porque já teve o velho.

Sim... vovô de papai. Pelo menos, é o que se conta na família.

Então...

Desembarquei hoje, como já me referi, e cruzei no caminho com esse negro em fuga. Devo dizer que é muito jovem. Primeiro, pareceu-me ser mais um negro assustado em fuga, mas eu diria em um julgamento apressado que o fujão é apenas mais um tigre.

Tigre, foi u qui us trêis du comércio da villa falô cum espantu nu mesmo tempo, nehum esperava sabê qui u fujão era tão feroz pra sê chamado de tigre. eles se oiô aliviado de num tê seguido na perseguição. tem veiz qui u bão senso dá mais alívio qui a curiosidade, e sempre vai dá mais desafogo qui u ódio

Sim... só mais um tigre, o forastêro parecia se divertí cum a confusão, temos muitos tigres no Rio de Janeiro. E pelo visto, a Villa de vosmecês também faz uso dos cabungueiros.

Cabungueiros?

us trêis pareceu sentí qui a villa tava no fim du mundo. era preciso mandá us fiu das pessoa du bem tê instrução longe da villa, assim eles podia sabê das novidade

Sim... olhem ali, lá vai um cabunguerio... a Villa de vosmecês também faz uso dos cabungueiros. Olhem lá, mais dois cabungueiros.

de novo, lá e cá e pra lá, us trêis caminhava com as vista pra onde u misterioso estranho apontava, oiá eles oiava, mais lá nu lugá qui eles oiava num conseguia achá a resposta

Onde?

eles oiava, mais num sabia vê u qui aquele forastêro tava vendo, era muntu pretu subindo e descendo, munta preta aparecendo e sumindo, muntu muriquinhu gritando, muntu alarido das muriquinha magricela, muntu vira-lata acuando, mijando, muntu excremento nas rua

Ali... vosmecês são cegos? Sem querer ofender... os dois negros descendo com os cabungos nas costas, rumo ao rio...

Ah!

foi a resposta tercina

Os pretos cubeiros!

u dono da botica farmacêutica explicô meió o serviço dos cubêro

Sim, temos cubeiros. A Villa não pode abrir mão dos nossos cubeiros. Carregam os baldes cheios dos dejetos humanos e jogam tudo no rio.

Sem eles a Villa iria feder pior que a carniça mais imunda e pestilenta.

o maneco complementô, Então, o negrinho fujão é cubeiro...

Cubeiro?

foi a veiz do forastêro mostrá qui num sabe tudo, ninguém sabe tudo

Sim. Na Villa usamos um pequeno barril cônico de madeira com aproximadamente cinquenta centímetros de altura, uma boca de mais ou menos vinte e cinco centímetros, chegando sua base ter trinta e cinco centímentros. Os cubos são substituídos semanalmente, ou de acordo com as urgências, para o asséio público. Deixam no lugar outro cubo limpinho, embebido em alcatrão ou outro óleo bem escuro.

Trinta e cinco centímetros do quê?

a purugunta du forastêro deixô us trêis sem tê resposta, Como assim?

Diâmetro ou circunferência?

os tercina da villa se oiô sem tê a resposta, o maneco adiantô-se

E qual a diferença? Dentro do balde só tem merda, mijo e tudo que é porcaria que sai por cima ou por baixo do vivente!

Concordo... tem bobagem que é só bobagem. Serve para tirar a atenção do que interessa. E saber bobagem só ajuda esquecer as coisas mais importantes.

Isso mesmo. Esse fujão não pode escapar.

Um pequeno exemplo e vamos ter nas mãos uma revolta de cubeiros.

Vai sobrar merda para todo mundo!

o joca num se aguentô de curiosidade, E por que no Rio de Janeiro esses negros são chamados de tigres?

o forastêro deu uma sonora risada qui silenciô as gritaria das rua, parecia se divertí muntu com as lembraça qui alegrava sua manhã

Esses coitados são chamados de tigres porque as porcarias humanas que carregam nos ombros escorrem dos recipientes e deixam seus corpos famélicos com listras de fezes, o que levou a serem comparados a tigres.

espritus ou qualqué um qui pode ou qué respondê: como pode esses hôme escravizá us pretu, fazê carregá seu côcô, mijo e vômito, e ainda se apoderá dus pretu inté depois da morte, rindo e se fazendo de cego, surdo e mudo...


uma villa feita cum as entranha dus mais pobre,  dus escravizado... e a hipocrisia e o cinismo dos abençoados



 ___________________________


Leia também:


histórias de avoinha: a parte ruim da vida: a herança do ódio
Ensaio 102B – 2ª edição 1ª reimpressão


histórias de avoinha: a cabeça dum moringue
Ensaio 104B – 2ª edição 1ª reimpressão

Nenhum comentário:

Postar um comentário