domingo, 7 de maio de 2017

O Brasil nação - v1: § 35 – Os valores na crosta - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim



O Brasil nação volume 1





PRIMEIRA PARTE
SEQUÊNCIAS HISTÓRICAS



capítulo 4
o definitivo império do brasil







§ 35 – Os valores na crosta




Rui Barbosa tem razão, no sentido de que o mal – é a miséria mesma do bragantismo implantado no Brasil. Já o notamos, porém, que não é de Pedro II a responsabilidade imediata, senão daqueles que prepararam, de 1832 a 40, o sistema político em que se caracterizou definitivamente o Império. Produto direto e representante supremo do bragantismo, não seria Pedro II que iria extingui-lo. Muito pelo contrário. Naturalmente, necessariamente, com toda a lógica, aproveitou-o bem, afeiçoando-o formalmente, pois que aí se encontrava com os próprios instintos. A ação pessoal desse príncipe tem significação especial, e exige, mesmo, parágrafo próprio; agora, temos a consignar, somente, que essa política, do segundo Império, e o regime que nela se faz, são desenvolvimentos naturais. O imperador que, talvez, não teria capacidade consequente para tanto, não foi quem a organizou de origem; mas veio a ser o seu complemento necessário, como que o justo fecho do regime. Apreciemo-la, a essa política, em formas e em valores. 

Definindo-se e consolidando-se, o segundo Império teve como primeiro empenho – reagir, em explícita legislação contra as escassas liberdades conquistadas após 7 de abril. Aliás, ainda aí, ele nada mais fez do que continuar a obra dos interpretadores de 1839 e 40. Assim, ele se afirmou, cresceu, fez o seu prestígio, e prevaleceu, com a realização de um duplo programa: a renovação do essencial, na política do primeiro Império, ou seja o reforço do tráfico, a subordinação ostensiva das províncias à corte, a beligerância no Sul, a multiplicação dos ridículos marqueses... e uma parte nova, própria, e bem mais característica – o falseamento de todas as formas políticas, a generalização da insinceridade, a ostentação dos puros motivos pessoais, a corrosão implacável do caráter, a corrupção de todos os processos, com uma exceção por demais ostensiva, e, por isso, desmoralizante, a intransigência nos assuntos de dinheiro... Com isto, para que o Brasil fosse definitivamente bragantino, o novo Império abafou completamente as genuínas tradições brasileiras, tentando substituí-las por outras, que fossem a consagração do mesmo bragantismo. Então, deturparam-se fatos, amesquinharam-se heroísmos, na pena dos historiadores de encomenda, no intuito de aproveitar à nova política, tudo nos mesmos motivos que fizeram erguer o pesado bronze do Rocio – o Bragança soberaneando por sobre caboclos, antas, jacarés e tamanduás... Contem-se os anos – do dia em que o disentérico do Ipiranga foi daqui enxotado até aquele em que o levantaram no Rocio, já em bronze, e teremos o curso da monstruosa degradação da política nacional. E a queda foi registrada a tempo. 

Aproximadamente na mesma época, em 1879, Araripe Júnior, funcionário público, em função de crítico para a literatura indígena, sem nenhum intuito de malevolências: “Sem política nada se consegue nesta terra, e onde tudo é grande, menos o homem”.145 Evidentemente, ele pensava nos que faziam a política. Do valor e da significação de tal política, nos dirão esses mesmos já transcritos, e que, invariavelmente, no-la apresentam como coisa sem fé, sem ideais, nem entusiasmos, nem dedicações, toda feita no empenho de gozar o poder, com o efeito constante de desfibrar a Nação e viciá-la essencialmente: “Para o vulgo, política significa o meio de um homem fazer posição... deputado quer dizer pretendente; senador, alto funcionário, ministro, um homem de farda... não se sabe de onde veio... faz nomeações por empenho, e anda de carruagem pela cidade...” Sinteticamente, estas definições de Tavares Bastos se diriam – insinceridade, incompetência, embustes, desonestidade... Na prática, o governo se fazia, (e, ainda hoje) como a perpetuação dos abusos, desleixos, arbitrariedades e espoliações dos tempos coloniais: “... os ministros herdeiros dos bem-aventurados ministros do reino unido de Portugal, Brasil e Algarves...” Antes, já o mesmo escritor havia deixado a razão de tudo: “... os erros econômicos e administrativos que afligem o império não são exclusivamente filhos de tal ou tal indivíduo... de tal ou tal partido... Eles procedem todos de um sistema seguido, compacto, invariável...”146


145 José de Alencar, pág. 81. 

146 Op. cit., págs. 267, 140.


E vai tão longe esse compacto sistema que recebe o novo imperante como para conformá-lo. Otoni, comparsa honesto do entremês, deixou o testemunho: “Ainda ressoavam os vivas da festa (maioridade) e já o governo pessoal se inaugurava”. Do corrilho da Joana, da Tatama... com o sacerdócio de Aureliano, havia de sair aquela atividade política descaradamente em facções – facção áulica... facção praieira. E, dadas as condições dominantes, a educação política, de 1840 em diante, devia produzir logicamente o segundo Império. Parlamentarismo... proclamava-se; mas, já em 1846, Saturnino de Oliveira, ao constituir o seu ministério, teve de incluir um adversário – assim o determinava São Cristóvão. Citam-se, que se multiplicam, grandes estadistas, nomes que o tempo vem trazendo, através de intrigas e cobultas, e que são, todos, de homens acomodatícios, sem princípios e sem saber, válidos, apenas, em trampolinices. Confundiam, todos, os interesses do país com os do trono, e, principalmente, com os próprios – pessoais. Começa a era da idolatria da utilidade material: Vasconcelos, Rodrigues Torres... O que se segue, por natural e lógico, simplifica-se tanto que permite distribuir em fases típicas todo o longo segundo Império, em vista da necessária ação do tempo e respectivas erosões: 1840-53 – é a continua e completa liquidação de toda a Revolução de 1831; 1853-66 – atinge-se à culminância do reinado, para a grande prova do seu valor, pelo fastígio da conciliação, a oscilar entre Olinda e Paraná; consagrado na pletora do escravilismo, há energia para tudo, até para o crime contra o Paraguai. Já haviam despontado os Saraiva, Zacharias, Wanderley, Paranhos... até Ferreira Viana, em cuja ousadia já se reflete um declínio. 

Num país sem política de opinião, tal sistema, compacto, seguido, invariável... confunde-se, evidentemente, com o corpo dos dirigentes, e, por isso, é mais daninho – porque é um sistema vivo. Não é tal, ou tal indivíduo, porque são todos eles, incorporados na ação política, com maiores responsabilidades para os mais elevados. Se a mesma ação dirigente tem sido sempre em prejuízo da nação, é porque tal regime existe como instituto estranho a ela. E como a miséria dessa política é contemporânea da própria autonomia do país, há, no Brasil, duas tradições nacionais: uma essencial, de sempre – a própria expressão da alma brasileira, vivaz, desde o começo do século XVII; outra, ligada ao bragantismo, expressão dos seus processos, vívida e pertinaz no ânimo dos dirigentes, continuadores diretos do Estado português aqui deixado por D. João VI, implantado na mentalidade dos seus brasileiros. São tradições divergentes, repetidamente em conflito, inconciliáveis; uma que está na alma do povo, com a nação propriamente dita; a outra que se liga aos exploradores dela, no papel de dominantes, e que é a própria tradição política. Por isso, o mesmo Tavares Bastos, num prescrutar de vidente, nos dirá: “O que há de pior no Brasil é a gente que o governa”. Adiante, como para iludir o pessimismo latente, ele faz ironia: “... é interessante ver a mediocridade usufruir por fideicomisso o governo do Brasil.” Para o mesmo momento, um desabusado chegou ao doloroso conceito: “É privilégio do brasileiro – ser governado pelos mais incapazes e desonestos”. E dá a razão dos conceitos:


... os homens que há tanto tempo monopolizam todos os cargos do Estado, e cuja condenação os acontecimentos estão lavrando de um modo irresistível. Esses homens não pensam, nem possuem convicções: seus discursos são plágios, seus decretos, cópias, suas palavras, repetição sem elegância das frases que leram no primeiro livro encontrado. Assim ilustram-se, granjeiam fama, e nos governam.147


147 Op. cit., págs. 139 e 140.



De fato, sucedem-se os tempos, por aquele longo reinado afora, mudam-se as figuras, mas só há a distinguir os apetites, na pequenez dos motivos, todos levados, no que é essencial, por circunstâncias exteriores à convicções, exteriores, muitas vezes, à própria nação brasileira. A vida pública é um revolver de montureira, e, se tem calor, é porque toda montureira fermenta e aquece. 

Examinados de perto, os melhores desses dirigentes são de uma desoladora banalidade. Valem, como sempre, pela compostura vazia, a sisudez de falas, a moderação nula de eficiência. Para campar de grandes, afetam o ritos da circunspecção, e agarram-se a qualquer propósito que o acaso lhes dê, para o efêmero renome, indiferentes a coerências e lógica de ação... Os que parecem profundos é porque são totalmente vazios. Apreciados no que fizeram, ou nas palavras que deixaram, verifica-se que, neles, toda a vida íntima se reduz aos desejos de mando, sob a estrutura de instintos elementares, tudo contido pelo temor do trono. E, por isso, podiam ser tão facilmente levados pela habilidade curta e fútil do príncipe. Viviam na pequenez da visão deles mesmos, e compreendiam a vida da nação, e todos os aspectos dela, na perspectiva disjunta e falha de caranguejos que contemplassem uma fachada angular, dando um olho para cada face. Nunca a mentalidade desses estadistas pôde penetrar a essência de um momento político do Brasil. Criou-se a vida da nação, refizeram-se as instituições, para diante, para trás; transformou-se o trabalho; apurou-se e desdobrou-se a bondade do coração brasileiro, sem que eles nada vissem, nada compreendessem, sem que viessem influir, como cabe ao verdadeiro estadista – para definir e focalizar as necessidades gerais, e instituir formalmente a solidariedade prática dos interesses comuns. Subindo de influência, eles cresciam, apenas, em solenidade, sisudez, circunspecção, gravidade... Eram os seus grandes valores de caráter. Com isto, velavam o nulo dos efeitos, e se tornavam tão avessos à sinceridade, tão alheios à realidade, que lhes eram formalmente hostis. E os modos se fizeram tão tradicionais, que, hoje não haverá um brasileiro que imagine um chefe de Governo a rir francamente, humanamente, com a alma de quem sente o ambiente· e nele se inspira. Por isso mesmo, antiestéticos, na medida que saíam da realidade e se untavam de compostura. As falas e os atos são trivialidade ocas, sem o nervo, sequer, do amor-próprio. Como pensamento, Tavares Bastos já o disse:


Não passavam de ressonâncias frouxas e mal-ajustadas do que vai pelo resto do mundo. Não os inspirava sombra de verdadeira ciência, nem mesmo quando passaram por ela, porque, no ajustarem-se à política, eles refaziam a mentalidade em bacharelismo – logo maquias e verbalismos. Não conheciam o a b c da vida, nem a realidade da terra onde viviam, nem as verdadeiras tradições de onde vinham. E os que o conheciam, procediam como se foram completos ignorantes, tanto assim que, mesmo enfartados de direito, ou tocados de filosofias, em momento nenhum (salvo em 1832-36) vemos transparecer na legislação que produziram uma verdadeira doutrina social. Tudo, emplastro de ocasião. Os mais cultos sabiam da vida o que se podia reduzir à erudição, havida através de leituras sem crítica: ora, Benjamin Constant, ora Benthan, ora Mill, ora Comte, ora Yhering,... e sempre pedantes e indigestos. E, assim, até hoje. Pensam do Brasil com pastiches de ideias estrangeiras. Sendo, como caráter, os mais vãos dos bípedes, são, intelectualmente, os mais nulos. Mesmo quando estejam imediatamente ligados à vida prática, (e tantos houve lavradores..), são incapazes de experiência própria, pessoal. Pois não vemos, ao longo de toda a política oficial do segundo Império, proclamar-se o Brasil como – país essencialmente agrícola?...



Não havia discrepância no conceito, e, de acordo com ele, deixava-se passar o destino desta pátria, assim tacitamente condenada a ser eternamente uma fórmula colonial, para a torva, feroz e voraz exploração de negreiros e mercantis. Mas, como, de fato, eles em nada influíam, o Brasil é, hoje, o mais industrial dos países sul-americanos. Do conceito, resta, apenas, a evidência de que, neles falava o ideal do escravocrata. 

Com isso, qualquer enfermidade essencial os incompatibiliza com a legítima liberdade social e política, aquela em que o homem tem de viver, se é um caráter capaz de ser dono de si mesmo, humanamente autônomo e profícuo; capaz de, na plena luz da consciência, realizar o justo equilíbrio de antagonismos, por entre os quais o ser moral se conduz para a justiça e a solidariedade. Num país sempre fechado, pela metrópole bastarda, a toda luz e toda justiça; num país onde o governo tinha sido, apenas, opressão, polícia e espoliação, orientação estéril, totalmente alheio à administração moderna, solidarizante e liberal; num país tal, estabelecidos eles, mesmo depois da boa vontade dos de 1831, nunca se tratou seriamente, patrioticamente, de educação social, política, ou simplesmente intelectual para a massa da Nação. 148 Nunca se tratou de conhecer, metodicamente, as relações de produção entre as diversas partes do país, nem a atuação econômica das diferentes classes, e, menos ainda, estudar a situação moral nas sucessivas gerações... Assim, vemos que se passaram os longos cinquenta anos de paz, do segundo Império, deixando-se abandonados e esquecidos os dois problemas capitais, para a vida de uma nação moderna: a formação do povo político, e a educação das massas para um trabalho realmente livre e inteligente. 


148 Ao cair, o Império deixava frequentando escolas primárias públicas, na capital do país, cerca de 9. 000 alunos, e não havia uma escola profissional. As duas criações, dos últimos dias – Asilo de Meninos Desvalidos e Casa de São José, eram simples instituições de assistência, orfanatos de caridade oficial




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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira



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O Brasil nação: vol. I / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 332 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 35).


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O Brasil nação - v1: § 36 – A glória da insinceridade e da mentira - Manoel Bomfim

O Brasil nação - v1: Prefácio - Manoel Bomfim

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