sábado, 30 de dezembro de 2017

40. O Livro dos Abraços - Um músculo secreto - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


40. O Livro dos Abraços




Um músculo secreto

No meio-dia da memória, um meio-dia do exílio. Eu estava escrevendo, ou lendo, ou me aborrecendo em minha casa no litoral de Barcelona, quando o telefone tocou e o telefone me trouxe, cheio de assombro, a voz de Fico. 

Fazia mais de dois anos que Fico estava preso, fora solto no dia anterior. O avião o trouxera da cela de Buenos Aires para o aeroporto de Londres. Do aeroporto ele me telefonava pedindo que fosse vê-lo, venha no primeiro avião, tenho muita coisa para contar, tanta coisa para falar, mas uma coisa eu quero dizer já, quero que você saiba: 

Não me arrependo de nada. 

Naquela mesma noite nos encontramos em Londres. 

No dia seguinte, acompanhei-o ao dentista. Não tinha remédio. Os choques elétricos nas câmaras de tortura afrouxaram seus dentes de cima, e podia dar aqueles dentes por perdidos. 

Fico Vogelius era o empresário que financiara a revista Crísis, e não havia posto somente dinheiro, mas a alma e a vida naquela aventura, e me dera plena liberdade para fazer a revista do jeito que eu quisesse. Enquanto durou, três anos e pouco, quarenta números, Crisis soube ser um teimoso ato de fé na palavra solidária e criativa, aquela que não é nem finge ser neutra, a voz humana que não é eco nem soa só por soar. 

Por causa desse delito, pelo imperdoável delito de Crísis, a ditadura militar argentina sequestrou Fico, e o encarcerou e torturou; e ele salvara a vida por um fio, graças ao fato de ter conseguido gritar o próprio nome enquanto era sequestrado. 

A revista havia caído sem se curvar, e nós estávamos orgulhosos dela. Fico tinha uma garrafa de sei lá qual vinho francês antigo e bem-amado. Com aquele vinho brindamos, em Londres, à saúde do passado, que continuava sendo um companheiro digno de confiança. 

Depois, alguns anos depois, acabou-se a ditadura militar. E em 1985, Fico decidiu que Crísis devia ressuscitar. E estava cuidando disso, outra vez disposto a queimar tempo e dinheiro, quando ficou sabendo que tinha um câncer. 

Consultou vários médicos, em vários países. Uns lhe davam vida até outubro, outros até novembro. De novembro não passa, sentenciavam todos. Ele estava cadavérico, tremendo de operação a operação; mas um brilho de desafio acendia seus olhos. 

Crísis reapareceu em abril de 86. E no dia seguinte ao renascimento de Crísis, meio ano depois de todos os prognósticos, Fico deixou-se morrer.




Outro músculo secreto

Nos últimos anos, a Avó estava se dando muito mal com o próprio corpo. Seu corpo, corpo de aranhinha cansada, negava-se a segui-la. — Ainda bem que a mente viaja sem passagem — dizia. Eu estava longe, no exílio. Em Montevidéu, a Avó sentiu que tinha chegado a hora de morrer. Antes de morrer, quis visitar a minha casa com corpo e tudo. 

Chegou de avião, acompanhada pela minha tia Emma. Viajou entre as nuvens, entre as ondas, convencida de que estava indo de barco; e quando o avião atravessou uma tempestade, achou que estava numa carruagem, aos pulos, sobre a estrada de pedras. 

Ficou em casa um mês. Comia mingaus de bebê e roubava caramelos. No meio da noite despertava e queria jogar xadrez ou brigava com meu avô, que tinha morrido há quarenta anos. Às vezes tentava alguma fuga até a praia, mas suas pernas se enroscavam antes que ela chegasse na escada. 

No final, disse: 

Agora, já posso morrer. 

Disse que não ia morrer na Espanha. Queria evitar que eu tivesse a trabalheira burocrática, o transporte do corpo, aquilo tudo: disse que sabia muito bem que eu odiava a burocracia. 

E regressou a Montevidéu. Visitou a família toda, casa por casa, parente por parente, para que todos vissem que tinha regressado muito bem e que a viagem não tinha culpa. E então, uma semana depois de ter chegado, deitou-se e morreu. 

Os filhos jogaram as suas cinzas debaixo da árvore que ela tinha escolhido. 

Às vezes, a Avó vem me ver nos sonhos. Eu caminho na beira de um rio e ela é um peixe que me acompanha deslizando suave, suave, pelas águas.




A festa

Estava suave o sol, o ar limpo e o céu sem nuvens. Afundado na areia, um caldeirão de barro fumegava. No caminho entre o mar e a boca, os camarões passavam pelas mãos de Zé Fernando, mestre de cerimônias, que os banhava em água-benta de sal e cebolas e alho.

Havia bom vinho. Sentados em roda, amigos compartilhávamos o vinho e os camarões e o mar que se abria, livre e luminoso, aos nossos pés. 

Enquanto acontecia, essa alegria estava já sendo recordada pela memória e sonhada pelo sonho. Ela não terminaria nunca, e nós tampouco, porque somos todos mortais até o primeiro beijo e o segundo copo, e qualquer um sabe disso, por menos que saiba. 




As impressões digitais

Eu nasci e cresci debaixo das estrelas do Cruzeiro do Sul. Aonde quer que eu vá, elas me perseguem. Debaixo do Cruzeiro do Sul, cruz de fulgores, vou vivendo as estações de meu destino. 

Não tenho nenhum deus. Se tivesse, pediria a ele que não me deixe chegar à morte: ainda não. Falta muito o que andar. Existem luas para as quais ainda não lati e sóis nos quais ainda não me incendiei. Ainda não mergulhei em todos os mares deste mundo, que dizem que são sete, nem em todos os rios do Paraíso, que dizem que são quatro. 

Em Montevidéu, existe um menino que explica: — Eu não quero morrer nunca, porque quero brincar sempre.





O ar e o vento

Pelos caminhos vou, como o burrinho de São Fernando, um pouquinho a pé e outro pouquinho andando. Às vezes me reconheço nos demais. Me reconheço nos que ficarão, nos amigos abrigos, loucos lindos de justiça e bichos voadores da beleza e demais vadios e mal cuidados que andam por aí e que por aí continuarão, como continuarão as estrelas da noite e as ondas do mar. Então, quando me reconheço neles, eu sou ar aprendendo a saber-me continuado no vento. 

Acho que foi Vallejo, César Vallejo, que disse que às vezes o vento muda de ar. 

Quando eu já não estiver, o vento estará, continuará estando.





A ventania

Assovia o vento dentro de mim. Estou despido. Dono de nada, dono de ninguém, nem mesmo dono de minhas certezas, sou minha cara contra o vento, a contra-vento, e sou o vento que bate em minha cara.







(“orelhas” do livro)
 
A BELEZA E A EMOÇÃO DOS "PEQUENOS MOMENTOS"



Tratar a memória como coisa viva, bicho inquieto: assim faz Eduardo Galeano quando escreve. Sua memória pessoal e a nossa memória coletiva, da América. Quando escreve, ele mostra que a história pode - e deve - ser contada a partir de pequenos momentos, aqueles que sacodem a alma da gente sem a grandiloqüência dos heroísmos de gelo, mas com a grandeza da vida. Assim é este O livro dos abraços. Em suas andanças incessantes de caçador de histórias, Galeano vai ouvindo tudo. O que de melhor ouviu ele transforma em livros como este, onde lembra como são grandes os pequenos momentos e como eles vão se abraçando, traçando a vida. A memória viva, diz Galeano, nasce a cada dia. Ele diz e demonstra em livros como As veias abertas da América Latina, Dias e noites de amor e guerra, Os nascimentos, As caras e as máscaras, O século do tempo e, agora, neste O livros dos abraços. Nada que possa ser dito numa apresentação é capaz de chegar perto da beleza e da emoção que estas páginas contêm. Abra este livro com cuidado:,ele é delicado e afiado como a própria vida. Pode afagar, pode cortar. Mas seja como for, como a própria vida, vale a pena.





Os editores


Eduardo Galeano nasceu em Montevidéu, Uruguai, em 1940. Em sua cidade natal foi chefe do semanário Marcha e diretor do jornal Época. Em Buenos Aires, Argentina, fundou e dirigiu a revista Crisis. Esteve exilado na Argentina e Espanha desde 1973; no início de 1985 regressou ao Uruguai. Desde então reside em Montevidéu. E autor de vários livros, traduzidos em mais de vinte línguas, e de uma profusa obra jornalística. Recebeu o prêmio Casa das Américas em 1975 e 1978 e o prêmio Aloa dos editores dinamarqueses em 1993. A trilogia Memória do Fogo foi premiada pelo Ministério da Cultura do Uruguai e recebeu o American Book Award (Washington University, USA) em 1989. Em abril de 1999, foi distinguido com o Prêmio a Liberdade da Cultura, outorgado, em sua edição inaugural, pela Fundação Lannan, dos Estados Unidos.

Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura ...


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Fim



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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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37. O Livro dos Abraços - Fuga - Eduardo Galeano

38. O Livro dos Abraços - Profissão de fé - Eduardo Galeano

39. O Livro dos Abraços - Crônica da cidade de Manágua - Eduardo Galeano

1.O Livro dos Abraços - O mundo - Eduardo Galeano




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