segunda-feira, 5 de novembro de 2018

29. O Guardador de Rebanhos - XLVIII - Da Mais Alta Janela da Minha Casa - Alberto Caeiro

Fernando Pessoa


Alberto Caeiro
(heterônimo de Fernando Pessoa)




XLVIII - Da Mais Alta Janela da Minha Casa


Da mais alta janela da minha casa 
Com um lenço branco digo adeus 
Aos meus versos que partem para a Humanidade.
 
E não estou alegre nem triste. 
Esse é o destino dos versos. 
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos 
Porque não posso fazer o contrário 
Como a flor não pode esconder a cor, 
Nem o rio esconder que corre, 
Nem a árvore esconder que dá fruto. 

Ei-los que vão já longe como que na diligência 
E eu sem querer sinto pena 
Como uma dor no corpo. 

Quem sabe quem os terá? 
Quem sabe a que mãos irão? 

Flor, colheu-me o meu destino para os olhos. 
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas. 
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim. 
Submeto-me e sinto-me quase alegre, 
Quase alegre como quem se cansa de estar triste. 

Ide, ide de mim! 
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza. 
Murcha a flor e o seu pó dura sempre. 
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua. 

Passo e fico, como o Universo.





XLIX - Meto-me para Dentro 


Meto-me para dentro, e fecho a janela. 
Trazem o candeeiro e dão as boas noites, 
E a minha voz contente dá as boas noites. 
Oxalá a minha vida seja sempre isto: 
O dia cheio de sol, ou suave de chuva, 
Ou tempestuoso como se acabasse o Mundo, 

A tarde suave e os ranchos que passam 
Fitados com interesse da janela, 
O último olhar amigo dado ao sossego das árvores, 
E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso, 
Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir, 
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito. 
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.



fim


_________________

O Guardador de Rebanhos
Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)
(Fonte: http://www.cfh.ufsc.br/~magno/guardador.htm)


___________________

Leia também:







28. O Guardador de Rebanhos - XLVI - Deste Modo ou Daquele Modo - Alberto Caeiro



Nenhum comentário:

Postar um comentário