segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória da Galinha e do Ovo... Não acabou conversa... (04)

Luaanda... Estória da Galinha e do Ovo


Luandino Vieira





Para Amorim e sua ngoma:
sonoros corações da nossa terra.



continuando...


Não acabou conversa dela, toda a gente olhou no sítio onde que saía uma voz de mulher a insultar. Era do outro lado do quintal, na cubata da quitata∗ Rosália e as vizinhas espantaram, já muito tempo não passava confusão ali, mas parecia essa tarde estava chamar azar, tinha feitiço. Na porta, mostrando o corpo dela já velho mas ainda bom, as mamas gordas a espreitar no meio da combinação, Rosália xingava, dava berrida no homem. 

— Vai ‘mbora, hom’é! Cinco e meia mesmo e você dormiu toda a tarde? Pensas sou teu pai, ou quê? Pensas? Tunda, vadio! Vai procurar serviço!

Velho Lemos nem uma palavra que falava nessa mulher quando ela, nas horas que queria preparar para receber os amigos — todo o musseque sabia, parece só ele mesmo é que fingia não estava perceber o dinheiro da comida donde vinha —, adiantava enxotar-lhe fora da cubata. Sô Lemos metia as mãos nos bolsos das calças amarrotadas e puxando sua perna esquerda atacada de doença, gorda parecia imbondeiro, arrastava os quedes pela areia e ia procurar pelas quitandas casos e confusões para descobrir ainda um trabalho de ganhar para o abafado e os cigarros.

É que a vida dele era tratar de macas. Antigamente, antes de adiantar beber e estragar a cabeça, sô Artur Lemos trabalhava no notário. Na sua casa podiam-se ainda encontrar grossos livros encadernados, processo penal, processo civil, boletim oficial, tudo, parecia era casa de advogado. E as pessoas, quando queriam, quando andavam atrapalhadas com casos na administração era sô Artur que lhes ajudava.

Ainda hoje, quando as vizinhas davam encontro com Rosália na porta, esperando os fregueses, ninguém que podia fazer pouco o homem dela. Enganava-lhe com toda a gente, às vezes chamava até os monandengues para pôr brincadeiras que os mais velhos não aceitavam, mas na hora de xingarem-lhe o marido ela ficava parecia era gato assanhado.

— Homem como ele, vocês não encontram! Têm mas é raiva! É verdade o corpo está podre, não serve. Mas a cabeça é boa, a sabedoria dele ninguém que tem!

E é mesmo verdade que não autorizava mexer nos livros arrumados na prateleira, cheios de pó e teias de aranha, e, sempre vaidosa, lhes mostrava:

— Vejam, vejam! Tudo na cabeça dele! E os vossos homens? Na cama sabem, mas na cabeça é tuji só!...

Ria-se, justificava, encolhia os ombros:

— P’ra cama a gente arranja sempre. E ainda pagam! Agora com a cabeça dele... Tomara!

As vizinhas gozavam, falavam essas palavras ele é que tinha ensinado para não lhe fazerem pouco de corno, mas Rosália não ligava. Nem mesmo quando os monas, aborrecidos de todas as brincadeiras, saíam atrás do homem dela, xingando sua alcunha.

— Vintecinco linhas! Vintecinco linhas!...

Porque era a palavra de feitiço, em todos os casos sô Lemos falava logo:

— Fazemos um vintecinco linhas, é caso arrumado!

E se adiantava receber dinheiro para o papel, muitas vezes ia-lhe beber com Francesinho, Quirino, Kutatuji e outros vagabundos como eles, nalguma quitanda mais para São Paulo.

Pois nessa hora, quando vavó já estava para desistir, é que viram mesmo sô Artur Lemos e correram a lhe chamar: o homem, com sua experiência de macas, ia talvez resolver o assunto. Avisando Beto e Xico para não adiantarem xingar o velho, vavó, com ajuda das interessadas, expôs os casos.

Parecia uma vida nova entrava no corpo estragado do antigo ajudante de notário. O peito respirava mais direito, os olhos não lacrimejavam tanto e, quando mexia, até a perna nada que coxeava. Abriu os braços, começou empurrar as pessoas; tu para aqui, tu para ali, fica quieto e, no fim, com vavó Bebeca na frente dele, pondo Bina na esquerda e nga Zefa na direita, coçou o nariz, começou:

— Pelos vistos, e ouvida a relatora e as partes, trata-se de litígio de propriedade com bases consuetudinárias...

As mulheres olharam-se, espantadas, mas ninguém que disse nada; Vintecinco linhas continuou, falando para nga Zefa:

— Diz a senhora que a galinha é sua?

— Sim, sô Lemos.

— Tem título de propriedade?

— Ih? Tem é o quê?

— Título, dona! Título de propriedade! Recibo que prova que a galinha é sua!

Nga Zefa riu:

— Sukuama! Ninguém no musseque que não sabe a Cabíri é minha, sô Lemos. Recibo de quê então?

— De compra, mulher! Para provarmos primeiro que a galinha é tua!

— Possa! Esse homem... Compra?! Então a galinha me nasceu-me doutra galinha, no meu quintal, como é vou ter recibo?

Sem paciência, sô Lemos fez sinal para ela se calar e resmungou à toa:

— Pois é! Como é que as pessoas querem fazer uso da justiça, se nem arranjam os documentos que precisam?

Coçando outra vez o nariz, olhou para nga Bina que sorria, satisfeita com essas partes do velho, e perguntou:

— E a senhora, pode mostrar o recibo do milho? Não? Então como é eu vou dizer quem tem razão? Como? Sem documentos, sem provas nem nada? Bem...

Olhou direito na cara das pessoas todas, virou os olhos para Beto e Xico abaixados junto do cesto da galinha e recebeu o ovo de vavó Bebeca.

— A senhora, dona Bina, vamos pôr queixa contra sua vizinha, por intromissão na propriedade alheia com alienação de partes da mesma... isto é: o milho!

Nga Bina abriu a boca para falar, mas ele continuou:

— Quanto à senhora, dona Zefa, requerimentare-mos sua vizinha por tentativa de furto e usufruto do furto!... Preciso cinco escudos cada uma para papel!

Uma grande gargalhada tapou-lhe as últimas palavras e, no fim do riso, vavó quis lhe arrancar a resposta:

— Mas, sô Lemos, diz então! Quem é que tem a razão?

— Não sei, dona! Sem processo para julgar não pode-se saber a justiça, senhora! Fazemos os requerimentos...

Toda a gente continuou rir e Beto e Xico aproveitaram logo para começar fazer pouco. Derrotado pelo riso, vendo que não ia conseguir esse dinheiro para beber com os amigos, sô Lemos, empurrado por vavó quase a chorar com as gargalhadas, tentou a última parte:

— Oiçam ainda! Eu levo o ovo, levo-lhe no juiz meu amigo e ele fala a sentença...

— O ovo, no olho! — gritou-lhe, zangada, nga Zefa. O tempo tinha passado, conversa, conversa e nada que resolveram e, com essas brincadeiras assim, muitas vezes a saliente da Bina ia lhe chupar o ovo.

Da rua ainda se ouvia a voz rouca de sô Lemos zunindo pedradas em Beto e Xico que não tinham-lhe largado com as piadas. Levantando o punho fraco, o velho insultava-lhes:

— Maliducados! Vagabundos! Delinquentes!

Depois, parando e enchendo o peito de ar, atirou a palavra que lhe dançava na cabeça, essa palavra que estava nos jornais que lia:

— Seus ganjésteres!

E, feliz com esse insulto, saiu pelos tortos caminhos do musseque, rebocando a perna inchada.

Quando as vizinhas viram que nem sô Lemos sabia resolver os casos, e ao sentirem o vento mais fresco que soprava e o sol, mais perto do mar, lá para longe para trás da Cidade Alta, começaram falar o melhor era esperar os homens quando voltassem no serviço, para resolver. Nga Bina não aceitou:

— Pois é! Mas o meu homem está na esquadra, e quem vai me defender?

Mas nga Zefa é que estava mesmo furiosa: sacudindo velha Bebeca do caminho, avançou arreganhadora para o cesto, adiantar agarrar a galinha. E aí começou outra vez a luta. Bina pegou-lhe no vestido que rasgou logo no ombro; Zefa deu-lhe com uma chapada, agarraram-se, pondo socos e insultos.

— Sua ladrona! Cabra, queres o meu ovo!

— Aiuê, acudam! A bater numa grávida então!...

A confusão cresceu, ficou quente, as mulheres cada qual a tentar desapartar e as reclamantes a quererem ainda pôr pontapés, Beto e Xico a rir, no canto do quintal para onde tinham rebocado a Cabíri que, cada vez mais banzada, levantava o pescoço, mexia a cabeça sem perceber nada e só os miúdos é que percebiam o ké, ké, ké dela. No meio da luta já ninguém que sabia quem estava segurar, parecia a peleja era mesmo de toda a gente, só se ouviam gritos, lamentos, asneiras, tudo misturado com o cantar da galinha assustada, os risos dos monandengues, o vento nas folhas das mandioqueiras e aquele barulho que o musseque começa a crescer quando a noite avança e as pessoas de trabalhar na Baixa voltam nas suas cubatas. Por isso ninguém que deu conta a chegada da patrulha.





continua página 98...


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∗ quitata — mulher da vida, prostituta.
∗ ganjésteres — gângsteres.
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José Luandino Vieira -

Com José Luandino Vieira a literatura angolana adquire dimensão internacional. Nascido a 4 de maio de 1935 e criado à vontade nos velhos musseques da Luanda antiga, o escritor recria linguagens de origens diversas e, através de sua prosa extraordinária, fixa o fato cultural local, universalizando-o. Suas atividades literárias e políticas no quadro da luta pela libertação nacional levam-no diversas vezes à prisão, num total de onze anos.

As três narrativas aqui reunidas retratam a dura realidade dos musseques angolanos - os bairros pobres de Luanda, onde o próprio autor viveu. "Minha preocupação era ser o mais fiel possível àquela realidade. [...] Se a fome, a exploração, o desemprego, surgem com muita evidência [...] é porque isso era - digamos assim - o aquário onde meus personagens e eu circulávamos", afirma Luandino.

E, dura realidade à parte, Luandino cria personagens memoráveis. Como "Vavó" Xíxi e seu neto, que, sem trabalho e sem dinheiro, não dispensa a camisa florida ou o amor de Delfina, para desespero da avó (Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos). Ou o Garrido Kam'tuta, atormentado pelo papagaio que ganhava as carícias que Inácia lhe recusava (Estória do ladrão e do papagaio). Ou nga Zefa e sua vizinha, que disputam a posse de um ovo de galinha (Estória da galinha e do ovo).

Essas histórias curtas, narradas com grande maestria e um colorido muito especial, buscam na oralidade inspiração para recriar a linguagem e nos fazem lembrar da nossa própria trajetória literária.



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a mesma lei, a mesma língua (obviamente do colonizador, um drama linguístico, né? escrever na língua do colonizador)




Luuanda 
Estórias 

Escritas no Pavilhão Prisional da PIDE e nas masmorras da l.a Esquadra da P.S.P.A., em Luanda, durante o ano de 3963. 

1.a ed. — Luanda, “ABC”, 1964. 
2.a ed. (revista) — Lisboa, Edições 70, 1972 (com uma tiragem especial de 500 + XXV exemplares). 
3.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974. 
4.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974. 
5.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1976. 
6.a ed. — Lisboa/Luanda, Edições 70 — U.E.A., 1977. 
7.a ed. (livro de bolso) — Luanda, U.E.A., 1978.

— Circulou em Lisboa, em 1965, uma edição clandestina, com a indicação (falsa) de ter sido feita           em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 
— Prêmio literário angolano Mota Veiga em 1964. 
— Grande Prêmio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, 1965. 
— Tradução russa por Helena Riáusova: Luanda, na revista Innostranaya Literatura, Moscou,              1968. 


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